sábado, 26 de dezembro de 2009

FELIZ ANO NOVO!


rio Imbé



Em tempos idos eu era dono do céu, não de todo céu, mas de um pedacinho dele que cobria Santo Antônio do Imbé, roçado situado no Município de Santa Maria Madalena, com acesso por Conceição de Macabu, Município próximo a Campos dos Goitacazes. Ali, no meio da mata virgem, o céu era meu e as estrelas que nele cintilavam estavam tão perto de mim que eu podia até tocá-las em minha fértil imaginação. Eu contava seis anos. Era o ano de 1952...
Tempos de criança, época de aventuras ilimitadas, todas vividas dentro de mim, tempos de fadas e duendes que viviam no céu, mas desciam até mim. O céu falava comigo. Eu ouvia o som das estrelas; elas pareciam morar dentro do meu peito. Algumas corriam o céu me proporcionando um espetáculo somente meu. E quando a lua brilhava, eu pensava que São Jorge acendera todos os lampiões ao mesmo tempo. E meu céu tornava-se lindo! Não havia uma só nuvem entre nós, nada me impedia de ver o espetáculo cósmico que somente me pertencia a mim e a mais ninguém.
As estrelas eram tão vivas que eu as apanhava com as mãos em concha, como quem pega água em ribeirão à luz do luar. Na beira do rio Imbé, o espelho d’água me trazia o céu inteiro, e eu brincava de pegar e soltar minhas estrelas. Também as fazia oscilar no céu agitando a água cristalina que corria diante de mim sem ocultar a alegria por ainda ser cristalina. Até havia jacarés, mas no trecho onde eu me acocorava feito índio o luar era como um poste de luz a alertá-los para algum perigo, e eles buscavam outros cantos do ribeirão. Gostavam também de paz...
Ali no roçado em que eu ficava a ver minhas estrelas, o rio Imbé era tão pequeno e raso que mais se assemelhava a um ribeirão, sim. Os banhos nele, no verão quente, povoam até hoje minhas lembranças. O ar era quente, mas a água corria gelada: o sol não a alcançava plenamente. A floresta sombreava a lâmina d’água e as grosas areias, nuns tons amarronzados, acariciavam meus pés descalços. O único transtorno, às vezes, ficava por conta dos mosquitos ou dos meus sustos ao ver passar uma cobra. Havia muitas. Mas havia os momentos mágicos da visão das pacas na beirada do Imbé. Eram muitas, gordinhas e rebolativas, prato apreciado pelos camponeses que trabalhavam com meu pai no plantio do abacaxi, do café, da mandioca, do milho, da laranja, da tangerina e da cana. Plantavam também hortaliças, mais para o sustento familiar, e mantinham um pomar apinhado de frutas, muitas das quais nunca mais tive chance de saborear, como os abios roxos e amarelos ou os sapotis deliciosos. Bons tempos!
O mundo em Santo Antônio do Imbé me parecia perfeito. Nada me faltava. Eu nem sabia que a Terra era redonda nem sonhava com os povos que a habitavam... Para mim a vida era o meu entorno e um pouco da monotonia campista. A cidade de Campos foi onde eu posteriormente morei e passei a estudar, ficando para trás e para as férias escolares o meu céu do Imbé. Ah, Imbé, a minha palhoça feita de bambus e cipós trançados e cobertos de barro era enorme. Parecia casa de fazenda. Era do pai, ele era dono das terras virgens que aos poucos desvirginava para plantar o alimento e criar os porcos e as galinhas. Claro que não faltavam ovos, nem farinha, nem fubá. Muito menos escasseava a banha de porco e seus pedaços nela conservados em galões ou fortes caixas de madeira. A cidade ali, nas brenhas do Imbé, era desnecessária. Pouca coisa vinha dela, talvez o sabão fedorento que servia para lavar panelas, roupas e corpos. Mas tudo era asseado, até mesmo a fuligem agarrada às paredes embelezava a palhoça. O fogão de lenha era enorme. Além das muitas bocas a receber panelas, havia um enorme tacho para queimar a farinha de mandioca, e outro, menor, onde a mãe fazia seus doces: de mamão, de banana, de laranja; e o forno sempre quente e a produzir bolos de fubá e de aipim e a queimar a cavaca de milho substituta do pão.
A minha vida era, naqueles roçados distantes, um conto de fadas. Alimentado, livre para correr pelas trilhas feitas por homens ou bichos, ainda gozava das delícias das noites estreladas que só me pertenciam a mim. Tanto fazia que eu visse e tocasse minhas estrelas refletidas na água do ribeirão ou as arrepanhasse diretamente dos céus. Era tudo meu: o chão, as árvores, os pássaros, os bichos diurnos e noturnos. E o medo... Porque muitos sons vindos da floresta tomada pela escuridão me amedrontavam, até que eu descobria a sua origem com a ajuda dos camponeses. O sabiá, por exemplo, emitia um som noturno tão assustador que nem parecia o pássaro a cantar maviosamente ao raiar do dia.
Também o brilho de muitos olhinhos na escuridão me dava medo. Não distinguia os bichos pelo brilho dos olhos e me assustava porque sabia estar entre eles o olhar das onças que habitavam as matas virgens de Santo Antônio do Imbé. E sabia delas porque muitos roceiros às vezes as apresentavam como troféus da caça que praticavam para eliminar as comedoras de cabritos, porcos e galinhas. Vinham junto com os cachorros do mato, mas esses eram espantados pelos cães domesticados que habitavam conosco nas cercanias das palhoças. Eram geralmente cães pastores nem tão puros de origem, mas valentes o suficiente para enfrentar até mesmo as onças mais desavisadas ou audaciosas. Elas vinham tão pertinho que quase fuçavam as gentes roceiras. E pagavam o preço da audácia com a exposição do seu couro descarnado. O tiro da espingarda as vencia facilmente, mas me garantia a existência delas, o que me deixava apavorado. Em vista do perigo, no ribeirão eu geralmente ia com o pai, que levava apenas um facão afiado e dizia de peito inchado que era o que lhe bastava para enfrentar jacarés e onças. Meu pai era o meu herói. Ele me deixava ser dono das estrelas e dos roçados. Deixava-me banhar no rio. Sinto muita saudade dele...
Meu pai morreu com 39 anos. Chamava-se também Emir, o que me garante ter sido eu a sua intenção de continuidade. Fui o primeiro dos filhos, porém o segundo da prole de cinco que ele deixou: nasceu na frente a minha irmã Enilda, nome decerto decorrente da aglutinação do “E” ao nome “Nilda”, que é o de minha saudosa mãe. Ela viveu bem mais. Viúva do pai ainda nova, lutou para criar seus cinco filhos e conseguiu vê-los vencedores. Não falhou seu compromisso com o pai, não casou novamente e se dedicou a esperar o seu encontro com o único homem de sua vida. Exemplo de mulher e mãe, hoje está passeando de mãos dadas com o pai lá no meio das minhas estrelas, tendo ainda como companhia o meu irmão caçula, Evanir, todos recepcionados por meu tio Santos (o mais alto, à direita), de geração anterior à do meu pai e cuja foto foi produzida nas terras do Imbé.

Não sei se meu espírito está influenciado por mais um ano que se finda, embora isto não passe de convenção humana. O Universo não depende de tempo nem de espaço ou “espaço-tempo”. Ele existe independentemente de contarmos os anos, dias, meses, semanas, horas, minutos e segundos. E, dentro dele, postados num grão cósmico denominado Terra, nós envelhecemos guardando as lembranças e as informações que captamos nas conversas, nos causos e nos livros. Assim acumulamos nosso conhecimento racional e emocional. Conformados ou não com os nossos limites, seguimos com nossos sortilégios até que passemos a ser lembrança de alguém. Dependemos, porém, de amigos e familiares para construir esses elos que o tempo faz desaparecer. Ficam os mitos, estes, que vencem o tempo, como Elvis Presley e tantos outros. Mas eles e elas são somente lembranças de um tempo que passou e certeza de que o nosso tempo também passará. É o que sentimos a cada ano que finda. Que venha então o ano de 2010 e não nos enganemos com a imortalidade amiga da vaidade, do egoísmo, da arrogância e do desamor ao próximo. A imortalidade pertence aos deuses mitológicos por nós inventados para suprir o mistério da existência humana. Ou então se situa na Revelação Divina, melhor e mais segura válvula de escape de quaisquer mistérios.

FELIZ 2010!

2 comentários:

Rose Mary M. Prado disse...

Doces e inesquecíveis lembranças...
A minha mãe é de Campos dos Goytacazes, seu pai era delegado em Travesão e nas lembranças adora dizer que cresceu comendo delícias feitas com banha de porco, o que hoje em dia todos achariam uma loucura, não é?

Emir Larangeira disse...

É verdade, Rose! Os tempos mudaram, mas não sei se dou vivas ao progresso. Sou do tempo em que as casas dormiam de janelas abertas. Creio que as loucaras estão nos dias de hoje e nas porcarias que comemos como se fossem saudáveis. Viva o passado!
Beijos