domingo, 17 de janeiro de 2010

Sobre a entrevista do Comandante-Geral da PMERJ


Embora eu não esteja residindo em Niterói, meus filhos permanecem na cidade, o que a põe na minha lista de prioridades. Também conheço razoavelmente Niterói e São Gonçalo, bem como vivenciei um período (de 1975 para trás) em que o efetivo da antiga PMRJ nessas duas cidades poria o da atual PMERJ na condição de ridículo. Inclui-se na sublinha o fato de duas Unidades Operacionais (UOp) – Batalhão de Neves, em São Gonçalo (antigo 4º BPM, depois da Fusão renomeado 11º BPM e transferido para Nova Friburgo), e Ala de Cavalaria, em Niterói – e uma Unidade Administrativa (Batalhão de Serviços Auxiliares – BSA– também sediada em Niterói) terem sido desativadas de 1975 para cá, sem falar que a formação de novos soldados ocorria igualmente em Niterói (Companhia Escola de Recrutas) e o treinamento externo se dava neste ambiente social. Também o então 1º BPM, hoje 7º BPM, sediado no bairro de Alcântara, São Gonçalo, formava seus recrutas e os treinava em ruas gonçalenses, prática que concomitantemente ocorria em Nova Friburgo, Campos, Barra do Piraí etc. Enfim, formava-se também o PM, geralmente recrutado no seu habitat, na UOp aonde ele iria posteriormente servir, o que garantia a eliminação do anonimato, mal que assola a PMERJ nos dias de hoje. Significa dizer que atualmente o PM não é conhecido pela comunidade à qual presta seus serviços. É um “estranho no ninho”, apenas um rosto na multidão de parceiros que com ele atuam onde não nasceram nem cresceram. Entretanto, há a favor do anonimato do PM o risco de ele ser reconhecido por bandidos no seu ambiente de origem, eis que criado lado a lado com esses colegas de infância que descambaram para o crime. Mas isto deveria funcionar como fator desfavorável ao bandido e não ao PM. Portanto, o modelo atual permite um anonimato também capaz de encobrir condutas desviadas, o que, a meu ver, é ruim.
Escrevo estas linhas para comentar sobre uma entrevista do ilustre Comandante-Geral da PMERJ publicada no Caderno de Niterói do Jornal O Globo de 17/01/2010. Com o respeito devido, e sabendo-o democrata, ouso discordar dele em alguns pontos. Primeiro quanto à afirmação que faz de que, para implantar uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) em Niterói ele precisaria de ordem, o que sugere não ter partido dele as anteriores ordens de ocupação. A assertiva dele é no mínimo contraditória. No fim de contas, a corporação, através do seu labor de inteligência, é capaz de determinar a utilidade e a prioridade de qualquer ocupação. Por outro lado, reforça sobremodo o que venho denunciando: não há nenhuma lógica operacional na escolha das ocupações, a não ser pelo fato de as favelas situarem-se na Zona Sul da Capital (exceto a Cidade de Deus, que, por acaso, é emblemática...), assim atendendo a objetivos político-econômico-financeiro-eleitorais. Portanto, é natural (embora anormal) que a ordem venha de cima para baixo e não resulte de alguma sugestão de baixo para cima, embora a palavra final pertença ao andar de cima, como prescreve o Decreto Federal 88.777, de 30 de setembro de 1983 (R-200), com a ressalva de que se trata de legislação draconiana e servil ao regime militar, grafada em época que secretário de Segurança Pública era cargo de general do Exército Brasileiro... Há ainda a relevar o fato de o Morro do Estado, situado em Niterói, ter sido o primeiro germe de UPP, e hoje incorre no risco de ser também a primeira prova de sua efemeridade. Não sei quais razões levaram a PMERJ a expulsar os traficantes dessa comunidade considerada das mais importantes da cidade, a não ser pelo fato de que os moradores geralmente são absorvidos como mão-de-obra de serviços gerais, incluindo o emprego doméstico, pelas elites residentes nos bairros nobres: Icaraí, Ingá, Boa Viagem, Gragoatá e Centro. Mas o insucesso da UPP do Morro do Estado (não é outra coisa que lá foi implantada) é um risco, pois servirá como constatação de um futuro infeliz para as demais UPP.
Outro aspecto da entrevista do ilustre Comandante-Geral, do qual respeitosamente discordo, é quando ele nega a migração dos bandidos do Rio de Janeiro para Niterói e São Gonçalo. A uma porque, mesmo antes das UPP serem instaladas, essa migração já ocorria. Como há o predomínio do Comando Vermelho nessas cidades vizinhas da Capital, a migração não se dá de forma violenta, a não ser em alguns casos particulares de facções rivais homiziadas na Capital tentarem conquistar territórios em Niterói. Cito o exemplo de um terrível confronto que observei e até vivenciei por estar residindo temporariamente em bairro periférico de Niterói: Santa Rosa (Morro Souza Soares). Houve a conquista e a ocupação do Morro Souza Soares por facção rival, com a expulsão dos traficantes nativos, e depois houve o contra-ataque e a reconquista do território pelos traficantes originais. Muito sangue escorreu em vista desta escaramuça assistida por centenas de moradores assustados, que se postaram na Rua Mário Viana – ao pé da favela, de onde saíram às pressas e de madrugada. Eles só retornariam às suas casas em dia claro e depois de os traficantes “amigos” retomarem o lugar. Atualmente, posso citar uma favela situada no Desvio de Dona Zizinha, São Gonçalo, com os traficantes locais acolhendo sem rusgas seus comparsas expulsos da Zona Sul do Rio de Janeiro. Há outros exemplos, mas, afinal, não sou o serviço de inteligência da PMERJ para ficar perscrutando “diásporas de bandido”. Essas informações eu as possuo porque convivo com parentes nesses lugares.
Quanto ao ocorrido na Favela Buraco do Boi, na Avenida do Contorno, Niterói, novamente me desculpe o ilustre Comandante-Geral, não há fato isolado e episódico desses moldes no mundo do crime. O tráfico, além de sistemático é sinérgico, o que torna impossível a tese do “fato episódico e isolado”. Claro que o ocorrido na favela tem a ver com a própria evolução ou involução da macrocriminalidade do tráfico. Aproveito (sem defender) a “deixa” do Dr. Mariano Beltrame no sentido de que “não se faz omelete sem quebrar ovos”; eu diria que o combate à macrocriminalidade do tráfico é essa omelete da fala dele, e o havido na Favela Buraco do Boi é um dos ovos da alegoria, que aqui se encaixa como luva. Portanto, creio que a “inteligência” se precipitou ao afirmar a inexistência de nexo com as UPP. De fato, é possível superficialmente afirmar a inexistência de nexo direto com as UPP; indiretamente, porém, há de haver algum: tudo é narcotráfico, narcoguerrilha etc. Daí a necessidade de a inteligência caprichar na visão panorâmica da criminalidade como um polissistema complexo. A visão particularizada me parece labor de investigação criminal a partir do fato ocorrido, missão da PCERJ, que ao fim e ao cabo poderá concluir ou não pelo nexo. Aí sim, a afirmação da ausência nexo estará amparada. Afinal, houve morte de civis e ferimento de militares estaduais, o que implicará instauração de inquérito policial na DP da área, para a qual a ocorrência deve ter sido encaminhada.
Quanto à troca de comando, um dos temas da entrevista, não me cabe comentar, é parte do poder-dever do comando da corporação trocar comandos. Porém, – e até já manifestei esta opinião em comentário no meu blog, – colocar coronéis nos EM dos Comandos Intermediários (CI) me parece excelente medida visando à descentralização futura da autoridade e da responsabilidade dos CI, já que existem. Apenas ressalvo que o CI deveria ser integrado à legislação federal com maior clareza, em especial ao R-200 (Decreto Federal 88.777, de 30 de setembro de 1983). Porque a noção de “autoridade competente” direcionada aos Comandos de Unidades e Frações antes da existência de CI não deixa dúvidas de que se refere às UOp (batalhões, companhias independentes e frações), já que fala em “planejamento e execução”, incumbências exercidas pelos EM e Companhias das UOp ou das Companhias Independentes e Núcleos de Batalhão. Considera-se, portanto, que o CI não “executa” e seu “planejamento” se superpõe ao das UOp subordinadas; ou então o CI apenas agrupa planejamentos dessas UOp, que, por sua vez, são vinculadas ao Estado-Maior Geral (EMG) da PMERJ, que cuida do plano global da corporação e fiscaliza a sua execução.
É sabido que CI não executa policiamento algum. Por outro lado, limita-se a planejar não sei o quê, considerando-se que os EM das UOp planejam e executam o policiamento e têm seus planos aprovados pelo EMG, que supervisiona cada UOp cotidianamente e fiscaliza seus atos administrativos e operacionais por meio de Inspeções. A criação dos CI mantém-se ainda na obscuridade da sua intenção. Foi criado para planejar o quê? Foi criado para executar o quê?... Ora, se antes havia dois EM (UOp e PMERJ), hoje há três, assim consumindo mais efetivo. Os CI, até que se definam claramente os objetivos de sua estruturação, não me parecem úteis. Não planejam senão o que já está planejado nem executam mais do que já está sendo executado pelas UOp. Claro que isto pode ser consertado. Todavia, manda a boa administração que a departamentalização evite inchaços onerosos. Fosse a PMERJ uma empresa particular, ela estaria consumindo seus lucros em estruturas dispensáveis. Mas como o dinheiro é público, isto não é problema... Por conseguinte, há de haver uma avaliação isenta da utilidade ou inutilidade dos CI. A serem os CI considerados úteis, uma legislação clara deveria estabelecer suas funções de planejamento e execução como manda a legislação federal, e, principalmente, sua competência nos termos desta legislação ainda em vigor. Mas, como adequar o planejamento e a execução referidos no decreto federal aos CI?
Há, inegavelmente, uma superposição de estruturas. Há três EM: dois (EMG e EM do CI, com o primeiro planejando e o segundo “planejando”) e um EM de UOp – planejando a execução aprovada pelo EMG e executando-a, tudo rotineiramente supervisionado e periodicamente inspecionado pelo escalão superior. Então, CI pra quê? Se pelo menos as UOp tivessem seus EM extintos, sendo suas funções concentradas no CI, aquelas ganhariam efetivos para jorrar nas ruas. Compensaria, porém, a medida? No meu modo de ver, não! Vejo, por enquanto, – e respeitando os juízos contrários, – os CI como “cemitérios de luxo para sepultar coronéis”. Parece-me que tudo tem a ver com a criação de cargos comissionados no âmbito da corporação, meio de agraciar alguns com bons ganhos em detrimento dos maus ganhos da tropa. O primeiro dos males ocorreu pós-fusão da GB com o RJ, quando criaram os dois primeiros CI: o CPI (Comando de Policiamento do Interior) e o CPC (Comando de Policiamento da Capital); mas esse desdobramento inicial para acomodar os caciques de duas Polícias Militares estranhas entre si, – agora cargo comissionado, – propagou-se como doença na era do brizolismo e governos seguintes. E foram surgindo outros CI como catalisadores de reações negativas, de dissidências e de inimizades produzidas pela própria fusão de instituições que não guardavam entre si nenhuma relação (misturaram as duas PPMM como se fosse possível misturar infante com cavalariano ou artilheiro. Até é possível, mas experimente colocar um infante comandando artilheiros, ou um cavalariano comandando infantes, ou vice-versa...). Daí é que, no início, puseram um joão-de-barro comandando o CPI (antigo RJ) e um azulão comandando o CPC (antiga GB). Mantiveram em separado a água e o vinho... O cargo comissionado entrou nessa celeuma dividindo bem mais que somando. Foi e continua sendo forma de neutralizar reações uníssonas de coronéis por melhorias salariais. E como coronel sem cargo ganha mal, e como são poucos os que hoje não gozam da regalia comissionada, a tendência é de a tropa ganhar mal. Pelo visto, a continuar assim, mais CI surgirão nesse contexto confuso, e mais cargos comissionados serão integrados como “cala-bocas” daqueles que poderiam e deveriam defender o interesse da tropa no seu todo: ativos, inativos e pensionistas.
Em 1989, comandei o 9º BPM, UOp situada na Zona Norte do Rio. Subordinava-se ao CPC. Confesso abertamente que o CPC atrapalhava mais que ajudava. Os conflitos entre a UOp e o CPC eram aberrantes. Não estivesse em missão especial (fui para lá incumbido de prender o traficante Darcy da Silva Filho, o Cy de Acari, tão famoso na época quanto o é atualmente o Fernandinho Beira-Mar), eu estaria fora em segundos. A importância da missão me punha em contato permanente com o Comando-Geral da PMERJ, que me dera carta-branca para lograr êxito na missão. Como eu disse, não fosse assim, eu estaria exonerado devido aos atritos com o CPC. Incrível é que o coronel comandante do CPC era e é meu amigo, para que não pensem que se tratava de alguma desavença pessoal. A questão era estrutural e conjuntural. Era de indefinição de onde começa e onde termina o poder-dever de cada um, ou seja, a competência para agir como autoridade administrativa de segurança pública. Na verdade, eu nem me reportava ao CPC. Tudo se relacionava com o EMG, de onde vinham as ordens, as supervisões e as inspeções. O CPC se sobrepunha ao batalhão somente para verificar a rotina do policiamento ostensivo, o que já era feito pela supervisão da UOP em três níveis hierárquicos: por graduado, por oficial subalterno e por oficial superior; mais ainda a supervisão do EMG, também exercitada por oficial superior. Demais dessas, havia a supervisão do CPC, acréscimo desnecessário, mais para ostentar poder; por acaso, retaliatório...
Muito bem, o assunto não tem fim. Não sou derrotista nem faço oposição ao atual Comando-Geral da corporação. Pelo contrário, torço pessoalmente pelo sucesso pessoal e profissional dele, assim como não questiono a gestão do atual secretário de Segurança Pública, que não é melhor nem pior que os anteriores, nem seus sucessores o suplantarão em qualidade ou defeito. Reclamo de assuntos pontuais, sim, porque sei que o sistema (político) é anacrônico e precisa ser questionado. Também sei que os CI, afinal, e mesmo que paradoxalmente, se ajustam aos conceitos da Teoria Geral da Administração, que subdivide o Ambiente em Geral, Intermediário e Específico, vinculando-os respectivamente aos Níveis Estratégico, Tático e Operacional da Organização. Daí é que os CI se deveriam integrar a um novo Planejamento Organizacional que os transformasse em estrutura útil e fortalecida, com objetivos definidos e resultados a apresentar, e assim saísse da atual subjetividade que os transforma numa espécie de “mausoléu de coronéis”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Como sempre a coerência é destaque nas sua visão dos problemas da PMERJ.
Gostaria somente acrescentar que a situação do "cemitério de coronéis" foi motivada pelo novo QDE e pela "oxigenação" que só serviram até agora para aumentar o número de coronéis sem as respectivas funções, incrementar a disputa pelos cargos importantes("muito cacique para pouco índio") e atender desmedidas ambições de promoção algumas turmas de Oficiais.