sábado, 28 de novembro de 2009

Sobre a prevenção primária na segurança pública



Em busca da paz social


Um dos maiores dilemas que aprisionam a PMERJ desde muitos anos resume-se a confrontar-se ou não com marginais homiziados em favelas. No primeiro caso, está provada a inutilidade dos enfrentamentos, na medida em que eles ocorrem durante décadas seguidas e o tráfico continua crescendo, se armando e se organizando como grupo paramilitar; no segundo caso, a chamada “omissão”, prática marcante no transcurso do brizolismo, provou-se não somente a sua inutilidade como também o modelo gerou violentas contendas entre traficantes e resultou em chacinas de toda ordem, incluindo-se as praticadas por policiais revoltados por verem seus companheiros tocaiados e mortos por bandidos impunes. Em todos os casos, na verdade, os crimes de sangue predominaram e predominam, acumulando-se muitas mortes de marginais, de policiais e de pessoas inocentes desgraçadamente enfiadas nos ambientes dos confrontos oficiais e extra-oficiais. Em meio a esses fracassos operacionais estatais emergiram ainda as milícias ocupando favelas e impondo um novo modo de opressão. Em todos os casos, portanto, um lugar-comum: os favelados ordeiros foram, são e sempre serão as vítimas.
O fato é: há as milícias e suas formas de opressão; há a polícia enfrentando traficantes nas favelas em pirotecnia inútil; há as guerras entre quadrilhas de traficantes disputando territórios por elas dominados tais como as áreas ocupadas por milícias a pretexto de erradicar o tráfico. Há, enfim, um quadro de grave perturbação da ordem pública no qual se insere a própria polícia como fator de violência, já que ela não consegue vencer nem as milícias nem os traficantes. E, por conta dessa baderna generalizada, vão se acumulando os repressivos e omissivos discursos políticos num vaivém indefectível (círculo vicioso), porque tudo não passa de discurso, enquanto a violência sangrenta dos conflitos armados atinge em cheio a sociedade. Enquanto isso, os bandidos saem de seus covis e atacam policiais no asfalto, não respeitando a representatividade estatal dos postos fixos, das viaturas caracterizadas e da farda. Enfim, até parece que o Estado literalmente morreu, só faltando sepultar.
Esta é a síntese do problema, cabendo aos teóricos escolher ideologicamente o que atacar com seus eloquentes floreios, fugindo, claro, do apontamento da solução. Porque não há solução repressiva local, está mais que provado por esse acúmulo de violência durante anos e anos. Mas, mesmo não havendo solução repressiva local (disse outro dia o Cel PM Marcos Jardim, comandante da capital: “Estamos enxugando gelo!”), os políticos insistem nas profecias e em bravatas incríveis, contando para tanto com o apoio duma imprensa de algibeiras cheias de moedas estatais destinadas à publicidade.
Talvez esse seja o principal absurdo: a mídia comprada e comprometida com quem lhe destina verbas publicitárias: os eventuais donos do poder e do dinheiro público. E assim as águas do mesmo rio de sangue rolam indiferentes, e novas águas sangrentas empurram o tempo de uma violência que nunca se esgota, mas que se renova pela vitimização de muitos inocentes no asfalto e na favela. Por fim, a indagação impertinente: qual será o verdadeiro caminho para se restaurar e manter a paz social?
Ora bem, todas as situações de violência armada podem ser alegoricamente comparadas às pontas da chama de um grande incêndio cujo foco (o princípio do incêndio) não se alcança e dele não se cuidou preventivamente. Se existe um terreno limpo e ele é ocupado por detritos inflamáveis, sem quaisquer cuidados preventivos, perderam-se dois momentos de prevenção. Em primeiro lugar, a prevenção primária, que consistiria em manter o terreno limpo, de modo que o incêndio futuro seria impossível; em segundo lugar, em tendo de ocupar o terreno com detritos, é fundamental classificá-los antes como combustíveis e suas possibilidades de se tornarem comburentes dependentes apenas do calor do sol ou de um fósforo para se tornar uma fogueira a alastrar-se por outros pontos igualmente malcuidados. Neste segundo caso, o “triângulo do fogo” está completo, pronto para produzir o incêndio. Dependendo da sua gravidade, os meios para a sua extinção e seu rescaldo podem ser insuficientes, e assim o incêndio entrará em fase de descontrole e se tornará invencível. O seu esgotamento, portanto, será depois de o fogo consumir todo o combustível existente. É o que se vê hoje na segurança pública: um incêndio social de consequências incomensuráveis.
Mesmo assim, nesse quadro caótico, – e como não falamos de detritos, mas de pessoas apinhadas em favelas desprovidas de tudo, embora sempre exaltadas em romantismo falacioso, – alguma solução poderia ser buscada pela intensificação da prevenção primária, ou seja, por ações governamentais e societárias anteriores à ação policial preventiva ou repressiva. Isto se resume aos programas sociais, como vemos alguns poucos ainda em funcionamento e direcionados às crianças e aos jovens favelados, de modo que eles tenham a garantia real de mobilidade social e se desmotivem em relação aos encantos do crime: dinheiro fácil, roupas de grife, impunidade, prestígio doado pelo Poder Marginal que domina a maioria dos favelados e outros encantamentos que se proliferam no ambiente de revolta que se mantém vivo na tessitura comunitária carente.
Trata-se de ação fundamental o resgate social das crianças e dos jovens por meio de programas de incentivo ao lazer, ao estudo e ao trabalho remunerado, respeitadas as regras formais de proteção das crianças e dos adolescentes. Programas dessa envergadura, porém, hão de ser permanentes, abrangentes e profundos. Não se há de admitir crianças e adolescentes sem identidade e demais referências legais que a ponham no mundo como participantes da existência societária. Sem o cadastramento dessa imensa população é difícil iniciar uma prevenção primária destinada a todos. Mas o óbice a ser superado não impede a implantação dos demais programas sociais. As ações de prevenção primária devem ser lançadas simultaneamente, como diversos subsistemas de um só sistema. Para tanto, o projeto de prevenção primária deve ser ambicioso e não considerar obstáculos a não ser para vencê-los por meio de medidas desarmadas e animadoras das comunidades beneficiadas.
Eis aqui um ponto delicado: essas ações não devem ser praticadas pela polícia, que cuida de outra prevenção na segurança pública. Destinar a execução dessas ações a policiais é manobra midiática inútil no contexto real do controle da criminalidade. A polícia deve fazer o seu trabalho sem demagogia, e fazê-lo segundo a lição de Henry Ford: “Tudo que deve ser feito deve ser bem-feito.” Porque a prevenção primária, – embora acompanhada pela polícia no seu nível estratégico e até com a sua participação nesta fase de planejamento, – a prevenção primária deve ser desenvolvida por agentes públicos e particulares (voluntários) específicos de cada área não-policial a ser cuidada. O sucesso dos programas depende da capacitação de cada segmento que deles cuidará. E quanto mais se aproveitar mão-de-obra local, maiores serão as chances de sucesso.
A vantagem de se investir maciçamente na prevenção primária (não-policial) é que não há nenhuma necessidade de estagnação da atividade policial ante a criminalidade e suas formas de violência. Entretanto, a polícia deverá ser a primeira a valorizar e respeitar esses programas comunitários, conhecendo-os, um a um, e sabendo de suas finalidades. Porque cada cidadão favelado, em especial os jovens, devem se sentir como autênticos cidadãos, não mais duvidando de sua existência no mundo e da sua utilidade social. Deste modo, é bem possível que num futuro próximo não tenhamos imagens da criminalidade em sua máxima opulência, como se pode inferir das fotos colombianas. Se um dia essas imagens forem do Brasil, a batalha contra o crime estará perdida, e junto com ela a afundará democracia tão esforçadamente conquistada.





Um comentário:

Anônimo disse...

Caro Larangeira,

Concordo plenamente. Muito lúcida a análise, o que mostra a sua sensibilidade como profissional de polícia e como cidadão preocupado com os destinos de nossa sociedade.É isso mesmo. Temos que parar para dar um freio de arrumaçao e refletir.
Parabéns.

Jorge