sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Sobre a necessidade de polemizar






“De vez primeira que me assassinaram, / Perdi um jeito de sorrir que eu tinha... / Depois, de cada vez que me mataram, / Foram levando qualquer coisa minha...” (Mário Quintana)

Não raramente me questiono sobre a polêmica à qual me entrego como exercício necessário à vida. Creio que o faço bem mais por provocação de terceiros do que por vontade própria. Essas instigações se dão de muitas maneiras, mas eu poderia sintetizá-las em dois vetores principais: as injustiças que conheço ao navegar pela blogosfera policial ou os pedidos de auxílio de companheiros revoltados com o anacrônico sistema a que se integram, nem digo que por necessidade, mas também não me arrisco a afirmar alguma vocação. Há, com efeito, várias motivações ruins e externas, e mui poucas saídas de mim, porque faz tempo me conformei com as injustiças que diretamente me atingiram. Deste modo, – e se dependesse tão-somente de mim, – eu aqui falaria de flores e das delícias oloríferas emanadas dos jardins da vida. Mas não me posso deixar de afetar pelo miasma da maldade a superar o aroma das rosas e dos jasmins – minhas flores prediletas. Porque sinto mais fortemente a fetidez das maldades e das injustiças e me envergonho do agradável cheiro que a natureza me oferece. Assim, não me há como vencer a tendência à amargura e à polêmica. As crônicas, os contos, os poemas e os romances emocionantes que me esperem!...
Sim, que me esperem!... Para mim, seria mui fácil falar de flores. Aprecio as flores e as lindezas da natureza. O mar é belo com seus peixes prateando as águas e as gaivotas planando no céu azul; o mar é maravilhosamente lindo de incontáveis maneiras; também o verde das matas, o cheiro da terra molhada e o pipilar dos pássaros encantam-me deveras. Portanto, me seria simples abandonar as desgraças e ajustar-me sem esforço ou risco às belezas naturais. E tocaria o meu tempo em emotiva contemplação, ainda ouvindo as multivariadas músicas que posso escolher, e visitaria meus parentes e amigos queridos deliciando-me de bons repastos e sorvendo a água açucarada do Bem, em vez do travo em minha boca a me alertar do Mal.
Viver no bem-bom emocional, para mim, é possível; conquistei a suor intenso e muitas lágrimas esse direito. Mas me desmorona o espírito quando me vejo ante a injustiça; e, ao que me parece, a injustiça fez morada no mundo que me cerca e na instituição à qual pertenço de corpo e alma, embora os novos pensem que os inativos não guardam no coração o amor corporativo; alguns pensam até que inativos nem existem. Estão errados, os inativos talvez tenham mais a dar do que muitos novatos que chegam ao fim da carreira praticando as mesmas injustiças das quais reclamavam ao longo de seus tempos, espécie de vindita no fim da festa, desforra do que recebeu injustamente devolvendo a injustiça em dobro. Que pena!
Nada muda na PM. As injustiças são as mesmas. Atropelam-se as leis e os regulamentos de baixo para cima com o aval dos de cima, e de cima para baixo sem o aval de ninguém, predominando em disparada e disparate o segundo comportamento, algo deplorável e reprovado pelos próprios regulamentos indefectivelmente descumpridos. Trata-se de cultura enraizada, e até então não há contracultura capaz de eliminar esse mal da convivência corporativa. E, para agravar tal aberração, nos últimos anos a instituição PM ampliou sobremodo sua estrutura punitiva, cujo exemplo máximo é a Corregedoria Interna, demais de outras estruturas de controle externo (Corregedoria Geral Unificada) que igualmente interferem na disciplina da PMERJ. Claro que essas estruturas precisam apresentar serviço mediante punições a serem catalogadas do modo mais teratológico: quanto mais punições, mais eficiência a ser atribuída elogiosamente aos seus aplicadores, apuradores e pareceristas. A questão humana é secundária. Tanto faz para a PMERJ manter sem assistência ou excluir doentes mentais, alcoólatras ou toxicômanos como transgressores disciplinares, assim como não lhe importa mandar às ruas outros tantos injustamente acusados por crimes que não cometeram. Aliás, assim procede sem atentar para o tempo de serviço deles, nem mesmo se os atingidos estejam na inatividade e por conta dela tenham adquirido algum vício ou doença.
Por amor à verdade, devo consignar que há alguma tentativa de mudança nos tempos atuais, mas, ao que parece, as estruturas extintas migraram o poder de retaliar para a Corregedoria Interna, organismo que funciona como o “Faísca” da alegoria futebolística: bate o córner, corre para a área e faz um gol de mão, logo referendado pelo “juiz” (autoridade competente), que determina sem titubear a colocação da bola no meio do campo para reinício da partida. Ninguém se arrisca a criar um modelo de colegiado imune a pressões, diferentemente do que é hoje, pois é certo que a autonomia dos conselhos e comissões é constantemente abalroada por indevidas e assustadoras intromissões da Corregedoria Interna a sugerir ilegalidade e abuso de poder... Afinal, a legislação e a doutrina são claríssimas ao indicar como autoridade competente para instaurar CD, por exemplo, o comandante-geral, a quem exclusivamente cabe concordar ou discordar das apurações e conclusões do colegiado, no segundo caso (discordância) fundamentando sua decisão. Excetua-se o Conselho de Justificação, cuja instauração é da competência do Secretário de Segurança Pública, com participação intermediária do comandante-geral.
Muito bem, ressalvando que no Brasil, – mormente após a consagração do Estado Democrático de Direito, – não se aplicam os usos e costumes para se fazer justiça (coisas do direito consuetudinário inglês), ninguém poderá elevar a voz “pra dizer que não falei das flores”, como ensaiou o artista, que, por sua audácia, foi parar no exílio. Espero não receber destino idêntico, caso não gostem do que aqui defendo como um direito à livre manifestação do pensamento. Entretanto, arrisco-me a pedir aos leitores que pelo menos pensem a respeito ou me mandem às favas. É o preço por não falar apenas de flores e insistir na sublinha dos espinhos. Neste ponto, não posso deixar de rememorar o escritor russo Nicolai Vassílievitch Gógol, – um dos imortais da literatura universal, – que gravou com letras de ouro em Almas Mortas:

“Feliz o escritor que, passando ao largo das personagens enfadonhas, repugnantes, que nos expelem com o seu triste realismo, aproxima-se das personagens que mostram a elevada dignidade humana (...). Todos o aplaudem e seguem em cortejo o seu carro de triunfo (...). Ninguém o iguala em seu poder – ele é um Deus! Mas diversa é a sorte, outro é o destino do escritor que se atreveu a descortinar tudo aquilo que está diuturnamente diante dos olhos, e o que não enxergam os olhos indiferentes – todo o terrível, espantoso limo de mesquinharia que enlameia a nossa vida, toda a profunda e assustadora frieza dos caracteres fragmentados e vulgares que pululam no nosso tantas vezes amargo e tedioso caminho terrestre (...). Não são para ele os aplausos populares, não lhe será dado ver as lágrimas de reconhecimento e o entusiasmo unânime das almas por ele comovidas (...); reservar-lhe-ão um recanto desprezível no rol dos escritores culpados de ofender a humanidade, atribuir-lhe-ão os vícios dos heróis por ele pintados (...).”

De minha parte, é o que basta!... O próximo texto, como anteriormente prometi, será de terceiros. Estou pesquisando o tema “poder disciplinar” na internet. Há muita porcaria, sem dúvida, mas há trabalhos primorosos que merecem ser lidos, em especial por quem momentaneamente detém alguma parcela desse poder na corporação. Para tanto, porém, é imprescindível o exercício da humildade socratiana do “eu sei que nada sei”. Eis, porém, o grandioso obstáculo, pois na nossa cultura tacanha a maioria “se acha” mais e melhor que o universal e eterno pensador ateniense...

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