segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Complexo do Alemão




Texto em destaque de extensa matéria da Revista ÉPOCA, de 29/11/2010, assinada por Nélio Fernandes, Rafael Pereira, Martha Mendonça e Maurício Meireles.

Ainda no contexto da matéria não poderia faltar a visão preconceituosa e pessimista do antropólogo Luiz Eduardo Soares, assumido "eurocomunista" com desastrosa passagem pela Secretaria de Segurança Pública do RJ:
"As Forças Armadas devem participar, mas não exercer o papel de polícia, diz o antropólogo Luiz Eduardo Soares. 'O Exército não existe para isso, não é treinado para isso, nem está equipado para isso', afirma. 'Mas deve começar cumprindo sua função de controlar os fluxos das armaS no país. Isto resolveria o maior dos problemas: as armas ilegais passando tranquilamente, de mão em mão, com as bênçãos, a mediação e o estímulo da banda podre das polícias'."
Ora bem, não vou aqui tratar de frustrações e recalques alheios nem de pessimismos de "piedosos socialistas", como venho grafando no meu blog. Vou apenas comentar alguns aspectos, porém lembrando ao ilustre antropólogo que, errado ou certo, as Forças Armadas têm obrigações constitucionais com a garantia da lei e da ordem. É, portanto, engano ou engodo dele afirmar que os militares federais ignoram esse dever. E se não fossem os seus meios materiais e a participação direta das Forças Armadas na ação operativa deflagrada no Complexo do Alemão, talvez a sociedade carioca e fluminense assistisse a mais um desastre sangrento num confronto em que a força do banditismo poderia momentaneamente superar as polícias estaduais. Realmente, o antropólogo deve estar muito infeliz por não poder comentar a desgraça que não houve... Mas vamos ao que interessa:


O sucesso da operação no Complexo de Alemão jorra luz sobre uma realidade que desde muitos anos vem sendo renegada pelo poder político em razão de preconceito especialmente contra a Polícia Militar, cuja atuação nos distúrbios civis não é nada simpática. Aliás, nem aqui nem em lugar algum do mundo, porque geralmente representa a coerção endereçada a cidadãos livres que se manifestam contra alguma medida estatal contrária à vontade de segmentos da sociedade ou de toda a sociedade, dependendo do valor específico ou geral dessa medida, ou do seu desvalor perante a vontade popular.
Alguns conceitos de conglomerados humanos são universais e se repetem mundo afora. Há as aglomerações, que reúnem pessoas aleatoriamente, porém sem objetivos comuns. Este é o cotidiano das cidades, com o povo transitando em grandes quantidades, porém sem perder sua individualidade vinculada a interesses imediatos ou a preocupações corriqueiras. Há, por outro lado, as multidões, estas sim, caracterizadas por interesses comuns, porém sem objetivos hostis. É o caso dos torcedores em jogos de futebol e outras modalidades de torcida inflamada. A multidão, mesmo não reunida para hostilizar, carrega um sentimento coletivo que se pode tornar perigoso, e não são poucos os exemplos de descontrole no contexto do esporte que reúne grandes torcidas.
Mas as multidões que partem às ruas para manifestar desagrado contra alguma medida de governo (geralmente é o caso) ou para reivindicar direitos e vantagens em suas profissões comuns, estas podem se inflamar por diversos motivos e se transformar numa turba destruidora de tudo que encontra pela frente. Esse comportamento de hostilidade coletiva, num nível de violência destruidor, para ser contido impõe aos organismos estatais o uso da força, que alguns designam como “violência legal”.
O monopólio do uso da força pelo Estado é exclusivo e intransferível. E cabe à Polícia Militar esta ingloriosa tarefa de coibir cidadãos exaltados no seu extremo, de modo a proteger a sociedade como um todo. Desses conflitos e confrontos, claro, os arranhões são vários e as indignações são marcantemente profundas. Trata-se, na verdade, de trabalho antipático por excelência, que se alastra até a animosidade do todo (somatório de segmentos de uma sociedade) contra a parte (Polícia Militar). Porque não há como o cidadão (não-criminoso) afetado pela coerção concluir com isenção no sentido de que a tropa da PM que lhe baixou o porrete não é a mesma que patrulha as ruas visando à sua proteção.
E, por sua vez, o patrulheiro, em desvantagem no ambiente infestado de marginais violentos, dos quais recebe ataques mortais em tocaias imprevisíveis, torna-se naturalmente desconfiado e agressivo diante de qualquer cidadão durante o seu estressante serviço, sendo certo que a animosidade entre ambos muitas vezes não se supera. Pois, para o cidadão que levou a porretada durante a manifestação (justa ou injusta, legal ou ilegal, não importa) a associação do seu prejuízo ao PM que está diante de si é inevitável. Isto sem falar em outros aspectos de natureza ideológica que mantêm acesa a chama do preconceito e até da discriminação contra o PM isolado e na condição de “policial protetor”. Eis a contradição, que se amplia e contamina negativamente a sociedade, com a imprensa engrossando o caldo apimentado a ser deglutido pelo PM.
Esta digressão é para demonstrar um dos porquês de a sociedade olhar o BOPE com olhos namorados, a começar pela farda diferente e por ela saber que o BOPE existe para o combate direto a malfeitores e não para admoestar pessoas em antipáticas blitze nas ruas, tarefa que compete aos PMs do policiamento normal. Esses PMs de azul são a regra; o BOPE é a exceção. Daí a animosidade contra a tropa azul ser contundente e de difícil reversão. Porque, como a toda ação lhe corresponde uma reação igual e contrária, o trato entre o PM comum e o cidadão não se caracteriza pela gentileza. Ambos se sentem agredidos nesta fricção inevitável e a violência policial emerge como consequência dessa dupla falta de urbanidade, e sai perdendo o cidadão ante a possibilidade de receber coerção além da esperada e em dobro perde o policial, que se vê rejeitado nessa complexa relação povo-polícia.
A Polícia Militar, hoje, está lavando a alma. Por um momento, sente-se amada por toda a sociedade formal e todas as comunidades libertadas e pelas que aguardam esperançosamente o seu dia de liberdade dos grilhões do tráfego. Mais do que tudo isso, a vitória conquistada no Complexo do Alemão abre uma real perspectiva de ações operativas (militares-policiais) concomitantes em diversas favelas contíguas. Vencido o maior obstáculo, é possível antever vitórias idênticas em outros conjuntos favelados, em varredura planejada e executada como a que se viu na cidadela do tráfico considerada a mais enexpugnável do Rio de Janeiro. Mais importante do que aprisionar milhares de traficantes foi desestabilizá-los materialmente. Sem drogas para vender e sem armas de guerra, o poder do tráfico se retira do patamar de grupo paramilitar criminoso para a condição de quadrilha ou bando e nada mais, um problema de polícia cabível num contexto de criminalidade multifacetada que sempre haverá enquanto o planeta Terra existir. Criminalidade tolerável, sim, pois não há como fazê-la desaparecer num passe de mágica; mas uma criminalidade dotada de excessivo poder bélico e a dominar pelo terror as comunidades carentes, afrontando o Poder do Estado e a sociedade, não.
Arrancar das mãos marginais os fuzis é preciso. A cada ação de grande porte, cercando outros complexos favelados menores e atuando da mesma maneira, mais armas e drogas serão apreendidas. E traficante sem droga para comercializar vai à falência como qualquer empresa que não se cuida ou é constantemente assaltada perdendo seus produtos. Prender os líderes do tráfico releva em importância, sim. Não se consegue ser líder de facção criminosa sem qualidade superior aos liderados, e não falamos tão-somente de coragem ou de crueldade. Falamos de inteligência e capacidade de articulação com os grandes fornecedores internos e externos.
Sem seus líderes e sem drogas e apetrechos bélicos, os bandidos terão de buscar outros meios de vida. Muitos vão roubar carros e praticar outros crimes visíveis; e terão as favelas e bairros periféricos como homizios. Mas não evitarão o reconhecimento posterior, numa investigação criminal, ou poderão ser presos ou mortos na flagrância dos crimes.
Este é o quadro de normalidade que precisa ser alcançado por meio de conquistas e ocupações, até que as áreas isoladas e dominadas pelo tráfico sejam integradas ao patrulhamento normal, tendo ou não UPPs, sendo certo que a Polícia Militar realiza uma infindável variedade de patrulhamento e de policiamento de grande porte, este, eventual e concentrador de efetivo, que não se deve perpetuar, a não ser que se mudem as regras de inclusão e formação de novos PMs a partir do aproveitamento de profissionais treinados nas Forças Armadas que poderiam ser instruídos para o exercício da atividade policial já contando com a formação militar, a juventude, a saúde física, e o amor corporativo.
Tal medida não excluiria o concurso aberto, mas seria um componente de inegável valor no aumento dos efetivos policiais-militares, principalmente, podendo-se imaginar igual aproveitamento pelas Guardas Municipais, já que a cultura básica da quantidade tão cedo não mudará num país com quase 200.000.000 (duzentos milhões) de habitantes, e que, somadas as Forças Armadas e todas as Polícias Militares nacionais, seus efetivos não alcançam a casa de 1.000.000 (um milhão). Enfim, é ainda pouca a quantidade e a reposição, muito lenta. Isto implica investimento estatal maciço, pois não se pode combater a criminalidade transnacional e nacional, e seus crimes conexos, sem gastos pesados para aumentar efetivos, aprimorar tecnologias e qualificar os organismos de segurança pública destinados a conter a expansão do banditismo e seus domínios territoriais.
Não precisa muito para aproveitar efetivos das Forças Armadas nas Polícias Militares e nas Guardas Municipais. Basta acrescentar um dispositivo constitucional flexibilizando o ingresso de novos PMs e Guardas Municipais recrutados diretamente das Forças Armadas. Como se trata de profissão especial geralmente buscada por vocacionados, e impossível de ser terceirizada, por que não se fazer uma seleção de efetivos treinados no militarismo, como estamos assistindo no Complexo do Alemão: militares verdes-olivas e fuzileiros navais prontos até para uma guerra urbana. É só treiná-los para o exercício da profissão policial-militar ou torná-los Guardas Municipais. Porque muitos desses valorosos militares que contribuem com a polícia para vencer o inimigo comum no Complexo do Alemão amanhã estarão desempregados. É pena...

3 comentários:

Anônimo disse...

Sr. Larangeira, boa noite. Quando se fala em contigente das UPPs a populaçao do bairro ou até mesmo do município nao pode ser contabilizada? Somente a do morro que recebeu a UPP? Pergunto porque na minha opiniao de leigo poderíamos estar lidando com um novo conceito de policiamento. Um policiamento que inibe o cometimento de crimes por bloqueio de tradicionais rotas de fuga (favelas)e a violencia na venda de drogas? Nao que a venda deva ser tolerada mas por poder ser combatida de outra forma. Os policiais sociais (6 meses para formação que inclui aulas de direitos humanos, sociologia, antropologia) tb nao alteram significativamente o novo padrao de policiamento? Sinceramente nao faço parte do gov, nao sou defensor de político, apenas estou enxergando desta forma. Passo sempre por aqui para tentar antever acontecimentos. Parabéns pelo blog.

Emir Larangeira disse...

Prezado comentarista

As UPPs, embora não se constituam em novidade a não ser na nomenclatura (em tese, reconquista e ocupação de território perdido para algum "inimigo"), representa uma alteração na rotina do policiamento ostensivo, que troca a exceção pela regra. A regra é fragmentar o efetivo e irradiar maximamente o policiamento preventivo. A exceção seria a concentração de policiamento, como é o caso das UPPs, ou, em grosseira comparação, a Tomada de Monte Castelo, na Itália, pela FEB e as Forças Aliadas, durante a II Guerra. Acontece que a regra, até então, instituía uma cruel discriminação das favelas e seus decentes moradores já afetados pela pobreza. Além desse inaceitável fator social de descaso governamental, a conquista desses territórios pelo tráfico de drogas se deu gradualmente, até que o Iceberg emergiu para toda a sociedade não somente com a sua ponta, mas com o seu todo. E as favelas passaram a receber apenas repressão policial violenta e indiscriminada, torturando pela suspeita as pessoas pobres e decentes, por conta de minoritários e anônimos bandidos fortalecidos em moldes paramilitares. Claro que os bandidos, – com homizio seguro nas favelas, fortalezas embandeiradas por siglas criminosas, a ponto de impedir a união de namorados moradores de “favelas rivais”, – os bandidos fizeram desses lugares depósito de carros e motos roubados em quantidades absurdas, como agora se provou com a conquista e a ocupação do Complexo do Alemão. Além disso, as favelas tornaram-se “depósito de drogas”, verdadeiros “Atacadões de entorpecentes e armas” a serem distribuídos para outras favelas e para pontos ocultos no asfalto. Enfim, o resumo da “cidade partida” tão bem definida pelo jornalista Zuenir Ventura. Não há mais como conviver com tamanha anomia. Não sei se a mudança dará certo. Espero que dê. Mas sem investimento maciço e mudança de regras para facilitar o aumento dos efetivos policiais, como, por exemplo, a partir do aproveitamento de jovens treinados em Forças Especiais das Forças Armadas, ensinando-lhes o complemento do labor policial, não vejo solução em curto prazo. Esta regra que sugiro não é nova. Parte do pressuposto de que as Polícias Militares são constitucionalmente “forças auxiliares reserva do Exército”.
Antigamente, era possível ao jovem até mesmo optar entre servir na PM ou EB, num sistema de reavaliação de “praça engajada” que se renovava à aposentadoria. Por que não reavivar a medida com novas exigências de escolaridade? Mas prefiro crer num futuro melhor, desde que encarando a realidade frontalmente, e não por meio de engodos e ilusões passageiras...

Obrigado pela contribuição.

Emir Larangeira disse...

Prezado comentarista

As UPPs, embora não se constituam em novidade a não ser na nomenclatura (em tese, reconquista e ocupação de território perdido para algum "inimigo"), representa uma alteração na rotina do policiamento ostensivo, que troca a exceção pela regra. A regra é fragmentar o efetivo e irradiar maximamente o policiamento preventivo. A exceção seria a concentração de policiamento, como é o caso das UPPs, ou, em grosseira comparação, a Tomada de Monte Castelo, na Itália, pela FEB e as Forças Aliadas, durante a II Guerra. Acontece que a regra, até então, instituía uma cruel discriminação das favelas e seus decentes moradores já afetados pela pobreza. Além desse inaceitável fator social de descaso governamental, a conquista desses territórios pelo tráfico de drogas se deu gradualmente, até que o Iceberg emergiu para toda a sociedade não somente com a sua ponta, mas com o seu todo. E as favelas passaram a receber apenas repressão policial violenta e indiscriminada, torturando pela suspeita as pessoas pobres e decentes, por conta de minoritários e anônimos bandidos fortalecidos em moldes paramilitares. Claro que os bandidos, – com homizio seguro nas favelas, fortalezas embandeiradas por siglas criminosas, a ponto de impedir a união de namorados moradores de “favelas rivais”, – os bandidos fizeram desses lugares depósito de carros e motos roubados em quantidades absurdas, como agora se provou com a conquista e a ocupação do Complexo do Alemão. Além disso, as favelas tornaram-se “depósito de drogas”, verdadeiros “Atacadões de entorpecentes e armas” a serem distribuídos para outras favelas e para pontos ocultos no asfalto. Enfim, o resumo da “cidade partida” tão bem definida pelo jornalista Zuenir Ventura. Não há mais como conviver com tamanha anomia. Não sei se a mudança dará certo. Espero que dê. Mas sem investimento maciço e mudança de regras para facilitar o aumento dos efetivos policiais, como, por exemplo, a partir do aproveitamento de jovens treinados em Forças Especiais das Forças Armadas, ensinando-lhes o complemento do labor policial, não vejo solução em curto prazo. Esta regra que sugiro não é nova. Parte do pressuposto de que as Polícias Militares são constitucionalmente “forças auxiliares reserva do Exército”.
Antigamente, era possível ao jovem até mesmo optar entre servir na PM ou EB, num sistema de reavaliação de “praça engajada” que se renovava à aposentadoria. Por que não reavivar a medida com novas exigências de escolaridade? Mas prefiro crer num futuro melhor, desde que encarando a realidade frontalmente, e não por meio de engodos e ilusões passageiras...

Obrigado pela contribuição.