domingo, 26 de setembro de 2010

O ESTIGMA DO PM

Mali principii malus exitus (Princípios ruins, desgraçados fins)

O cidadão brasileiro, ao ingressar na Polícia Militar, tem a sua cidadania reduzida (não estou autorizado a generalizar o exemplo para as demais Polícias Militares brasileiras, mas até poderia...). Este cidadão, na realidade, ao ser alçado à condição de “militar estadual”, perde boa parte de seus direitos sociais e trabalhistas enquanto era civil e se transforma num cidadão capenga. Daí, sua cidadania se torna ambígua e o preconceito desaba sobre ele como um temporal acompanhado de raios e trovões. E deste modo abrupto (o policial-militar nasce do útero da sociedade em “parto caudal”) o cidadão basicamente bom transforma-se num ser fundamentalmente mau; e assim é tratado pela imprensa e pela sociedade em consequência das más notícias que estigmatizam a profissão policial-militar (insisto no hífen, pois se trata de composto por dois substantivos).
O mais desagradável é que o militarizado sistema hierárquico-piramidal põe o discurso no topo, e, seja qual for o seu conteúdo, passa a ser verdade insofismável. Em se tratando da PMERJ, por mais que a isto ela reaja não consegue vencer as censuras maliciosamente despejadas por “inculpáveis” políticos ávidos por agradar uma imprensa ideologicamente preconceituosa contra os militares estaduais. Mas, verdade seja dita, – e para não pensarem que me refiro apenas ao presente – vivenciamos nos dias de hoje uma positiva mudança com vistas a diminuir as injustiças internas*.
Tudo bem, mas o “discurso da verdade” pertence sempre ao poder maior, e à PMERJ cabe apenas reafirmar do modo mais digno possível a versão que lhe é imposta, pois o estigma não pode ser absorvido pela corporação e deve ser rapidamente individualizado. E assim ele culmina gravado a ferro em brasa no lombo do policial-militar, geralmente praça, por representar o maior quantitativo e mais se expor às observações críticas do ambiente onde opera na proteção do cidadão sem o direito de falhar. Pesa sobre a praça a tragicômica história dos penicos superpostos no militarismo, ou seja, só o de baixo possui fundo para escorar toda a merda posta no mais alto penico, sem fundo, e ela escorre velozmente pelos demais penicos até abarrotar o último deles: o do soldado. Claro que a merda pode até subir... subir... subir... bem devagar... Porém, muito raramente transbordará por cima...
Sim, sim!... Com o foco no fiofó da ralé, toda vez que surge alguma notícia ruim (falsa ou verdadeira, não importa) a PMERJ imediatamente reage reafirmando seu indefectível rigor disciplinar: anuncia garbosamente o elevado número de policiais-militares punidos e excluídos da corporação e fim de conversa, missão cumprida, a corpopração não cuida de proteger os fundamentalmente maus policiais-militares, embora os tenha recrutado entre cidadãos brasileiros basicamente bons, selecionando-os mediante rígido concurso público e acurada investigação social, o que faz pressupor que o melhor de todos os cidadãos é aquele que consegue ingressar na corporação.
Eis a contradição: o cidadão limpo em sua vida civil torna-se imprestável intramuros dos quartéis e é jorrado de volta ao seu mundo anterior não mais como cidadão basicamente bom, mas como um ex-PM fundamentalmente mau. É com esse estigma que ele encerra sua malfadada profissão, não sem antes ser trancafiado como “bandido fardado” (tenha ou não praticado algum crime pelo qual haja sido acusado) até que prove ser inocente (raridade geralmente recebida com desconfiança pela sociedade devido à influência negativa disseminada pela mídia); e desse modo, então, ele retorna ao mundo civil marcado como gado pé-duro, magérrimo, contaminado por todos os vermes, não mais servindo nem para o abate clandestino e o consumo por famélicos miseráveis. Torna-se, na verdade, um zero à esquerda, um nada inútil, uma praga social, “banda podre” tão perene como o plástico a não servir nem de estrume: não arranja emprego decente e vê-se renegado até por criminosos quando tenta ingressar no submundo crime. Sim! Sim!... Só por ser ex-PM o seu destino é a má-vida, exceto quando amparado por bons parentes e poucos amigos, para que não digam que radicalizo...
Aguardando respostas, indago: “Onde está o erro?”... No cidadão malformado que burlou a vigilância rigorosíssima da PMERJ e nela ingressou pela porta dos fundos?... Ou no cidadão basicamente bom que cruzou o portal de entrada da PMERJ com louros de aprovação intelectual e social e foi transformado pela asceta corporação em fundamentalmente mau até ser despejado pela porta dos fundos como ex-PM?...

*A legislação reguladora do comportamento disciplinar da PMERJ (destacando-se, por relevante, o seu Estatuto) é cópia exata ou deformada de sua correspondente no Exército Brasileiro desde os idos de 1946 ou até desde antes, quiçá ainda do tempo da missão militar francesa contratada em 1919, ao findar a I Grande Guerra. Ressalve-se, porém, que o EB, do qual as Polícias Militares brasileiras são forças auxiliares, já se atualizou em função da vigência da Carta Magna de 1988. E não exige que as forças auxiliares adotem literalmente suas normas. Enfim, admite que as PPMM instituam seus próprios modelos comportamentais tendo em vista as profundas diferenças de suas missões em comparação com as daquela força federal. Mas, pensando bem, pouca coisa mudará no sistema hierárquico-piramidal do militarismo, que é apenas uma versão mais arrochada da pirâmide social cuja base é mui larga para dar estabilidade ao Estado opressor e a seus mandatários eternos que se situam no topo.


Um comentário:

Paulo Xavier disse...

Que texto fantástico, quanta verdade inserida nele. Vivi tudo isso na sua plenitude, mas disse a mim mesmo, vou começar do zero, vou dar a volta por cima e provar a todos que o que aconteceu comigo foi um acidente de percurso, que não sou do mal, sou do bem, e assim fiz.
Cel Larangeira, é muito ruim e difícil ser ex-PM, é preciso ter fibra, ter garra, ter gana para não se deixar cair novamente. O que eu fiz, evitei tudo que me prendia ao passado, inclusive me desfiz logo da minha arma, mesmo sendo ameaçado de morte constantemente, evitei más companhias, adquiri resistências morais, procurava melhorar a cada dia e melhorei como cidadão e como chefe de família, voltei aos estudos, concluí um curso técnico numa das melhores instituições de ensino do país (Cefet) e logo me adaptei ao mercado de trabalho e posso afirmar que sou vencedor. Nesta semana dei entrada na minha aposentadoria, são 21 anos trabalhando só para a Petrobras que me deu uma oportunidade e acreditou em mim (1989), mas quantos tiveranm a mesma oportunidade ou a mesma sorte?
O Batalhão de excluídos é enorme, cada caso é um caso e a história sempre se repete ainda que de formas diferentes.
Posso afirmar que apesar da experiência e dos amigos (pouquíssimos) adquiridos na caserna, foram mais de 9 anos perdidos na minha vida, os motivos já foram expostos no texto, mas a vida continua e graças a Deus estou (estamos) envelhecendo com dignidade apesar dos pesares.
Estive ausente por uns dias, estava viajando fazendo curso.
Parabéns pelo corajoso texto que contém somente verdades, mesmo contra a opinião de alguns.