domingo, 10 de janeiro de 2010

Minha viagem num trem chamado PMERJ




Tempos de nostalgia...




Não há realidade feliz que valha a décima parte de um sonho bom.” (Humberto de Campos – A mosca azul – Carta a um frade)



Embarquei nesse TREM-PMERJ como soldado raso em 29 de junho de 1965 e requeri a inatividade em 10 de abril de 1990, com direito à contagem em dobro de licenças-prêmios e férias não gozadas. Dispensei o tempo de Previdência Social do meu labor desde os 14 anos de idade. Era em Laboratório de Análises Clínicas e eu almejava ser patologista. Por influência de tios, porém, e pelo azar de ter passado nos “testes projetivos” do exame psicotécnico e demais exames, enfiei-me na farda cáqui sonhando com a minha “mosca azul”... Escorreu-se invariavelmente o tempo... Durante a minha carreira de oficial superior, no posto de tenente-coronel, comandei apenas um batalhão, o 9º BPM, sediado na Zona Norte da Capital. A minha decisão de não mais comandar nada, pedindo o pijama em pleno exercício do comando, deveu-se a uma série de fatores que se poderiam resumir num só: incorformismo.
Vejo os batalhões da PMERJ como vagões de um só trem puxado por uma única locomotiva. Nesta se acomoda a cúpula da corporação, e nos vagões estão suas estruturas operacionais, administrativas e de saúde. Interessam-me, porém, a locomotiva com o maquinista e seus foguistas e os vagões que conduzem as unidades operacionais. Tudo vai preso ao trilho cuja bitola, pelo que dizem as más línguas, foi definida pelos ingleses depois de a locomotiva estar pronta e acabada e seus eixos de rodas britanicamente medidos. Tornou-se assim padrão mundial: para onde vai o trilho vai o trem... Segundo ainda dizem as línguas mais ferinas, a bitola se reporta aos carros de combate romanos e ao traseiro de dois cavalos, ladeados entre si, definindo a distância entre as rodas...


Seria ótimo se o nosso TREM-PMERJ tivesse à sua disposição muitos trilhos para rodar as suas rodas, indo e voltando, dobrando e desdobrando, virando, desvirando e revirando, enfim, se tivesse a flexibilidade do carro ou da moto ou do trapezista dando cabriolas no ambiente social. Mesmo assim, seria um trem e não mudaria o sentido da alegoria. No nosso TREM-PMERJ importa o modelo estrutural que coloca a locomotiva na dianteira a puxar os vagões, ou na traseira a empurrá-los. Num caso ou noutro, tudo é locomotiva com seus vagões presos ao carril enferrujado.
Nos vagões estão os policiais-militares, que grafo com hífen como se grafa a couve-flor, ou seja, para unir dois substantivos, a mais pura verdade. Entre os policiais-militares estão o comandante do batalhão, seu estado-maior, os oficiais, os graduados e as praças. A lotação do vagão, porém, não é estática. Muitos descem nas estações por tempo completado, por doença, ferimento, morte, desistência, por se tornar um passageiro indesejável, ou, por fim, pulam fora voluntariamente, como foi meu caso. Em qualquer das hipóteses, porém, a parada é rápida, não dando tempo de preencher todos os lugares vazios. Também se pode considerar um batalhão ocupando dois ou mais vagões, ampliando-se a visibilidade e os lugares vazios. Importa, porém, a ideia do vagão preso ao trilho e arrastado ou empurrado por uma só locomotiva. E assim segue o TREM-PMERJ na bicentenária viagem em busca da sua “realidade feliz”...
Havia-me um colega PM, hoje defensor público, que definia a profissão policial-militar como a “profissão do nada”. Falava isso nos tempos em que éramos aquartelados. Cabia-lhe inteira razão, o trem nem mesmo andava e a farda era a da música de Vandré... Todavia, quando o TREM-PMERJ até então estacionado foi às ruas, deu de cara com o trilho adrede fixado. E assim é hoje: o trem percorre os trilhos determinados por seus mentores ou mandatários, até que os maquinistas, foguistas e passageiros o abandonem ou sejam abandonados em algum daqueles acidentes de percurso.
É triste a profissão de maquinista, aqui equivalente ao comandante-geral: ele não pode conduzir o trem senão indo em frente ou voltando. E a decisão ir ou voltar geralmente não lhe pertence, vem de cima, de quem não sabe pilotar trem nenhum e vive tentando descarrilá-lo: o governante. É o que via e sentia antes de 1990, até que desembarquei. Hoje não vejo nada diferente, ou seja, o TREM-PMERJ aumentou o número de vagões sem, entretanto, conseguir lotar os seus bancos; viaja meio vazio ou meio cheio, dubiamente, embora a “passagem” (remuneração) seja das mais irrisórias, atualmente a penúltima mais barata do país, só perdendo para o “trem gaúcho”...
Círculo vicioso... Ou melhor, retas e sinuosidades viciosas, porque aos vagões só lhes cabem fazer o percurso determinado pelos trilhos e pelo líder da locomotiva, este que segue a ordem de cima para pegar esse ou aquele carril e ir em frente ou voltar. Só ir em frente ou voltar... Ah, libertei-me do TREM-PMERJ tão logo meu tempo me permitiu. Não me acalentava a ideia de trafegar em vagão idêntico ao meu e em trilhos direcionados ao mesmo destino. A inflexibilidade das viagens fazia-me sentir um autômato liderando robôs. Pulei fora do TREM-PMERJ e hoje estou sentado numa estação vendo-o passar. Hoje sou povo à espera de um TREM-PMERJ que me traga paz e felicidade, mesmo que eu seja o último da fila. Mas ele nada me traz. Continua a rodar nos mesmos trilhos, somente parando para embarque e desembarque dos tripulantes que se renovam na aparência, mas se mantêm indefectíveis no comportamento. Pelo que vejo, depois de tantos anos passados, o TREM-PMERJ é e sempre será o mesmo...
A posição de maquinista-mor é disputadíssima. Como estão todos embarcados, torna-se “briga de siri na lata”, até que um dos pretendentes logra a vitória, nunca por mérito, mas por sorte, já que todos são números lotéricos dentro de um mesmo saco (a meritocracia iguala como gêmeos univitelinos todos os interessados). O que for alcançado pela mão parturiente recebe a à luz do poder tão ansiado. Eis como emerge das trevas corporativas o comandante-geral, o maquinista-mor que embarcará seus foguistas e determinará o novo líder de cada vagão, este que, no entanto, jamais sairá do trilho, nem o trilho jamais sairá do lugar, de modo que o TREM-PMERJ possa ser visto pelo povo sempre e britanicamente no horário, embora nada leve ou traga para lugar algum.
Hoje, com a modernidade, o TREM-PMERJ é movido a controle remoto pelo governante, considerando-se ainda a possibilidade de ser ele, e somente ele, o detentor do poder de desativar algumas linhas férreas ou de interromper algum carril para provocar acidentes de percurso. Dura é a vida do TREM-PMERJ! Não passei de vagão em vagão, como a maioria dos colegas insistem em fazê-lo, e não os culpo, pois almejam ser os maquinistas futuros. Ah, fosse eu o maquinista, decerto tentaria rodar o TREM-PMERJ fora dos trilhos e o desastre haveria de haver!... Por conseguinte, em não podendo me livrar dos grilhões férreos nem descarrilar o TREM-PMERJ, fiz o que me era devido: desembarquei dele voluntariamente.
Hoje vejo, não sem tristeza, o TREM-PMERJ passar do mesmo modo de antanho. Nem sei se há mais ex-tripulantes nas estações e cemitérios que tripulantes dentro do TREM-PMERJ. Como eu disse, vagões são acrescentados, mas seus bancos não são totalmente preenchidos. Estica-se o TREM-PMERJ, aumenta-se a carga a ser empurrada ou puxada pela locomotiva, o povo aplaude ou vaia a sua passagem cada vez mais demorada, mas o trilho é o mesmo, tal como o é a indiferença do TREM-PMERJ às reações populares. Tudo, na verdade, objetiva agradar ao detentor do controle remoto, eis a falsa impressão de grandiosidade corporativa, a nossa “mosca azul”: mostra-se a rama da árvore para lhe ocultar um tronco apodrecido à espera do tombo. Mas, como toda árvore que a mãe-natureza quer salvar, há de haver na nossa carcomida árvore pelo menos um broto na raiz para tudo recomeçar... quem sabe desta vez fora dos trilhos?...

8 comentários:

Inconfomado disse...

Muito bom, nao importa quem seja o cmdt, ele so conseguira estar numa suitevipmasterultra, pois o trem so pode ir ali no trilho...quem nos salvara...

Rose Mary M. Prado disse...

"Não fiz o melhor, mas fiz tudo para que o melhor fosse feito. Não sou o que deveria ser, mas não sou o que era antes."
Martin Luther King Jr

Mulher na Polícia disse...

Professor Emir,

É um texto gostoso e dolorido de se ler. Não quero acreditar que isso seja por fim a realidade, mas temo que o senhor esteja mais que certo.

Mesmo que o senhor me conte histórias tristes, eu passaria um bom tempo do seu lado aqui nessa estação. Não sei muito por quê. O senhor me faz sentir que é uma ótima companhia.

:)

Obrigada pelo texto, professor.

Emir Larangeira disse...

Obrigado pelo incentivo. Mas, infelizmente, a realidade é esta, pelo menos na minha visão. Hoje mesmo eu fui a uma passagem de comando, em Niterói, e pude logo de pronto perceber o quanto é dura a realidade. Primeiro soube da morte do Cel Jorge de Almeida, grande amigo e músico sensacional. Também reencontrei companheiros mais antigos, que ocuparam altos escalões da PMERJ e do Governo, alguns deles doentes irreversíveis. Lá eu pude perceber o quanto o poder é efêmero e como tudo é igual: formatura, ordem do dia, tropa formada no sol, canto de hinos etc. Eis o velho trem trocando o comandante do vagão. Na platéia (estação), postavam-se muitos que já comandaram seus vagões e até a locomotiva, como maquinistas. Confirmei, pois, a dolorida tese. Pois até o fundador do batalhão, presente à solenidade, não teve o seu nome citado. É terrível constatar isso.
Valeu a intervenção!
Abraços

Anônimo disse...

Prezado amigo Coronel Larangeira:

Apesar de estar "começando agora" na PMERJ, "acho", que conheço alguma coisa e gostaria de registrar a minha insatisfação com a saída do Coronel Maurício do comando do 12º BPM. Lamentavelmente, o comando da PMERJ não foi feliz nesta troca.
Não conheço o novo comandante, mas, desde já, desejo sorte ao mesmo e claro, que seja bem-vindo.
O que me consola, é saber que ainda existem coronéis como o Coronel Maurício e o Coronel Princípe ainda em atividade, mas, sei que não por muito tempo, mas, com sinceridade, espero que ambos (quem sabe?), comandem a nossa querida PMERJ.

Forte abraço.

André Luiz Tavares.

Emir Larangeira disse...

Concordo com o companheiro quanto à excelente qualidade profissional do que saiu e do que entrou. O Cel Maurício provou em seis meses de comando que é um homem preparado para liderar a tropa em qualquer lugar. O TCel França possui larga experiência por ter atuado durante muito tempo no ambiente social de Niterói. Creio que a mudança de um Coronel por um Tenente-coronel responda à sua pergunta. Parece-me que o comando da PMERJ está montando uma estrutura priorizando tenentes-coronéis em comandos de Unidades Operacionais, exceto no caso do BOPE, que é Unidade Especializada. O Cel Maurício saiu consagrado por uma promoção por merecimento e será Chefe do EM de um Comando de Área, cargo mais importante que comando de batalhão, posto que reúne diversos batalhões subordinados. Quanto à mudança, estou otimista com o critério que parece estar ganhando corpo na PMERJ. UM CPA forte permitirá a descentralização de responsabilidade e de autoridade. A corporação necessita urgentemente disso: de distribuição real do poder, hoje concentrada no comandante-geral, precursor desta medida de fortalecer os CPAs, o que vejo com bons olhos. Você tem razão quando entende que ambos (Cel Maurício e TCel França) poderão um dia comandar a PMERJ. Tanto eles como quaisquer oficiais superiores com o Curso Superior de Polícia estão preparados para tão importante labor. Mas, quanto mais os coronéis forem fortalecidos em comandos intermediários, mais a PMERJ será descentralizada e o comando-geral não terá sobre os seus ombros tanta responsabilidade e tanto poder concentrado, o que não é bom. Vamos apostar na mudança, que não afeta senão para melhor as pessoas nela envolvidas. E torcer para que tudo dê certo.
Obrigado pela intervenção.
Abraços.

Regiane C disse...

Olá querido!!! Vim aqui por indicação do blog mulher na polícia, depois de um recado sobre mudanças na polícia que deixei para ela. Por amor a pessoas queridas que estão e outras que por injustiça não estão mais na corporação.

Peço a Deus a mudança, e que estudantes não levem tiros após uma ordem "superior", enquanto acusam somente os militares.

Abraço forte e fica com Deus.

Emir Larangeira disse...

Oi, Regiane

Obrigado pela visita e pelo comentário. Volte sempre e coloque suas impressões, que muito valorizam minhas ideias.
Abraços