Uma decisão inadiável
Faz pouco tempo que onze jovens militares do Exército Brasileiro, dentre eles um imberbe tenente “comandando-os”, entregam, em promiscuidade incrível, três jovens residentes no Morro da Providência a traficantes do Morro da Mineira. Duas favelas, homizios de facções inimigas, detalhe facilíssimo de saber, e com certeza o sabiam todos os personagens envolvidos no episódio que culminou na morte dos três infelizes em máxima crueldade. Há, hoje, muitas notícias de que os três eram traficantes, o que não muda em nada a situação descrita e suas conseqüências.
Parece ficção, absurdo que nossa mente se recusa a aceitar: seres humanos destruindo corpos de seus semelhantes tais como os animais destrincham a presa para se alimentar. Mas, neste caso último, trata-se de determinismo da natureza, limita-se a irracional agressividade à luta pela sobrevivência das espécies. No dos seres humanos (humanos?), a violência não é natural, é fruto da banalização da morte em reedição de tempo incivilizado, como o da tortura de Damiens impressionantemente detalhada na abertura do clássico Vigiar e Punir, de Michel Foucault. Ou de Tiradentes... Ontem e hoje, tempos, enfim, do “castigo-espetáculo” demonstrando o poder de vida e morte de uns sobre outros, como se mais nada existisse além desse maldito poder, nenhum valor ético, moral, religioso, nada.
A reação oficial não poderia ser outra: prisão dos militares criminosos, sepultamento das vítimas e perseguição aos traficantes-homicidas logo identificados; aliás, facilmente identificados, porém dificilmente serão alcançados pelas malhas da lei, não se sabendo quantas torturas e mortes protagonizaram no escorrer de suas vidas criminosas e quantas outras ainda protagonizarão.
Mas a eficiência do sistema decerto se fará presente! Haverá a pronta resposta e alguns desses prováveis homicidas serão presos ou mortos! Suas identidades? Bem, suas identidades pouco servirão para singularizá-los como verdadeiros autores e culpados. Basta que sejam traficantes conhecidos e assunto encerrado. Afinal, trata-se de imperiosa necessidade de rápida resposta a um fato escabroso envolvendo uma instituição das mais importantes e sérias do país: o Exército Brasileiro. Claro que, por conta disso, o assunto descambou para a digressão jurídico-constitucional-eleitoral, com opiniões diversas sobre a legalidade (ou ilegalidade) da presença da força militar federal em ação típica de segurança pública, associada a uma atividade comum a qualquer empreiteira particular, tudo atendendo à bem-intencionada iniciativa de um senador da República prazerosamente acolhida pelo mandatário máximo do país. Por acaso, o senador em questão é candidato a prefeito da cidade onde o trágico episódio ocorreu. Mera coincidência?... Talvez... Tudo, porém, seria perfeito, se não houvesse a tragédia no meio do caminho... Mas, infelizmente, houve! E agora?...
Muito bem, agora a discussão prender-se-á aos aspectos legais (ou ilegais) da presença verde-oliva na favela exercitando a segurança pública, que, doutrinariamente, significa “garantia da ordem pública”. Doutrina, por sinal, otimamente ensinada em Manual da Escola Superior de Guerra (ESG) e referendada em parte por renomados mestres do Direito Administrativo. Resume-se o ensinamento doutrinário, grosso modo, ao seguinte: “ordem” é “situação de paz e harmonia na convivência social”; ”segurança” é a “garantia” da “ordem”, e “defesa” seria o “ato caracterizado e medido” a atalhar qualquer risco à “ordem”. Enfim, denota-se que o “ato” (emprego da força) deve ser proporcional ao risco adrede “caracterizado e medido”. É com base neste fundamento que a doutrina informa sobre as diferenças entre a “ordem interna”, cuja “garantia” é a “segurança interna”, e a “ordem pública”, cuja “garantia” é a “segurança pública”.
Claro que não cuidamos aqui de preconceitos semânticos, como nos alerta em artigo precioso o mestre Diogo de Figueiredo Moreira Neto, este que, em outra ocasião, assim emite seu “conceito operativo” da “ordem pública”: “Ordem pública, objeto da segurança pública, é a situação de convivência pacífica e harmoniosa da população, fundada nos princípios éticos vigentes na sociedade.” (Grifo meu). Ainda esclarece o mestre que a “ética” abarca “as leis, a moral e os costumes”.Ora, o Art. 144 da Constituição Federal explicita os organismos de “segurança pública” (federais, estaduais e municipais), da qual a “ordem pública” é “objeto”, o que situa a “segurança pública” como “sujeito da ação”, naturalmente excluindo as Forças Armadas dessa condição, pois suas finalidades estão prescritas em separado, no Art. 142, nos termos seguintes: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.” (Grifos nossos). Eis agora a síntese do Art. 144: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. (...) § 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.” Isto sem se considerar o outro improviso inconstitucional da Força Nacional de Segurança Pública, que não se integra à Carta Magna como “organismo de segurança pública”.
Cá pra nós, a FNSP existe num vácuo que sugere deliberada anomia...Portanto, não há como supor que aquela “ordem” referida no Art. 142 seja a “ordem pública”. E, se não é a “ordem pública”, só pode ser a “ordem interna”, cuja “garantia” é a “segurança interna”, como nos informa a Doutrina de Segurança Nacional, não se considerando aqui ideologias nem preconceitos semânticos. Enfim, sem temor do “bicho-papão” conhecido como ditadura militar... Entretanto, não se pode negar a possibilidade de desordens internas de intensidades tais que obriguem aos “poderes constituídos” o acionamento das Forças Armadas para a “garantia da lei e da ordem”, não sendo complicado inferir que tratamos de algo maior que a ordem pública, que tem na segurança pública a sua “garantia”, pois as perturbações da ordem pública subsistem enquanto ocorrem graves perturbações da ordem interna a exigirem “ações operativas” das Forças Armadas para restaurá-la em vista da “Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”, como nos informa o Título Constitucional.
Na verdade, não se deve estranhar a presença de desordem num ambiente social; a desordem pode ocorrer em intensidade previsível e, muitas vezes, imprevisível, assim como é possível supor que a ordem se restaure naturalmente, eis por que se admite a existência de uma ordem pública ou interna “material” (ser) ou “formal” (dever ser). E é exatamente por isso que a gradação da “ordem” inicia-se pela preservação da ordem pública e sua restauração poderá ocorrer sem intervenção estatal ou por via dos organismos de segurança pública em operações tipicamente policiais, preventivas e repressivas, fundadas nas leis vigentes e no “poder de polícia”, este, todavia, juridicamente contido nos seus limites. O excesso do seu uso pela Administração é considerado abuso de poder, punível na forma da lei. É nesse campo restrito que se joga com a possibilidade de ocorrência da perturbação da ordem e, num patamar superior, da grave perturbação da ordem; esta última, porém, em ultrapassando a capacidade operacional dos organismos de segurança pública, gravados no Art. 144 da Carta Magna, poderá determinar, aí sim, a intervenção das Forças Armadas, especialmente em missões operativas de caráter exclusivamente militar, obedecidos os limites estabelecidos na Carta Magna e em leis referentes (Estado de Defesa e Estado de Sítio). Ultrapassá-los significa golpe militar, o que não vem ao caso.Embora a presença do Exército Brasileiro na favela tenha se resumido a um gesto de boa vontade, assim como ocorreu durante o surto de dengue em que as Forças Armadas emprestaram notável contribuição à população, não se há de negar a ambigüidade do emprego de força militar federal como “organismo de segurança pública”. Pois o Exército Brasileiro ocupou o Morro da Providência como tal, o que não prevê o Art. 144 da Carta Magna.
À luz da Lei Maior e da Doutrina, a ação do Exército Brasileiro no Morro da Providência deveria ser precedida da decretação do “Estado de Defesa”, caso fosse reconhecida uma situação de “grave perturbação da ordem pública” restrita à localidade em questão. Não era o propósito. Portanto, se as leis vigentes no país fossem seguidas ao pé da letra, não haveria a presença do Exército Brasileiro no Morro da Providência; lá não estariam os dez militares comandados pelo desastrado tenente; os três jovens não teriam sido detidos pelos militares e entregues à facção inimiga do Morro da Mineira; e não seriam torturados e mortos. Enfim, numa relação de causa-efeito-causa-efeito... o problema inicia-se muito antes e acima de o tenente descumprir a ordem do capitão, e por sua conta e risco, e em função de ser treinado para combater o “inimigo”, culminar praticando um ato destruidor de todas as vidas: a dele, a dos seus dez comandados, e a dos três rapazes. Tudo isto me faz lembrar o tal “PM Rambo”, da PM de São Paulo, que, ao ser indagado em CPI deflagrada pelo Poder Legislativo daquele Estado sobre o porquê de ter atirado e matado covardemente um cidadão favelado, e sem mais saber como se defender, respondeu singelamente aos deputados: “Eu fui treinado assim!”
Por outro lado, há de se registrar que diversas autoridades do mais alto talante do país assumem diariamente que os traficantes do Rio de Janeiro dominam as comunidades carentes (fato inegável) e praticam barbáries que desde muito tempo ultrapassaram as raias do absurdo. Não há como negar, pois é consenso geral, que a imensa população residente em favelas não desfruta a paz nem o direito de ir e vir. Os cidadãos favelados vivem ameaçados de todos os modos; são oprimidos por traficantes e milicianos; pagam “taxas de sobrevivência” e mesmo assim morrem vítimas de balas perdidas ou são sentenciados à morte se errarem o caminho de casa e ingressarem numa localidade dominada por facção inimiga. Vale a assertiva também para inadvertidos policiais que erram o caminho e são torturados e mortos por traficantes; vale também para Tim Lopes, jornalista torturado e morto como qualquer cidadão sujeito às conseqüências do Estado Marginal Institucionalizado a matar o Estado Democrático de Direito.
Isto é calamidade social do banditismo urbano, é o império da desordem com o Estado circunflexo, conformado, acovardado! É grave perturbação da ordem muitíssimo além da capacidade operacional dos organismos de segurança pública federais, estaduais e municipais, tudo publicamente assumido por autoridades dos três poderes constituídos em todos os seus níveis. É caso de acionamento das Forças Armadas, sim! Mas puseram um freio constitucional tão violento nas forças militares federais que até para os políticos, incluindo-se o Presidente da República, tornou-se a Lei Maior um obstáculo quase que intransponível. Formalizaram exageradamente a possibilidade de emprego das Forças Armadas em questões de segurança pública ou interna, olvidando o fato de que a desordem (pública ou interna) ocorre independentemente de ser proibida por lei. Até pode eclodir em razão de calamidade pública e o freio é o mesmo. Mas, como sabemos, freio costuma dar defeito, e se ocorrer alguma falha em caminhão truncado, carregado e disparado ladeira abaixo, ninguém será capaz de segurá-lo...
Portanto, é passada a hora da revisão dos dispositivos constitucionais, de modo a garantir a presença ostensiva das Forças Armadas onde elas se fizerem indispensáveis, sem burocracia ou temor a emperrar a evolução do Estado Democrático de Direito, hoje ameaçado pelo Estado Marginal cada vez mais institucionalizado por conta da omissão e da covardia governamentais. Não basta desferir “castigo-espetáculo” contra militares e traficantes assassinos. Isto será apenas mais um a desaparecer, em fade-out, da memória coletiva.
Faz pouco tempo que onze jovens militares do Exército Brasileiro, dentre eles um imberbe tenente “comandando-os”, entregam, em promiscuidade incrível, três jovens residentes no Morro da Providência a traficantes do Morro da Mineira. Duas favelas, homizios de facções inimigas, detalhe facilíssimo de saber, e com certeza o sabiam todos os personagens envolvidos no episódio que culminou na morte dos três infelizes em máxima crueldade. Há, hoje, muitas notícias de que os três eram traficantes, o que não muda em nada a situação descrita e suas conseqüências.
Parece ficção, absurdo que nossa mente se recusa a aceitar: seres humanos destruindo corpos de seus semelhantes tais como os animais destrincham a presa para se alimentar. Mas, neste caso último, trata-se de determinismo da natureza, limita-se a irracional agressividade à luta pela sobrevivência das espécies. No dos seres humanos (humanos?), a violência não é natural, é fruto da banalização da morte em reedição de tempo incivilizado, como o da tortura de Damiens impressionantemente detalhada na abertura do clássico Vigiar e Punir, de Michel Foucault. Ou de Tiradentes... Ontem e hoje, tempos, enfim, do “castigo-espetáculo” demonstrando o poder de vida e morte de uns sobre outros, como se mais nada existisse além desse maldito poder, nenhum valor ético, moral, religioso, nada.
A reação oficial não poderia ser outra: prisão dos militares criminosos, sepultamento das vítimas e perseguição aos traficantes-homicidas logo identificados; aliás, facilmente identificados, porém dificilmente serão alcançados pelas malhas da lei, não se sabendo quantas torturas e mortes protagonizaram no escorrer de suas vidas criminosas e quantas outras ainda protagonizarão.
Mas a eficiência do sistema decerto se fará presente! Haverá a pronta resposta e alguns desses prováveis homicidas serão presos ou mortos! Suas identidades? Bem, suas identidades pouco servirão para singularizá-los como verdadeiros autores e culpados. Basta que sejam traficantes conhecidos e assunto encerrado. Afinal, trata-se de imperiosa necessidade de rápida resposta a um fato escabroso envolvendo uma instituição das mais importantes e sérias do país: o Exército Brasileiro. Claro que, por conta disso, o assunto descambou para a digressão jurídico-constitucional-eleitoral, com opiniões diversas sobre a legalidade (ou ilegalidade) da presença da força militar federal em ação típica de segurança pública, associada a uma atividade comum a qualquer empreiteira particular, tudo atendendo à bem-intencionada iniciativa de um senador da República prazerosamente acolhida pelo mandatário máximo do país. Por acaso, o senador em questão é candidato a prefeito da cidade onde o trágico episódio ocorreu. Mera coincidência?... Talvez... Tudo, porém, seria perfeito, se não houvesse a tragédia no meio do caminho... Mas, infelizmente, houve! E agora?...
Muito bem, agora a discussão prender-se-á aos aspectos legais (ou ilegais) da presença verde-oliva na favela exercitando a segurança pública, que, doutrinariamente, significa “garantia da ordem pública”. Doutrina, por sinal, otimamente ensinada em Manual da Escola Superior de Guerra (ESG) e referendada em parte por renomados mestres do Direito Administrativo. Resume-se o ensinamento doutrinário, grosso modo, ao seguinte: “ordem” é “situação de paz e harmonia na convivência social”; ”segurança” é a “garantia” da “ordem”, e “defesa” seria o “ato caracterizado e medido” a atalhar qualquer risco à “ordem”. Enfim, denota-se que o “ato” (emprego da força) deve ser proporcional ao risco adrede “caracterizado e medido”. É com base neste fundamento que a doutrina informa sobre as diferenças entre a “ordem interna”, cuja “garantia” é a “segurança interna”, e a “ordem pública”, cuja “garantia” é a “segurança pública”.
Claro que não cuidamos aqui de preconceitos semânticos, como nos alerta em artigo precioso o mestre Diogo de Figueiredo Moreira Neto, este que, em outra ocasião, assim emite seu “conceito operativo” da “ordem pública”: “Ordem pública, objeto da segurança pública, é a situação de convivência pacífica e harmoniosa da população, fundada nos princípios éticos vigentes na sociedade.” (Grifo meu). Ainda esclarece o mestre que a “ética” abarca “as leis, a moral e os costumes”.Ora, o Art. 144 da Constituição Federal explicita os organismos de “segurança pública” (federais, estaduais e municipais), da qual a “ordem pública” é “objeto”, o que situa a “segurança pública” como “sujeito da ação”, naturalmente excluindo as Forças Armadas dessa condição, pois suas finalidades estão prescritas em separado, no Art. 142, nos termos seguintes: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.” (Grifos nossos). Eis agora a síntese do Art. 144: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. (...) § 8º - Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.” Isto sem se considerar o outro improviso inconstitucional da Força Nacional de Segurança Pública, que não se integra à Carta Magna como “organismo de segurança pública”.
Cá pra nós, a FNSP existe num vácuo que sugere deliberada anomia...Portanto, não há como supor que aquela “ordem” referida no Art. 142 seja a “ordem pública”. E, se não é a “ordem pública”, só pode ser a “ordem interna”, cuja “garantia” é a “segurança interna”, como nos informa a Doutrina de Segurança Nacional, não se considerando aqui ideologias nem preconceitos semânticos. Enfim, sem temor do “bicho-papão” conhecido como ditadura militar... Entretanto, não se pode negar a possibilidade de desordens internas de intensidades tais que obriguem aos “poderes constituídos” o acionamento das Forças Armadas para a “garantia da lei e da ordem”, não sendo complicado inferir que tratamos de algo maior que a ordem pública, que tem na segurança pública a sua “garantia”, pois as perturbações da ordem pública subsistem enquanto ocorrem graves perturbações da ordem interna a exigirem “ações operativas” das Forças Armadas para restaurá-la em vista da “Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”, como nos informa o Título Constitucional.
Na verdade, não se deve estranhar a presença de desordem num ambiente social; a desordem pode ocorrer em intensidade previsível e, muitas vezes, imprevisível, assim como é possível supor que a ordem se restaure naturalmente, eis por que se admite a existência de uma ordem pública ou interna “material” (ser) ou “formal” (dever ser). E é exatamente por isso que a gradação da “ordem” inicia-se pela preservação da ordem pública e sua restauração poderá ocorrer sem intervenção estatal ou por via dos organismos de segurança pública em operações tipicamente policiais, preventivas e repressivas, fundadas nas leis vigentes e no “poder de polícia”, este, todavia, juridicamente contido nos seus limites. O excesso do seu uso pela Administração é considerado abuso de poder, punível na forma da lei. É nesse campo restrito que se joga com a possibilidade de ocorrência da perturbação da ordem e, num patamar superior, da grave perturbação da ordem; esta última, porém, em ultrapassando a capacidade operacional dos organismos de segurança pública, gravados no Art. 144 da Carta Magna, poderá determinar, aí sim, a intervenção das Forças Armadas, especialmente em missões operativas de caráter exclusivamente militar, obedecidos os limites estabelecidos na Carta Magna e em leis referentes (Estado de Defesa e Estado de Sítio). Ultrapassá-los significa golpe militar, o que não vem ao caso.Embora a presença do Exército Brasileiro na favela tenha se resumido a um gesto de boa vontade, assim como ocorreu durante o surto de dengue em que as Forças Armadas emprestaram notável contribuição à população, não se há de negar a ambigüidade do emprego de força militar federal como “organismo de segurança pública”. Pois o Exército Brasileiro ocupou o Morro da Providência como tal, o que não prevê o Art. 144 da Carta Magna.
À luz da Lei Maior e da Doutrina, a ação do Exército Brasileiro no Morro da Providência deveria ser precedida da decretação do “Estado de Defesa”, caso fosse reconhecida uma situação de “grave perturbação da ordem pública” restrita à localidade em questão. Não era o propósito. Portanto, se as leis vigentes no país fossem seguidas ao pé da letra, não haveria a presença do Exército Brasileiro no Morro da Providência; lá não estariam os dez militares comandados pelo desastrado tenente; os três jovens não teriam sido detidos pelos militares e entregues à facção inimiga do Morro da Mineira; e não seriam torturados e mortos. Enfim, numa relação de causa-efeito-causa-efeito... o problema inicia-se muito antes e acima de o tenente descumprir a ordem do capitão, e por sua conta e risco, e em função de ser treinado para combater o “inimigo”, culminar praticando um ato destruidor de todas as vidas: a dele, a dos seus dez comandados, e a dos três rapazes. Tudo isto me faz lembrar o tal “PM Rambo”, da PM de São Paulo, que, ao ser indagado em CPI deflagrada pelo Poder Legislativo daquele Estado sobre o porquê de ter atirado e matado covardemente um cidadão favelado, e sem mais saber como se defender, respondeu singelamente aos deputados: “Eu fui treinado assim!”
Por outro lado, há de se registrar que diversas autoridades do mais alto talante do país assumem diariamente que os traficantes do Rio de Janeiro dominam as comunidades carentes (fato inegável) e praticam barbáries que desde muito tempo ultrapassaram as raias do absurdo. Não há como negar, pois é consenso geral, que a imensa população residente em favelas não desfruta a paz nem o direito de ir e vir. Os cidadãos favelados vivem ameaçados de todos os modos; são oprimidos por traficantes e milicianos; pagam “taxas de sobrevivência” e mesmo assim morrem vítimas de balas perdidas ou são sentenciados à morte se errarem o caminho de casa e ingressarem numa localidade dominada por facção inimiga. Vale a assertiva também para inadvertidos policiais que erram o caminho e são torturados e mortos por traficantes; vale também para Tim Lopes, jornalista torturado e morto como qualquer cidadão sujeito às conseqüências do Estado Marginal Institucionalizado a matar o Estado Democrático de Direito.
Isto é calamidade social do banditismo urbano, é o império da desordem com o Estado circunflexo, conformado, acovardado! É grave perturbação da ordem muitíssimo além da capacidade operacional dos organismos de segurança pública federais, estaduais e municipais, tudo publicamente assumido por autoridades dos três poderes constituídos em todos os seus níveis. É caso de acionamento das Forças Armadas, sim! Mas puseram um freio constitucional tão violento nas forças militares federais que até para os políticos, incluindo-se o Presidente da República, tornou-se a Lei Maior um obstáculo quase que intransponível. Formalizaram exageradamente a possibilidade de emprego das Forças Armadas em questões de segurança pública ou interna, olvidando o fato de que a desordem (pública ou interna) ocorre independentemente de ser proibida por lei. Até pode eclodir em razão de calamidade pública e o freio é o mesmo. Mas, como sabemos, freio costuma dar defeito, e se ocorrer alguma falha em caminhão truncado, carregado e disparado ladeira abaixo, ninguém será capaz de segurá-lo...
Portanto, é passada a hora da revisão dos dispositivos constitucionais, de modo a garantir a presença ostensiva das Forças Armadas onde elas se fizerem indispensáveis, sem burocracia ou temor a emperrar a evolução do Estado Democrático de Direito, hoje ameaçado pelo Estado Marginal cada vez mais institucionalizado por conta da omissão e da covardia governamentais. Não basta desferir “castigo-espetáculo” contra militares e traficantes assassinos. Isto será apenas mais um a desaparecer, em fade-out, da memória coletiva.
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