sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Tropa de Elite 2: o livro






As “milícias”*


Encerrei a leitura do livro Elite da Tropa 2, cujo texto é atribuído a quatro autores, três deles liderados pelo eminente antropólogo, escritor e cientista político Luiz Eduardo Soares. Escrever um livro a oito mãos não seria tarefa fácil. Daí, como esclarece o escritor em página finalizadora, ele, na verdade, recolheu informações (ou vivências) dos demais mentores do texto e lhes deu o formato de ficção literária.
Com a experiência acadêmica que lhe é inerente, o escritor se enfia na história como “personagem-narrador-cadeirante” e passeia desenvolto pela narrativa, lembrando um personagem do clássico de Ruy Tapioca (República dos Bugres) vencedor do Prêmio Jabuti.
Muitos dos fatos narrados e dissimulados na ficção não me são desconhecidos. Quem acompanha o noticiário da segurança pública com atenção ou é do ramo até pode “dar nomes aos bois”, materializando no espírito alguns personagens entrelaçados na trama.
O texto é bom. Não vi o filme ainda. Como da outra vez, preferi ler o livro para depois assistir ao filme, prática corriqueira na literatura levada ao cinema: primeiro o livro, depois o filme. Em todos os exemplos que conheço de longas-metragens decorrentes de romances, concluí terem sido os livros melhores que os filmes. Contudo, no caso do livro Elite da Tropa, gerador do primeiro longa-metragem, Tropa de Elite, gostei mais do filme que do livro, embora não possa negar que alguns momentos da leitura do livro foram eletrizantes.
Quanto ao segundo filme, nada posso afirmar, não fui ainda ao cinema, o que espero fazê-lo brevemente. Sobre o livro, e em comparação com o primeiro, não senti a mesma emoção ao lê-lo. A narrativa, embora escrita com perícia invejável e seu texto pincelado com alguns floreios literários imprimindo-lhe característica romanesca, manteve-se em linearidade típica de “relatório policial”. Mesmo assim, gostei, embora, como leitor, eu não tenha logrado me enfiar na história e esquecer o resto.
Acostumado à jornada do escritor em que os personagens saem da vida comum à aventura, num ir-e-vir a produzir clímax e mais clímax no espírito do leitor, senti falta dessa emoção. Mas é compreensível. Organizar fatos e lhes impor certa cronologia para não afastá-lo da realidade não é tarefa simples. A literatura francesa denomina esse expediente como “literatura à chave” (à clef), ou seja, com ajustes textuais aproximando ficção da realidade, e vice-versa, numa prática literária compromissada com o verídico. Muitos desses romances escritos no passado trouxeram ao presente verdades históricas não reveladas pelos poderosos.
No caso do livro, percebe-se que o escritor buscou bem mais a precisão, sinalizando na abertura sua habilidade de exímio romancista, que apenas preferiu um critério, digamos, mais acadêmico. Como eu confessei, senti falta da emoção, mas a minha crítica não desmerece o trabalho. Valeu a leitura, em especial porque não me senti enganado: os fatos estão bem postos e o mundo policial com eles não se surpreenderá. Quanto ao leitor comum, não policial, não estou em condições de aferir o efeito do texto em sua mente.
Por outro lado, creio que se deva extrair do texto inspiração para jorrar luz sobre a absurda quantidade de ex-policiais, ex-bombeiros, ex-agentes penitenciários e semelhantes, que ao longo de anos se vêm aninhando em grupos de sobrevivência (“mineiras”) hoje estruturados em “milícias”. A “milícia” não é causa, mas efeito perverso de uma errônea política de segurança pública que ainda se pauta pela quantidade em detrimento da qualidade.
O modelo massificado de tropa, predominante no Exército Brasileiro (EB) em função da insistência no serviço militar obrigatório (formação de militares não permanentes: exército de conscritos), desdobra-se em idêntico modelo estrutural nas Polícias Militares (militares estaduais permanentes). Devido à obrigatoriedade de similitude estrutural e conjuntural com o EB, os militares estaduais são submetidos a perversas cobranças, e respondem por rigores disciplinares como se a tropa vivenciasse tempos de guerra enquanto se expõe aos azares do exercício da profissão policial no turbulento ambiente social dos grandes centros urbanos. São quase 500.000 militares estaduais no serviço ativo Brasil afora (As Forças Armadas somadas, salvo pequena margem de erro, não alcançam 400.000 homens). O problema é que, enquanto os militares federais treinam intramuros aguardando alguma guerra improvável (restrita a hipóteses de agressões externas e internas), os militares estaduais são jorrados às ruas para exercitar funções policiais em contato direto com uma violência típica de guerrilha urbana, o que torna a profissão policial-militar obscura, ambígua e perigosíssima.
Talvez seja hora de o deputado Marcelo Freixo, destacado no livro e já reeleito, abraçar numa CPI a grave questão do ex-PM, principalmente, para dar conhecimento à sociedade da dura realidade de que o Estado é um irresponsável fabricante de “milicianos”. Ou outro deputado que se interesse pela ideia. E que não seja motivo para acusar pessoas, governantes, comandantes, dirigentes etc., mas de estudar as causas geradoras das “milícias”, e não apenas a ação delas (efeitos). Penso na CPI perscrutando a origem das “milícias” como se fora um incêndio que só se apaga quando se atinge o “foco” (“princípio de incêndio”).
Creio que seria útil à sociedade esse aprofundamento, de modo a estimular a mudança conjuntural e estrutural do sistema de segurança pública, em especial desgarrando as Polícias Militares do EB, do qual elas são forças auxiliares, e, portanto, subordinadas àquela força federal em rígidos dispositivos constitucionais e legais.
Implica tal subordinação o repasse de uma cultura inadequada aos tempos modernos de controle da criminalidade, sendo certo que o EB treina conscritos e os devolve ao ambiente social, e são eles que vão formar grupos paramilitares no tráfico; do mesmo modo, é a PMERJ (interessa-nos o nosso caso específico) que jorra seus treinados efetivos, como ex-PMs, nas “milícias” e também no tráfico. Enfim, uma tropa duplamente treinada, pelo EB e pela PMERJ, esta que culmina sentindo na carne o efeito do seu próprio veneno.
Enfim, policiais-militares são sementes plantadas na pedra: não criam raízes e logo, logo, os arbustos mínimos são levados por ventos e tempestades (insisto no hífen do vocábulo policial-militar, pois é composto por dois substantivos, e até onde eu sei a regra perdura). Muito bem, é o que basta até assistirmos ao filme...


* Ponho entre aspas o vocábulo “milícia” em respeito ao seu real significado, desde muito dicionarizado. Deste modo, demonstro minha indignação pelo mau uso da palavra a designar criminosos: “MILÍCIA s.f. Desde a Idade Média até o séc. XVIII, o termo foi usado para designar tropa levada às comunas para reforçar o exército regular. / Força militar de um país. / Força pública estadual.” (Enciclopédia e Dicionário Koogan-Houaiss Digital).

Um comentário:

Anônimo disse...

Cel o senhor tem toda razão.
Eu acredito que a idéia de Milícia não é de ruim, quando ela é usada para reforçar as forças Publicas. É uma maneira de Utilizar os PM, BM e Militares Federais da Reserva Remunerada, seja voluntário ou pagos, no combate ao crime, nas comunidades em que moram, com treinamento, Comando e supervisão sobre o controle do Estado e dar a organização militar, afinal somos ou não da Reserva Remunerada .No estado já existe programas para a utilização desses militáreis um deles é o "Tempo certo" com excelentes resultados. A esse moldes, em conjunto com as UPP mais próxima nós acabaremos de vez com esse bandidos vamos sufoca-los. Realmente Milícia não é isso que se fala "Milícias é tropas auxiliares de segunda classe. Milícia vida ou disciplina militar. Força militar de um pais". Fora isso é bando armado e não resolve.
Sou a favor também que enquanto na condição de Reserva devemos, poder, ser admitidos nos cursos regulares de aperfeiçoamento nas varias inovações mantendo-nos pronto e em condições de...
ABS Reynoso Silva
OBS: Bem que o senhor poderia levar adiante essa idéia ou "ideia" já estamos falando de mudanças.