segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O Devido Processo Legal

Proponho aos leitores, em especial ao leitor PM, a atenção para mais um texto de renomado autor do meio acadêmico pátrio. Em especial, dedico este apurado estudo aos senhores oficiais e graduados atuantes em Processos Administrativos Disciplinares (PAD) como Escrivães e Membros de Conselhos ou Encarregados de IPM, Sindicâncias, Averiguações, ou como defensores e aplicadores de penas disciplinares. Obs.: grifos do autor e nossos.



Prof. Fernando Gonzaga Jayme





O DEVIDO PROCESSO LEGAL


INTRODUÇÃO



A Teoria Geral do Processo sofreu profunda transformação com a teoria desenvolvida pelo professor italiano Elio Fazzalari na sua obra Instituzioni di Diritto Processuale1, que, reformulando a definição de processo, passa a defini-lo como “o procedimento que se desenvolve em contraditório entre os interessados, na fase de preparação do ato final e entre o ato inicial do procedimento de execução até o ato final, aquele provimento pelo qual ela é julgada extinta, está presente o contraditório, como possibilidade de participação simetricamente igual dos destinatários do ato de caráter imperativo que esgota o procedimento.”2
Essa teoria, acredito, ocupará o cerne do direito processual do próximo século, porque produz “a integração de vários conceitos renovados, que fazem pensar em um passo ensaiado para um novo itinerário, que ainda não se completou”3, concebendo o processo essencialmente democrático, em que as partes litigam em absoluta igualdade de condições, sem nenhuma relação de subordinação entre elas ou entre partes e juiz.
Somente através da concepção do processo realizado em contraditório, com as partes em simétrica igualdade é que se pode afirmar ser o processo garantia da liberdade, exteriorizada na belíssima expressão de SÉRGIO LUIZ: “A liberdade humana é o maior fenômeno do Universo, e o direito processual é a ciência que tem em mira garantila e assegurá-la.”4
Admitir essa teoria significa ruptura incontornável com a teoria concebida por Oscar von Bülow, em 1868, do processo como relação jurídica, ainda hoje, admitida pela doutrina tradicionalista do direito processual, “não já com a sua antiga soberania, sobre toda a doutrina”5 como assinala Aroldo Plínio Gonçalves.
A idéia central é a da identidade absoluta entre ‘processo’ e ‘devido processo legal’, caracterizado pelo contraditório fundado na igualdade. O marco teórico é a obra ‘Técnica Processual e Teoria do Processo’, do Prof. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES, que revolucionando a doutrina processual brasileira define o processo como procedimento realizado em contraditório. Essa teoria foi incondicionalmente recepcionada pelo Direito Processual Penal, como se vê na obra ‘Teoria Geral do Processo Penal’, do Prof. SÉRGIO LUIZ DE SOUZA ARAÚJO.
Esse trabalho consiste em exposição do tema, a partir dos seguintes tópicos: noção histórica, o processo como garantia fundamental do indivíduo, o devido processo legal e os princípios processuais que o integram.

BREVE NOTÍCIA HISTÓRICA

A evolução histórica do processo deve ser desmembrada entre os sistemas do direito: o sistema romano-germânico e o sistema de common law. Apesar de terem trilhado caminhos distintos, esses sistemas tendem a se aproximar através do processo, porquanto a noção de processo é única e universal: processo é procedimento realizado em contraditório, encontrando-se as partes em simétrica igualdade.
O sistema romano-gerâmanico, ao qual estamos inseridos, segundo os tipos de processo, historicamente atravessou, segundo DE PLAZA, as seguintes fases: “1º) processo romano; 2º) processo romano-canônico; 3º) processo moderno.”6
O processo civil romano pode ser dividido em três períodos: o das legis actiones, o formulário e o da cognitio extra ordinem. “Na verdade, em toda a evolução do processo civil romano observa-se uma orientação constante no sentido da superação da primitiva rigidez formal, imposta aos litigantes, em favor de uma cada vez mais acentuada liberdade de formas procedimentais.”7 A principal herança que a doutrina processual moderna recebeu desse período foi a concepção de jurisdição: “O processo romano tinha o juiz como investido de uma função pública – a jurisdictio – para decidir da res in judicio deducta, como árbitro e sujeito imparcial que encarnava a viva vox juris, segundo os elementos fornecidos pelos interessados e de acordo com as provas produzidas.”8
O processo penal, a seu turno, refletia o caráter despótico do Império, asseverando TORNAGHI que o “procedimento de tipo inquisitório, iniciado na Roma imperial com o processo extraordinário e vulgarizado a partir do século XIII, era mais propriamente um inquérito seguido de uma sentença do que o iudicium do Direito Romano clássico.”9 O acusado era considerado objeto do processo, admitindo-se toda espécie de castigos corporais.
O processo germânico estabelecido após as invasões bárbaras, evidencia uma fragmentação do direito em razão da decadência dos institutos jurídicos. Caracterizava-se pelo transcendentalismo; uma das principais provas eram “os ordálios ou Juízos de Deus, e o juramento. O acusado jurava não ter praticado o crime de que era processado, e tal juramento podia ser fortalecido pelos Juízes, os quais declaravam sob juramento que o acusado era incapaz de afirmar uma falsidade. Essa prova do juramento baseava-se “na crença de que Deus, conhecendo o passado, pode castigar aquele que jura falsamente.”10
O processo civil romano-canônico era essencialmente escrito, moroso e formalista e, ao contrário do processo germânico, não admitia a execução sem cognição, o que permanece presente na atualidade e impõe ao autor o onus probandi, “o processo do conhecimento, ordinário por natureza e propósitos, parte da suposição de que o demandante, qualquer que ele seja, não tem razão, a não ser que prove em contrário.”11
O processo penal canônico manteve a inquisitoriedade, com a concentração das funções de julgar e acusar, sem contraditório ou qualquer garantia para o acusado, admitindo-se a tortura como meio de alcançar a confissão, além do sigilo do processo. “Este processo foi largamente aplicado pelo Santo Ofício na luta contra heresias; levou à permissão de ordenar a tortura, instituição recebida do direito romano e aplicada contra os heréticos por uma bula de Inocêncio IV, de 1252.”12
A partir da Revolução Francesa, especificamente com a edição do Code de Procédure Civile, de 1807 e do Code d’Instruction Criminelle, de 1808, há um salto no direito processual, que se livra da amarras do direito material, formando-se o direito processual moderno, em razão da influência do direito francês no continente europeu.
No século passado, a doutrina processual recebeu as bases teóricas para renovação científica e autonomia doutrinária, com a teoria da relação processual de Oscar Von Büllow. “O novo processualismo científico partiu da conceituação publicística do processo civil e da idéia de autonomia do direito de ação, para infundir, em seguida, maior precisão sistemática ao estudo das categorias processuais, submetendo-as a rigoroso método científico.”13 A importância dessa teoria representa uma garantia do indivíduo contra o Poder Judiciário e o próprio Estado. A relação jurídica processual, na lição de TROCKER como obrigação do Estado em exercer a tutela jurisdicional, delimitada em direitos e deveres, remete o direito processual à estrutura do direito público.14
Pelos fundamentos irrespondíveis de GONÇALVES, pode-se dizer que essa teoria do processo como relação jurídica tem, na atualidade, importância apenas histórica, “não é demais insistir em que faculdades e poderes não significam faculdades e poderes de um titular de direitos sobre atos de outras pessoas, mas são prerrogativas que derivam da norma e que qualificam o ato do próprio agente em relação à sua própria conduta. Uma faculdade é a posição de vantagem do sujeito em relação a um bem e realizase pelo simples ato de (conduta) sem necessidade de prévias declarações de vontade, sendo que esta constitui a consciente determinação para o ato. Na faculdade essa determinação não necessita ser explicitada, manifesta-se naturalmente na conduta. Um poder que decorre da norma é a posição de vantagem do sujeito em relação a um bem, que se realiza pela declaração da vontade do agente, ou seja, quando é condição do ato a manifestação, a exteriorização da consciente determinação que o produziu.”15
A teoria do processo como procedimento realizado em contraditório, em simétrica igualdade entre as partes, concebida na Itália por FAZZALARI e entre nós desenvolvida por GONÇALVES veio dar seqüência ao ciclo evolutivo do direito processual.
“Alla prestazione dovuta della tutela giurisdizionale delle situazioni giuridiche individuali (tutela intesa appunto come escuzione di un obbligo che lo Stato stesso si è assunto), corrisponde la ‘pretesa’ del singolo ad unaposizione processual indipendente e dinamica, chiaramente delimitada nei direiti e nei doveri”
A expressão “due process of law” (devido processo legal) surge na Inglaterra em 135416, mas desde 1215, o processo era objeto de regulamentação na Carta Magna, “nullus liber homo capiatur vel imprisionetur ... nisi per legale judicium parium suorum vel per legem terrae”17.(nenhum homem livre deve ser capturado ou aprisionado a não ser através de uma decisão legal de seus pares através da lei da terra).
“By the law of the land is most clearly intended the general law; a law which hears before it condemns; which proceeds upon inquiry, and renders judgement only after trial. The meaning is that every citizen shall hold his life, liberty, property, and immunities, under the protection of the general rules which govern society.”18
(Pela lei da terra, compreendida como a lei geral; uma lei que ouve antes de condenar; que procede através da audiência, e profere sentenças somente após julgamento. O significado é que todo cidadão deve ter sua vida, liberdade, propriedade e imunidades, sob proteção das regras gerais que governam a sociedade.)
O sistema jurídico de common law se constrói através da concepção de que remedies precede rights, fundamentando todo seu sistema jurídico a partir da garantia do processo, porquanto é “simplesmente supérflua qualquer declaração formal de direitos.”19
O processo inglês garante a igualdade entre as partes e o contraditório, realizando o processo justo, que, por essa razão, conduzirá, necessariamente, a provimentos judiciais também justos. Assinala RENÉ DAVID que “a preocupação do processo vai colocar-se, então, no primeiro plano das preocupações destes práticos que são os juristas ingleses: porque parece claramente a esta gente de bom senso que não serve para nada ter razão se não se puder obter a justiça que se deseja.
A ideia de que o acusado deve ter um fair trial (ser tratado com lealdade no processo), a idéia de que não se pode estatuir senão observando as formas de um processo regular (the rules ou natural justice) são idéias centrais do direito inglês, mais preocupado com a administração da justiça do que propriamente com a justiça em si mesma. O estado de espírito inglês merece ser notado. Segui um processo bem regulado, cheio de lealdade - pensa o jurista inglês - e chegareis quase seguramente a uma solução de justiça.”20
No sistema de civil law, segundo o eminente professor, pensa-se o contrário: “é necessário dizer ao juiz qual é a solução de justiça; e se o juiz conhece esta solução, não se deve impedi-lo de chegar a ela, regulamentando com excessiva minúcia o processo e as provas.”21
No Brasil, a Constituição de 1988 traz expressamente a garantia do devido processo legal como direito fundamental. É importante observar que essa garantia somente é compatível com regimes democráticos, uma vez que nos regimes de exceção, há apenas uma garantia formal do processo, sem instrumentalizá-la. “A maior preocupação do legislador constituinte com as garantias processuais penais se deve a circunstâncias históricas, que o conduziram a privilegiar o processo penal, como reação à repressão e ao processo inquisitório.”22 Por essa razão, discordamos da afirmativa de TOURINHO FILHO, de que “embora sem expressa disposição legal, sempre se observou o princípio do due process of law.”23 A promulgação da Constituição de 1988 e a superação da teoria do processo como relação jurídica, que atribuía aos sujeitos do processo “deveres e direitos”24 são os fatos contemporâneos mais importantes para o direito processual. A primeira por estabelecer os pressupostos para o correto exercício da jurisdição, “la conformità del suo asseto positivo alla normativa costituzionale sull’esercizio dell’atività giurisdizionale”25 e a segunda por conceber o processo em harmonia com os princípios do Estado Democrático de Direito.
Em reforço, cumpre informar que o mesmo autor, na 3ª edição dessa obra, sequer elencava o devido processo legal dentre os princípios do processo penal: “dentre os princípios e regras excogitadas nas diversas classificações destacam-se o da verdade real, o da indisponibilidade do processo, também conecido por princípio da legalidade ou obrigatoriedade, o princípio da oficialidade, do contraditório, da publicidade, da iniciativa das partes.” Op. Cit., 3ª ed., JALOVI: São Paulo, 1977, p. 31.

O PROCESSO COMO GARANTIA FUNDAMENTAL DO INDIVÍDUO

O processo é garantia de liberdade. É direito inerente ao homem, erigido à condição de direito fundamental nas constituições dos estados democráticos, nos termos enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem:
“Art. 8º - Toda pessoa tem recurso perante os tribunais nacionais competentes, que a ampare contra atos que violem seus direitos fundamentais, reconhecidos pela Constituição ou pela lei.
Art. 10 - Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, a ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para determinação de seus direitos e obrigações ou para o exame de qualquer acusação contra ela em matéria penal”
O processo destina-se à garantir a liberdade, em toda sua dimensão. Entretanto, esta garantia para se tornar efetiva e concreta não prescinde do devido processo legal, que se desenvolve validamente quando atendidos os pressupostos constitucionais para o correto exercício da função jurisdicional.
O Brasil, no art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal, dispõe que “ninguém pode ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
A Convenção de São José da Costa Rica, incorporada ao nosso ordenamento pelo Decreto nº 678/92, determina as garantias mínimas a serem asseguradas no processo jurisidicional, ao dispor:
Artigo 8º - Garantias judiciais
Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal; comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa; direito ao acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.
A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.
O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça.
Artigo 9º - Princípio da legalidade e da retroatividade
Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se.
Artigo 10 – Direito à indenização Toda pessoa tem direito a ser indenizada conforme a lei, no caso de haver sido condenada em sentença transitada em julgado, por erro judiciário.

DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

O devido processo legal é “expressão maior das garantias processuais fundamentais do cidadão, está claro e explícito na Constituição.”26 É conditio sine qua non do exercício da jurisdição e, por conseguinte, da formação da coisa julgada.
As garantias constitucionais do processo ou os denominados princípios processuais são, em verdade, o desenvolvimento analítico do devido processo penal. Desta forma, têm-se as seguintes garantias do processo:

1 - PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL:

O juiz investido na função jurisdicional em conformidade com as regras da Constituição, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, competente para proceder à apuração de qualquer acusação penal formulada.
O Supremo Tribunal Federal o consagra nos seguintes termos:
“A consagração constitucional do princípio do juiz natural (CF, art. 5º, LIII) tem o condão de reafirmar o compromisso do Estado brasileiro com a construção das bases jurídicas necessárias à formulação do processo penal democrático. O princípio da naturalidade do juízo representa uma das matrizes político-ideológicas que conformam a própria atividade legislativa do Estado, condicionando, ainda, o desempenho, em juízo, das funções estatais de caráter penal-persecutório. A lei não pode frustrar a garantia derivada do postulado do juiz natural. Assiste, a qualquer pessoa, quando eventualmente submetida a juízo penal, o direito de ser processada perante magistrado imparcial e independente, cuja competência é predeterminada, em abstrato, pelo próprio ordenamento constitucional.”27

2 - PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

“Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.
“Não considerar o acusado culpado importa privilegiar a temática do tratamento jurídico, o status do réu no curso do processo, que não pode ser assimilado ao culpado até a sentença definitiva. A vedação a qualquer forma de identificação do suspeito, indiciado ou acusado à condição de culpado constitui, inegavelmente, o aspecto mais inovador do princípio inscrito no art. 5º, LVII, da nova Constituição, na medida em que reafirma a dignidade da pessoa humana como premissa fundamental da atividade repressiva do Estado.(...)
Em decorrência do princípio do estado de inocência deve-se concluir que:
a) a restrição à liberdade do acusado antes da sentença definitiva só deve ser admitida a título de medida cautela, de necessidade ou conveniência, segundo estabelecer a lei processual; b) o réu não tem o dever de provar sua inocência; cabe ao acusador comprovar a sua culpa; c) para condenar o acusado, o juiz deve ter a convicção de que é ele responsável pelo delito, bastando, para a absolvição, a dúvida a respeito da sua culpa.”28

3 - PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO:

O contraditório, como visto, é elemento constitutivo do processo, vindo a significar “não apenas a participação dos sujeitos do processo. (...) O contraditório é a garantia de participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são os “interessados”, ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor.”29
O contraditório funda-se na igualdade. Não uma igualdade meramente formal. A observância do contraditório é função do juiz no processo, a quem incumbe “assegurar que o contraditório não seja negligenciado, violado, que a participação das partes em simétrica paridade seja eficazmente garantida. Observá-lo, ele mesmo, significará que o juiz se submete às normas do processo pelas quais os atos das partes são garantidos, que o juiz não pode se recusar ao cumprimento da norma que instituiu o direito de igual participação das partes, em simétrica paridade.”30
O conhecimento prévio da acusação consubstancia-se em direito fundamental do cidadão, caracterizando-se a sua ausência patente violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa, razão pela qual, a citação válida é da essência do processo.
No processo penal, assevera Ada Pellegrini Grinover¸ “a reação não pode ser meramente eventual, mas há de fazer-se efetiva. O contraditório, agora, não pode ser simplesmente garantido, mas deve ser estimulado. E a contraposição dialógica das partes há de ser real e não apenas formal. O juiz cuidará da efetiva participação das partes no contraditório, utilizando para tanto seus amplos poderes, a fim de que não haja desequilíbrios entre os ofícios de acusação e defesa. Cabe ao juiz penal, portanto, integrar e disciplinar o contraditório, sem que com isso venha a perder sua imparcialidade, que sairá fortalecida, no momento da síntese, pela apreciação do resultado de atividades justapostas e paritárias, desenvolvidas pelas partes.”31
A importância do princípio do contraditório pode ser visualizada na jurisprudência, que impõe ao juiz, sob pena de nulidade da sentença a apreciação de todas as teses defensivas apresentadas nas alegações finais32; que impõe o dever de absolver quando o eventual veredito condenatório seria embasado apenas em indícios colhidos em inquérito policial33; que reconhece como ato essencial do processo a apresentação de alegações finais pela defesa34; que reconhece a nulidade do processo pela juntada de documento após as alegações finais, sem audiência da defesa35.

4 - PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA

A ampla defesa garantida constitucionalmente relaciona-se diretamente com o contraditório, muitas vezes analisados conjuntamente.
Comungamos da opinião de Ada Pelegrini Grinover, que entende ser necessário que “em cada processo, o juiz estimule e promova um contraditório efetivo e equilibrado, cabendo-lhe verificar se a atividade defensiva, no caso concreto, foi adequadamente desempenhada, pela utilização de todos os meios necessários para influir sobre seu convencimento. Sob pena de considerar o réu indefeso e o processo irremediavelmente viciado.”36
Dentre as prerrogativas defensivas, encontra-se o privilégio contra a autoincriminação, que permite o silêncio do acusado. O exercício da defesa em sua plenitude, no processo penal, é mais do que um direito irrenunciável do acusado, constitui verdadeiro dever do Estado promovê-la em havendo omissão do acusado.
A defesa para ser válida deve ser eficiente, com efetiva participação no processo. O prejuízo se caracteriza na deficiência da defesa, dispensando-se prova de prejuízo real. No entanto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem entendendo que “a deficiência da defesa só anula o processo penal quando demonstrado o prejuízo do réu.”, caracterizando-se a deficiência da defesa somente “quando se tem que praticamente inexistiu a defesa, e não quando deixa apenas o advogado de praticar atos que o réu entendia aconselháveis, sem mesmo nada alegar quanto ao prejuízo para a defesa.” 37
Chega-se ao absurdo de não reconhecer o cerceamento de defesa pela ausência de defesa prévia38, ou quando há omissão na “abertura de vista aos pacientes para contra-arrazoar recurso do Ministério Público, uma vez que não caracterizado prejuízo para a defesa”39.
Ora, a Constituição Federal ao assegurar o direito à ampla defesa, não a concebia como uma defesa retórica, formal, sem empregar a técnica processual adequada contra a pretensão punitiva estatal, porque junto da ampla defesa encontra-se o contraditório vinculado diretamente ao princípio maior da igualdade substancial, sendo certo que essa igualdade, tão essencial ao processo dialético, não ocorre quando uma das partes se vê cerceada em seu direito de produzir prova ou debater a respeito das que se produziu.

5 - FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS

A fundamentação dos atos decisórios é outro postulado do devido processo legal. Consiste na legitimação da decisão ao serem explicitados os motivos que conduziram o julgador à decisão por ele proferida.
A sentença sem fundamentação agride o ordenamento constitucional e mostra a face da arbitrariedade, incompatível com o Estado de Direito. Assinala BARBOSA MOREIRA que “o princípio de que as decisões judiciais devem ser motivadas aplica-se aos pronunciamentos de natureza decisória emitidos por qualquer órgão do Poder Judiciário, seja qual for o grau de jurisdição, sem exclusão dos que possuam índole discricionária ou se fundem em juízos de valor livremente formulados.”40

6 - DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO

O princípio do duplo grau de jurisdição, implícito e imanente à ordem Constitucional, é o direito que tem a parte sucumbente de ver por duas vezes debatidas e apreciadas as suas teses de defesa do seu direito.
Inerente ao sistema jurídico, esse princípio significa que, para cada demanda, existe a possibilidade de duas decisões válidas e completas no mesmo processo, emanadas por juízes diferentes, prevalecendo sempre a segunda em relação à primeira. Não se admite que uma sentença nula seja substituída, em segundo grau de jurisdição, pelo julgamento do mérito seja substituída, por violação do princípio do juiz natural.
O Supremo Tribunal Federal, analisando esse princípio, assentou que:
“Os princípios constitucionais que garantem o livre acesso ao Poder Judiciário, o contraditório e a ampla defesa, não são absolutos e hão de ser exercidos, pelos jurisdicionados, por meio das normas processuais que regem a matéria, não se constituindo negativa de prestação jurisdicional e cerceamento de defesa a inadmissão de recursos quando não observados os procedimentos estatuídos nas normas instrumentais”.41

7 - VEDAÇÃO DA PROVA ILÍCITA

O processo deve ser ético, reprimindo-se a deslealdade das partes, razão pela qual, a Constituição inadmite a utilização de provas ilícitas no processo.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em alguns casos, adota a teoria dos fruits of the poisonous tree, isto é, a prova obtida ilicitamente contamina as demais provas que dela se originavam, a menos que “não foi a prova exclusiva que desencadeou o procedimento penal, mas somente veio a corroborar as outras licitamente obtidas pela equipe de investigação policial.”42
Prevalece na doutrina e jurisprudência, a aplicação do princípio da proporcionalidade, originário do direito germânico. Por este princípio, busca-se preservar o indivíduo de intervenções desnecessárias e excessivas; “uma lei não deve onerar o cidadão mais intensamente do que o imprescindível para a proteção do interesse público.”43
No que tange às provas obtidas ilicitamente, por aplicação deste princípio, admite-se o abrandamento da norma constitucional em “casos excepcionalmente graves e quando a prova ilícita for a única a ser produzida, com o objetivo de tutelar outros valores fundamentais”44. Incumbe ao julgador o dever de cotejar o interesse público na persecução penal eficaz, admitindo-se a possibilidade de que a investigação seja a mais completa possível para oferecer a verdade do processo penal e o interesse individual do acusado na preservação da sua intimidade, consistente na vedação constitucional da utilização de provas obtidas ilicitamente.

8 - PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM

Esse princípio consiste na proibição de se processar criminalmente o indivíduo duas vezes pelo mesmo fato.

9 - PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE

Assegurada constitucionalmente, a publicidade, que consiste em tornar acessível à sociedade o conhecimento dos atos processuais, confere transparência ao processo, ao mesmo tempo que possibilita a sociedade exercer o controle sobre as atividades do Poder Judiciário.
Mas não é tudo, “A participação passiva do povo na vida jurídica deveria criar a intimidade com o direito, que é premissa para sua participação ativa, simultaneamente introduzida: dos tribunais de leigos, da auto-administração e do parlamentarismo.”45
Não se trata, contudo, de uma garantia absoluta, uma vez que a Constituição Federal restringe seu alcance quando importar em prejuízo à intimidade ou ao interesse social46. O art. 155 do Código de Processo Civil, em consonância com o texto constitucional, restringe a publicidade do processo às partes e seus procuradores quando houver exigência do interesse público ou a demanda versar sobre “casamento, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

1 - “A liberdade humana é o maior fenômeno do Universo, e o direito processual é a ciência que tem em mira garanti-la e assegurá-la.”47
2 - “O processo é o procedimento que se desenvolve em contraditório entre os interessados, na fase de preparação do ato final e entre o ato inicial do procedimento de execução até o ato final, aquele provimento pelo qual ela é julgada extinta, está presente o contraditório, como possiblidade de participação simetricamente igual dos destinatários do ato de caráter imperativo que esgota o procedimento.”48
3 - Essa teoria aplica-se, sem reservas, ao processo penal, conforme leciona Aroldo Plínio Gonçalves, “Da manifestação do poder jurisdicional, em razão da matéria constitucionalmente organizada, segundo a estrutura dos órgãos jurisdicionais, podem ser apontadas as várias espécies de processo. (…)
A doutrina, utilizando os conceitos tradicionais, tem tido dificuldades para caracterizar a natureza do processo penal, levantando até mesmo questões paradoxais, como as postas por CARNELUTTI, de que não é ele um processo ‘de partes’ e de que a jurisdição é una potestad que pertenece al juez y no al Estado.
Essa dificuldade desaparece com o conceito atual do contraditório. No processo penal, os interessados no ato final são o acusado e o Estado, que atua como parte, através do Ministério Público. Entre eles o contraditório se desenvolve. As questões suscitadas em torno do argumento de que o Estado é também o autor do ato final resolvem-se pela essência do contraditório. Essa essência exige, como diz FAZZALARI, que do processo participem pelo menos dois sujeitos, um interessado e outro contra-interessado, um dos quais receberá os efeitos favoráveis e o outro os efeitos desfavoráveis do ato final. O autor do ato final pode ser um dos contraditores, mas o que o distingue, como autor do ato e como contraditor, é sua posição, nessa qualidade, de simétrica paridade em relação ao outro, ou aos outros contraditores. A dupla atividade do Estado, como parte, através do Ministério Público e como poder, que atua pelo órgão jurisdicional, não prejudica o processo se nele há a garantia do contraditório, e é exatamente a presença do contraditório, no processo penal, que necessariamente o caracteriza como processo, que faz dele um procedimento realizado em contraditório entre as partes.”49
4 - O devido processo legal é uma criação do sistema jurídico do common law, que foi incorporado pelo sistema romano-germânico, pela inevitabilidade de garantir o indivíduo contra qualquer arbitrariedade ao seu patrimônio jurídico.
5 - O devido processo legal é uma garantia inerente ao ser humano, consagrada na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção de São José da Costa Rica, esta, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro.
6 - Todos os princípios e garantias constitucionais do processo são decorrências do reconhecimento da garantia do devido processo legal.
7- A existência do processo está condicionada ao contraditório e só se reconhece a legitimidade do processo se o procedimento se desenvolver em observância ao devido processo legal.
8 - Integram o devido processo legal os seguintes princípios processuais:
- princípio do juiz natural;
- princípio do contraditório;
- princípio da presunção de inocência;
- princípio da ampla defesa;
- princípio do livre convencimento fundamentado do juiz;
- princípio do duplo grau de jurisdição;
- princípio da vedação da prova ilícita
- princípio do ne bis in idem.
- princípio da publicidade.
9 - “Não se pode buscar a simplicidade e eficácia processuais, com sacrifício das garantias fundamentais do processo, com procura de sistema jurídico menos opressivo e menos gravoso economicamente. Os princípios constitucionais efetivam-se através de uma justiça menos onerosa, mas sem se esquecer custo e qualidade. O juiz como órgão terminal de apreciação da Constituição, deve ser objetivo e claro em garantir os direitos fundamentais, como pressuposto de qualquer outro direito ou interesse individual ou coletivo, nos termos dos procedimentos consagrados.”50

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