A Facção
Não
há fato isolado no ambiente social, mas uma sucessão deles entre si
interligados e formando história. É o que pretendemos apontar aqui com o foco
exclusivo na chacina de Vigário Geral: 4 PMs do 9º BPM e 21 moradores daquela
favela brutalmente assassinados, respectivamente em 28/29 de agosto de 1993
(sábado/domingo) e 30/31 de agosto de 1993 (domingo/segunda). O primeiro fato
foi causa do segundo, não se há de pôr dúvida, mas interessa trazer à lide as
variáveis antecedentes e intervenientes, e também as consequências das duas
chacinas, agora vistas como um subsistema causal, ou seja, gerador de
ocorrências posteriores. Esses dois fatos, na verdade, serviram para demonstrar
as várias faces da truculência e da insídia de um desgoverno que assolou como
praga o Estado do Rio de Janeiro. Pois em nome desses hediondos crimes, outros
foram e até hoje estão sendo perpetrados por sectários brizolistas ainda
detentores do poder e da força do sistema, especialmente ligados à famigerada
“comunidade de informações” da PMERJ. Eles, na verdade, e desde antes, na
ditadura, já se associavam em facção de caráter estável e permanente; mas,
paradoxalmente, esbanjaram seus poderes a partir do brizolismo, nos idos de
1983. Aliás, Brizola não venceu as eleições como se tivesse caído de
pára-quedas no Rio. Há toda uma gama de fatos correlacionados que desembocaram
na ocupação do Poder Executivo estadual pela facção brizolista.
Como
essa facção será muito citada, deve-se logo explicar seu real significado, escudado
no historicista e cientista político Moisés I. Finley, e em sua obra “Democracia
Antiga e Moderna”, Ed. Graw Ltda, 1988, págs. 60/1:
“A
facção é o maior mal e o perigo mais comum. Facção é a tradução convencional da
palavra grega stasis, uma das mais
extraordinárias que podem ser encontradas em qualquer língua. Sua raiz
significa colocação, montagem, estatura, estação. Sua gama de significados
políticos pode ser mais bem ilustrada apenas pela relação de definições
dicionarizadas que pode ser encontrada: partido, partido formado com fins
sediciosos, facção, sedição, discórdia, divisão, dissensão e, finalmente, um
significado bem abonado, que os dicionários incompreensivelmente omitem, a
saber: guerra civil ou revolução.”
Retornando
a Vigário Geral (sem desconsiderar o fato de que já pairavam no ar duas outras
ocorrências de peso, que ficaram conhecidas como chacinas dos “Onze de Acari” e
da “Candelária”, com a ressalva de que a primeira jamais foi comprovada), no
início as reações oficiais pareciam apenas fruto do pânico generalizado entre
as atônitas autoridades públicas e seus agentes – a facção – designados para a
apuração da tenebrosa chacina. O assassinato dos quatro PMs, na véspera, e no
mesmo bairro, foi imediatamente esclarecido e atribuído a traficantes homiziados
na favela e liderados por um bandido conhecido como Flávio Negão. Ele morreu
meses depois em confronto com o BOPE, matando antes um sargento. O bandido
reafirmou, deste modo, sua ferocidade.
O
curioso, no caso da chacina dos 4 PMs, é que o sistema PMERJ reagiu acusando os
mortos de terem “infringido o regulamento”, quase que tentando puni-los post mortem, olvidando em descaramento a
realidade de que a corporação é que fora atacada: os PMs estavam fardados, em
viatura caracterizada, circulando numa via pública, e é claro que a percepção
de que eles não tinham autorização prévia para seguirem roteiro diferente era
de caráter interno, e mesmo assim discutível. Afinal, tratava-se de viatura de
supervisão em trânsito na área do batalhão a que pertencia. Se estivesse em
área de outra unidade operacional, aí sim, se poderia questionar, embora não
servisse para “justificar” a barbárie contra eles cometida.
Hoje,
passado bom tempo, vencido o momento mais turbulento, e aprofundada a reflexão,
não é demais concluir que outras variáveis já estavam engendradas na cabeça da
facção. Na verdade, tudo funcionou “por música”, tendo apenas os dirigentes da
Polícia Civil, da Polícia Militar e do Ministério Público – a facção brizolista
– servido voluntariamente como instrumentos da diabólica solução, tudo para
livrar o atônito governante da tragédia política já anunciada por iniciativa da
OAB/RJ: a intervenção federal.
Não
vamos aqui demonstrar como o sistema brizolista apontou os 33 pseudo-autores da
chacina, policiais militares e civis, em tempo recorde, a maioria
posteriormente inocentada por absoluta falta de provas. Interessa-nos clarear
aspectos importantes aos olhos da história. Pelo menos assim pensamos.
Como se formou a
facção?...
A
massa de manobra do poder, formada por oficiais e praças da PMERJ, e por alguns
poucos membros da PCERJ e do Ministério Público, já vinha desde 1983 motivada
por diversos incentivos pessoais e profissionais amparados na tese brizolista
dos “direitos humanos”, via perigosamente unívoca, que apenas visava a
implantação e a manutenção da inércia do aparelho policial em favor da pujança
do crime organizado, especialmente do tráfico de drogas e do Comando Vermelho.
O
primeiro período de governo brizolista caracterizou-se pela permissividade,
culminando na fragorosa derrota de Brizola para Moreira Franco, este que lançou
como o principal mote de campanha “acabar com a criminalidade em seis meses”,
com isto provocando um divisor de águas entre a omissão e a esperança de ação
enérgica contra o crime, o que de fato ocorreu, mas igualmente sem sucesso.
O
insucesso de Moreira Franco permitiu o retorno de Brizola ao poder, agora
juntando sua notória permissividade com o banditismo às retaliações contra
policiais que abominavam seus métodos. Instituiu o caudilho uma “Central de
Denúncias” tão prestigiada que os próprios traficantes faziam colagem de
panfletos oficiais proclamando-a em suas fortalezas impunes.
Eu
fui e sou um desses policiais retaliados, porque apenas cumprindo com meu dever
de combater o crime com rigor acabei retratando o modelo de ação defendido por
Moreira Franco, que se utilizou politicamente do meu êxito profissional, sem
que de mim dependesse autorizá-lo, especialmente na ocasião da prisão do traficante
“Cy de Acari”, considerado o maior do Estado do Rio de Janeiro, mesmo que não o
fosse. Mas assim o designava a mídia.
O
êxito a que me referi fez-me deputado estadual exatamente durante o segundo
período de maldição brizolista. No caso da PM, especificamente, outros ingredientes
também contribuíram para a exacerbação da insídia contra mim, posto que eu,
como parlamentar, observava e criticava as orquestrações do sistema brizolista
contra os bons policiais que antes arriscaram suas vidas combatendo a
marginalidade.
Reflorescera,
porém, na PM, a cultura do “fodão” e do “bundão”, preconceito instalado no comando
do Coronel PM Carlos Magno Nazareth Cerqueira e seus adeptos com ele alinhados desde
o primeiro período de brizolismo. E o que era apenas uma cultura passou a ser,
neste segundo momento, um objetivo claro e traduzido na síntese: quem era
“fodão” durante o comando anterior foi rebaixado à condição deprimente de “bandido”
e perseguido como tal pela facção. Em compensação, os “bundões”, também denominados
“administradores”, foram privilegiados por promoções e cargos de confiança,
estendendo-se ao futuro o poder de uma facção bem mais numerosa.
Dividiu-se
a PM, deste modo insólito, em dois segmentos distintos e antagônicos (“fodões”
e “bundões”), instituindo-se um cisma que atingiu limites insuportáveis. O
preconceito contra os “fodões” chegou a ponto de o oficial ou praça não poderem
mais portar arma na cinta em quartéis: Isto já servia para designá-lo como “fodão”
e possível “bandido”.
Isto não foi por
acaso...
Neste
ponto, vale iluminar algumas reflexões escudadas na obra sobre o CV, escrita
pelo Jornalista Carlos Amorim sob o título “COMANDO VERMELHO – A História Secreta do Crime
Organizado”. Assim os leitores poderão observar os registros do livro, com a
ressalva do autor de que tudo o que nele está contido fora fruto de “doze anos de pesquisa”, que “não é uma obra de ficção”, e que “todos os nomes e locais são verdadeiros”.
E assim se reporta Carlos Amorim à questão dos direitos humanos, referindo-se
ao período de governo Brizola:
“Anunciou
uma política de preservação dos direitos humanos, numa cidade onde os grupos de
extermínio agem abertamente. Colocou na Secretaria de Justiça um ex-perseguido
político e companheiro de partido, Vivaldo Barbosa (...). Brizola chega a nomear
um ex-preso político da Ilha Grande, José Carlos Tórtima, Diretor de Presídio.
O crime organizado explorou com habilidade cada uma dessas demonstrações de
civilidade do governo estadual.”
Ainda
nesta linha de raciocínio, Carlos Amorim faz outra denúncia que merece destaque:
“Os
limites impostos à ação policial nos morros da cidade permitiram o enraizamento
das quadrilhas (...). A paz no morro é sinônimo de estabilidade nos negócios
(...). Mas o respeito ao eleitor favelado — que decide eleições no Grande Rio —
ajudou indiretamente na implantação das bases de operação do banditismo
organizado (...). Estava determinado a consolidar a base política que se
apoiava enfaticamente nos setores pauperizados. Na eleição de 82, pesou o apoio
da Federação das Favelas (FAFERJ) e da Federação das Associações de Moradores
(FAMERJ). Mas o fato é: o crime organizado usou tudo isso para crescer (...). O
desenvolvimento do Comando Vermelho foi o subproduto de uma Administração que
respeitou o cidadão.”
Este
foi o clima por mim enfrentado enquanto deputado estadual. Eu fui angariando, sem
perceber, novas inimizades com muitos autodenominados “bundões” e seus
subordinados e parceiros, que a eles se aliaram na conveniente defesa dessa
“tese” adaptada aos conceitos de permissividade do novo governo ao qual se
entregaram em subserviência, desfechando ataques contra os policiais-militares
que se haviam destacado no combate ao banditismo no período Morteira Franco. Eu
parti na contramão desses vis e abjetos em defesa dos policiais civis e
militares que vinham sendo sistematicamente retaliados.
Mas
o poder concentrado por esses facciosos estava mais organizado e maior do que
se poderia supor. Há muito extrapolara o âmbito dos quartéis, porque a facção
PM, formada principalmente por oficiais e praças da PM.2 (Serviço Secreto da
PM) e da Chefia de Polícia Militar, já estava atuando como um “braço de força”
do MP. Também a Polícia Civil organizou o seu “braço de força” naquela “Central
de Denúncias” comandada por promotores, cuja preocupação era demonstrar “eficiência
máxima” na investigação criminal, desde que fosse contra policiais. E, por
isso, os interesses convergiram e originaram essa estrutura sectária, que
passou a “investigar” com um poder acima do comum, e todos obsedados pela
retaliação contra a polícia: a “tese”.
Desse
conúbio de interesses, ainda reforçados pelas Centrais de Inquéritos do
Ministério Público, começaram a surgir absurdas “soluções” para crimes supostamente
praticados por policiais civis e militares, uma obsessão da facção para atender
à “tese brizolista”: o combate a “grupos de extermínio”... desde que os
suspeitos fossem policiais. E isto passou a ser a maior ameaça contra toda a
polícia, porque bastava designar alguém como “exterminador” para que toda a
maquinaria governamental se voltasse contra o alvo, não importando se fosse ou
não verdadeira a acusação. E, geralmente, não era.
O
efeito dessa “tese” contra o aparelho policial logo foi sentido, principalmente
na segunda etapa do brizolismo. Os mesmos facciosos do passado voltaram a
ocupar o poder e reinstalaram a facção com o nítido objetivo de retaliar
aqueles que, durante o governo Moreira Franco, enfrentaram o crime organizado
do tráfico, posição oposta à permissividade praticada por Brizola, esta que
levou seu candidato à derrota para Marcelo Alencar, que tentou recuperar o
tempo perdido, mas também de uma forma equivocada. Enfim, repressão desenfreada
em vez de omissão.
Mas
tornando à omissão, a segurança pública (ou insegurança) foi entregue ao Dr.
Nilo Batista, pessoa de competência jurídica ímpar e inteligência indiscutível,
mas restrito à política populista, e com toda razão, por sinal, pois seu
prestígio alçou-o ao cargo de Vice-Governador, logicamente por ter Brizola a
certeza de que seu segundo homem na hierarquia político-funcional estaria
sempre ao dispor de suas ideias e ações. Caso contrário, ele certamente não
seria o escolhido.
O
Dr. Nilo Batista articulou a transferência de famosos bandidos de BANGU I para
presídios de menor segurança. Um, muito famoso, que já se encontrava fora de BANGU
I, ganhou facilmente a liberdade. Sim, foi aberrante a fuga de um bandido do
CV, saindo pela porta da frente de um presídio de segurança mínima: o Dênis da
Rocinha, em 13 de abril de 1993. Logo a Rocinha, favela frequentada por
Neuzinha Brizola: foi presa em flagrante naquele local. A fuga foi assim foi
registrada por Carlos Amorim:
“Ele
saiu pela porta da frente, vestindo um terno fino, e ainda se deu ao trabalho
de despedir-se dos guardas”.
Ainda
bem que o ilustre jurista foi barrado por uma corajosa Promotora de Justiça, na
época lotada na Vara de Execuções Penais, que ingressou no Tribunal de Justiça
com uma ação judicial e impediu o avanço das mordomias no sistema carcerário.
Um dos pretextos era o de que o “bandido-pai” deveria ficar junto do
“bandido-filho”, o argumento para retirar de BANGU I um prócer do CV.
O
episódio envolvendo Neuzinha Brizola resultou na sua condenação posterior.
Outro
organismo que foi providencialmente ocupado no período brizolista foi a
Defensoria Pública, entregue ao Dr. José Carlos Tórtima, este que mereceu
observações importantes de Carlos Amorim:
“Na
opinião de muitas pessoas ligadas à polícia no Rio, o advogado José Carlos
Tórtima teve influência sobre um certo número de prisioneiros que se envolveram
na formação do Comando Vermelho. Hoje ele é o Procurador-Chefe da Defensoria
Pública do Rio de Janeiro.”
O
Dr. José Carlos Tórtima nega o fato denunciado por Carlos Amorim, do mesmo modo
que Brizola negava a existência do CV, assim como outros membros do PDT mantinham
esse conveniente discurso em uníssono com a ideia do líder maior. Alguns
cegaram a anunciar pelo jornal O DIA que “o
Comando Vermelho não existe”.
Afinal, o CV
existe ou não existe?...
Há
diversos estudos encetados por experientes policiais civis e militares que não
deixam dúvida quanto à existência dessa organização criminosa. No meu modo de
ver, creio que ela existe mais como
cultura do que como estrutura, e
não sei o que é pior...
Um
dos mais preciosos trabalhos a respeito do CV pertence ao TCel PM RR Eneas
Quintal de Oliveira, cuja experiência acumulada ao longo de muitos anos
dirigindo presídios e ocupando cargos elevados no DESIPE empresta enorme e
indiscutível credibilidade às pesquisas que fez e transformou em tese no Curso
Superior de Polícia Militar.
O
livro de Carlos Amorim, também resultado de pesquisa, rebate a dúvida de
Brizola, obstinado líder político que não se permitia a mínima emoção. Brizola
era um estrategista dos mais racionais, tanto que sobreviveu a todas
intempéries que surgiram como obstáculos ao seu maior objetivo: ser Presidente
da República. Ele vinha de longe, e com o discurso decorado de sempre. Duvidam?
Leiam então “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo. Vejam se há alguma
diferença entre o caudilho do passado e o que manteve seu estilo até a morte...
De
acordo com a “Teoria Geral da Administração” (CHIAVENATO, Idalberto.
McGraw-Hill, 1987) uma organização, para existir, depende no mínimo de cinco
variáveis básicas: estrutura, pessoas, tarefas, ambiente e tecnologia. E isto pode ser adequado à
realidade do CV como organização criminosa, mesmo que de forma rudimentar.
Senão, vejamos: a estrutura é informal,
mas existe, e com forte cultura, hierarquia de seus membros, divisão de ambientes, direcionamento de tarefas e manutenção financeira dos
líderes presos (pessoas). O vínculo
hierárquico é poderoso no CV, assim como integrar o CV significa status no mundo do crime. Os líderes são cultuados em
suas comunidades, — o ambiente, —
assim como respeitados por todos os demais segmentos do CV de outras
localidades.
Com
referência ao ambiente, o que era
antes restrito ao Morro do Juramento espalhou-se pelo Estado do Rio de Janeiro
e até pelo Brasil, pois já se observa a prática de crimes por membros do CV em diversos Estados
Federados. O próprio Ivan Custódio Barbosa de Lima, o providencial
“I.”, bandido do CV que surgiu do nada “solucionando” a chacina de Vigário
Geral e acusando falsamente dezenas de policiais civis e militares, como já comprovado
na Justiça. Ele, por si só, representa um bom exemplo da expansão do CV: não se
limitou à sua vasta folha penal carioca; praticou crimes graves em São Paulo e Mato Grosso
do Sul, rota do Cartel de Medellin em direção ao Rio.
As pessoas existem em número
impressionante, assim como as tarefas
criminosas são incontáveis. Por último a tecnologia, dado importante que coloca o CV na dianteira da
polícia, pois os sofisticados instrumentos, indispensáveis às tarefas criminosas, são primeiro
adquiridos pelos membros do CV. Aí está, com todos os ingredientes e uma forte
cultura para sustentá-la, a organização criminosa denominada Comando Vermelho, que hoje se dá ao
luxo de possuir até concorrentes, como o Terceiro
Comando, e aliados (PCC
– Primeiro Comando da Capital – em São Paulo ), entre outros
grupos hostis ou amigos estruturados em torno do tráfico de drogas.
A
cultura do CV não se restringe aos objetivos pragmáticos do lucro com o crime.
Há muito tempo o CV deixou de lado o romantismo do bandido corajoso, dando
lugar ao cunho político de
sustentação dessa cultura. Os ensinamentos da Ilha Grande, local onde os presos
políticos disseminaram a ideia, logo absorvida, da relevância desse aspecto
político, estão hoje muito mais enraizados, assim como envolveram
psicologicamente as comunidades carentes, ambientes
de homizio da maioria dos membros do CV.
A
revolta das populações carentes há muito vem sendo politicamente capitalizada
pelos benfeitores do CV, que sustentam a lacuna deixada pelo ausente Estado.
Considerando-se que a maioria da população do Rio de Janeiro vive na pobreza,
na indigência ou na miséria, amontoada em favelas e bairros periféricos
desprovidos de urbanização e outros meios mínimos de conforto; considerando-se
que isto propicia um ambiente de
incontida revolta das pessoas contra o omisso Poder Público, sem dúvida não poderia haver clima melhor para o
predomínio do Poder Marginal.
Quem
manda no voto das favelas é o bandido, e engana-se quem pensa que isto é feito
apenas pelo terror das armas, o que também é verdade. Existe sim, um consenso
de escolha, principalmente porque o bandido procura se ajustar à sua
comunidade. É neste consenso que espertamente encaixou-se o caudilho desde a
sua retumbante vitória política em 1982.
Isto também não
ocorreu ao acaso...
Sem
dúvida, o CV fez a sua escolha: as comunidades carentes se transformaram em
guetos brizolistas, e silenciosamente abarrotaram as urnas com o nome do
escolhido: “Brizola na cabeça!”
Os
políticos tradicionais não perceberam a extensão e a profundidade do consenso
entre bandidos e comunidades em direção à única solução de mudança. De um lado
o CV, com a certeza da impunidade que viria; do outro as comunidades, apostando
na novidade e apegando-se à esperança de dias melhores. Desta maneira o
ambiente social, principalmente das comunidades carentes, ficou impregnado pelo
PDT e pelo CV no maior casamento político já ocorrido no Brasil, tendo o Rio de
Janeiro como altar-mor.
Brizola não veio
cobrir o Rio de Janeiro com seu poncho gauchesco por acaso...
Carlos Amorim destaca em seu livro que “o encontro dos integrantes das organizações revolucionárias com
criminosos comuns rendeu um fruto perigoso: o Comando Vermelho”. O
jornalista, com rara capacidade de abstração e síntese, apontou sua reflexão
para um dos cérebros do CV: o “Professor”, William da Silva Lima:
“Sobre
isso há um depoimento inquestionável: o primeiro e mais importante líder do
Comando Vermelho, William da Silva Lima – o Professor –, diz que leu muitos
livros na cadeia. Como nessa história todo mundo escreveu memórias, William não
ia ficar de fora. O fundador do Comando Vermelho publicou QUATROCENTOS CONTRA
UM – UMA HISTÓRIA DO COMANDO VERMELHO, pela Ed. Vozes.”
A
Editora Vozes pertence à Pastoral Penal. Mera coincidência? É óbvio que não!
Carlos Amorim, em seu livro, reporta-se a alguns trechos da obra do líder do CV
William da Silva Lima, publicada sob os auspícios daquela Editora e prefaciada
por Rubens César Fernandes, eminente sociólogo e presidente da ONG Viva Rio
(outra coincidência?):
“Quando
os presos políticos se beneficiaram da anistia, que marcou o fim do Estado
Novo, deixaram na cadeia presos comuns politizados, questionadores das causas
de delinquência e conhecedores dos ideais do socialismo. Essas pessoas, por sua
vez, de alguma forma permaneceram estudando e passando suas informações adiante
(...). Na década de 60 ainda se encontrava presos assim, que passavam de mão em
mão, entre si, artigos e livros que falavam de revolução (...). O entrosamento
já era grande, e 1968 batia às portas. Repercutiam fortemente na prisão os
movimentos de massa contra a ditadura, e chegavam notícias da preparação da
luta armada. Agora, Che Guevara e Régis Debray eram lidos. Não tardaria
contatos com grupos guerrilheiros em vias de criação.”
A
propósito da citação do líder do CV sobre a “década de 60” , vale rememorar Brizola e
seus movimentos políticos com vistas à conquista do poder pelas armas. Em 1962,
ele tentou formar seu “Exército de Libertação Nacional”, assim como, em 1961,
protagonizou o famoso “Movimento de Goiânia”, cujo manifesto, denominado
“Declaração de Goiânia”, sugeria a criação da “Frente de Libertação Nacional (FLN)”, tudo inspirado nos “ideais do
socialismo” citados por William da Silva Lima.
Esse
movimento não prosperou porque os militares fizeram-no abortar e iniciaram um
novo período político no Brasil, porém tão afastado da democracia quanto aquele
que pretendia o caudilho. Na verdade, trocou-se uma provável ditadura de
esquerda, talvez sangrenta, devido aos caminhos exacerbados que buscavam seus
defensores, entre os quais o caudilho, por uma ditadura de direita não menos
sangrenta, além de sangrada pelos movimentos clandestinos caracterizados pela
insistência da esquerda em promover a luta armada na cidade e no campo. Não
entro no mérito da legitimidade de nada. Apenas concluo que a ditadura surgiu
em consequência das loucuras do caudilho.
Toda
essa explanação exige o retorno às informações contidas na obra de Carlos
Amorim, um livro que precisa ser lido por todos os cidadãos que desejam
construir a democracia no Brasil de forma transparente e sem conluios
desastrosos. Ao lançar o seu livro, em julho de 1993, pela Editora Record,
Carlos Amorim salientou, conforme já dissemos, que a sua publicação “não é uma obra de ficção” e que “todos os nomes e locais são verdadeiros”.
E surge a primeira e grave denúncia, no prefácio escrito pelo Jornalista Jorge
Pontual, uma “palavra de leitor”:
“O
Comando Vermelho pôde parodiar impunemente as organizações de esquerda da luta
armada, seu jargão, suas táticas de guerrilha urbana, sua rígida linha de
comando. E o que é pior: com sucesso.”
Como
se depreende, não vejo miragem. Esta contundente afirmação de Jorge Pontual
obriga-nos a repetir as singelas declarações de Brizola e Nilo Batista,
entre outros do PDT, assegurando que “o
CV não existe”. Qual policial ousaria, na época, desmentir essa declaração
dele?...
O
livro de William da Silva Lima teve, por parte do governante Brizola, da Pastoral
Penal e da ABI, o patrocínio de seu local de lançamento com pompas de obra produzida
por “gênio literário”. Assim informa Carlos Amorim:
“O
livro de William da Silva Lima foi lançado no auditório da Associação
Brasileira de Imprensa (ABI), no dia 05 de abril de 1991, durante seminário
sobre criminalidade dirigido pelo Instituto de Estudos de Religião, de
orientação católica. O texto final foi copidescado por César Queiroz Benjamim,
um ex-militante do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), que trabalhou
sobre um original de mais de quatrocentas páginas.”
Nota-se
a perplexidade de Carlos Amorim diante das constatações que fez em sua pesquisa
de doze anos, o que torna a sua obra única no gênero. Ele ainda sublinha:
“As
palavras do Professor dão bem a ideia do quanto ele se desenvolveu nos contatos
que manteve na cadeia. Dizem que, ao contrário da maioria dos militantes da
esquerda, ele leu O CAPITAL – conhecimento que ainda hoje falta a muito
comunista de carreira.”
Com
efeito, a história costuma encaixar as ideias e os fatos delas decorrentes como
num quebra-cabeça cujas peças espalhadas custam a encontrar seu lugar no
tabuleiro. Mas acabam se encaixando e formando o desenho final que fora
anteriormente determinado.
Também
não foi por mero acaso que a ABI foi escolhida. É só retornar ao passado e aos
idos de 1962 para constatar que uma das brilhantes presenças no movimento que
gerou a “Declaração de Goiânia” era a do ilustre Jornalista Barbosa Lima
Sobrinho. Por isso, talvez, a ABI tenha sido escolhida como palco do CV... E o
conluio do governante Brizola e de seus sectários com o CV não terminou no
lançamento apoteótico da mais importante “obra literária” do CV. Segundo ainda
informa Carlos Amorim, outro fato surpreendente ocorreu e foi por ele assim
sintetizado:
“Duas
semanas após o lançamento, no dia 19 de abril, o fundador do Comando Vermelho,
com autorização do DESIPE, manteve um encontro com jornalistas estrangeiros no
Hospital Penitenciário. Esta foi a segunda vez na história do sistema penal
brasileiro que um preso comum deu entrevista coletiva à imprensa. Na noite de
autógrafos na ABI, quem assinava os livros era a mulher dele, Simone Barros
Corrêa Menezes.”
Somente
para aguçar a curiosidade e a reflexão daqueles que tiverem acesso à leitura
deste texto, informa Carlos Amorim a respeito desse personagem do CV alçado à
condição de “gênio literário” pelos sectários brizolistas:
“William
da Silva Lima, um pernambucano de cinquenta anos, se considera um guerrilheiro,
(...). Hoje ele está preso em
BANGU I.”
Aparece
também no livro de Carlos Amorim talvez a mais impressionante revelação de
William da Silva Lima, gravada pelo Detetive de Polícia João Pereira Neto, da
Divisão Anti-Sequestro do Rio:
“William
comenta que alguns intelectuais pretendiam usar o Comando Vermelho na luta política.
(...). Alguns deles, pequenos-burgueses, pretendiam usar nossas comunidades e
nossa organização com finalidades políticas. À medida que não deixamos usar,
comprovamos, sem soberba, que conseguimos aquilo que a guerrilha não conseguiu,
o apoio da população carente. Vou aos morros e vejo crianças com disposição,
fumando e vendendo baseado. Futuramente elas serão três milhões de adolescentes
que matarão vocês (a polícia) nas esquinas. Já pensou o que serão três milhões
de adolescentes e dez milhões de desempregados em armas? Quantos BANGU I, II,
III, IV, V... terão que ser construídos para encarcerar essa massa?”
Como
“vou aos morros”, se ele estava preso?... William da Silva Lima é tão
importante líder do CV que Carlos Amorim lhe dedicou muita atenção,
principalmente porque as ligações políticas e os conluios de sectários
brizolistas com o CV alcançaram um incrível pragmatismo nos bastidores desses
contatos. Pois é certo que, para se chegar a assumir publicamente a paternidade
dessas perigosas ligações, como no caso do lançamento do livro do líder do CV,
muitos conluios devem ter ocorrido longe do domínio público. Neste ponto, é
imprescindível destacar outra revelação de Carlos Amorim:
“Na
Ilha Grande, diante de toda a imprensa, um acontecimento insólito: a autoridade
pública é recebida por um dos Vermelhos, um dos novos xerifes da prisão,
Rogério Lemgruber, o Bagulhão. O representante do Comando Vermelho veste
bermudas, camisetas e sandálias havaianas. Mete o dedo na cara do Secretário de
Justiça e comunica a ele que os presos estão cansados de ouvir o blábláblá do
governo...”
E
complementa com outra não menos importante citação:
“No dia 30 de setembro (1983), uma
quinta-feira, os homens de confiança do governador Brizola se reúnem
secretamente num anexo do Palácio Guanabara. O motivo do encontro é a incontrolável
violência nas cadeias. A conversa a portas fechadas dura toda noite e parte da
madrugada. Estão presentes o secretário Vivaldo Barbosa e seu subsecretário
Antônio Carlos Biscaia, o secretário de polícia Arnaldo Campana, o comandante
da PM Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, o diretor do Desipe, Avelino
Gomes, e o coordenador de assuntos penitenciários, Dráuzio Lourenço.”
Como
se pode notar, os personagens do circunflexo convívio do Brizola e do PDT com o
CV surgem naturalmente e se encaixam no quebra-cabeça que representa a história
do brizolismo no Estado do Rio de Janeiro, e a permissividade de seus sectários
com a organização criminosa que se tornou a mais poderosa do Brasil depois de
oito anos de impunidade local.
Tudo
que aqui está retratado permite imaginar a ideia política do caudilho, o seu
sonho inalcançado no passado, o seu “Exército de Libertação Nacional”
representado pelo CV, que hoje reúne os componentes ideológicos necessários,
efetivos surpreendentes e armamentos sofisticados, além do apoio das populações
que mais atendem aos discursos populistas do líder do PDT. E já partem às ações
terroristas...
Será que tudo
isso ocorre ao acaso?...
Em
resumo, há grupos armados de bandidos, há a numerosa e revoltada população
concentrada em favelas apoiando-os, há a guerrilha urbana praticada diariamente
nos “santuários do crime”, há a sofisticação dos sequestros, há a precisão dos
assaltos a carros fortes, a bancos e a outras instituições empresariais, e há o
organizado tráfico de drogas. Há tudo isto motivado pela sigla CV, ingrediente social
instalado na cultura das comunidades carentes e motivador incontestável das
ações de dois poderes que se uniram por laços de comprometimento fortíssimos: o
Poder Público e o Poder Marginal.
Feitas
estas considerações históricas, a reflexão partirá para o segundo período de
governo Brizola, agora com o foco na chacina de Vigário Geral. Em primeiro
lugar, deve-se situar Vigário Geral no contexto do CV. Ainda fixado na pesquisa
de Carlos Amorim, e para garantir isenção na análise, assim salientou o autor a
respeito daquele famigerado local:
“Entre
os grandes chefes que continuam em liberdade há uma divisão de tarefas. Adlas
Ferreira da silva, o Adão, é o pinga-fogo, o braço armado da organização.
Domina um território importante, a favela de Vigário Geral, encravada no
coração da Zona Norte. Adão não é um homem de muitas palavras – é da ação
armada, do confronto. Tem sob seu comando um número ainda não determinado de
soldados equipados com o que há de melhor na indústria bélica mundial. Costuma
requisitar reforços de outros feudos do Comando Vermelho, toda vez que está
envolvido numa grande ação com características de guerrilha urbana. Em todas as
operações violentas – assaltos e sequestros –, a polícia sempre vê um lado do
bandido, justamente o dedo que aperta o gatilho.”
Vigário
Geral e seus bandidos há muito vêm se destacando por seus métodos violentos. No
último período brizolista os traficantes daquele local partiram para o ataque
frontal contra policiais, bastando o exemplo dos quatro policiais civis, da 39º
DP, barbaramente assassinados, em 1993, no Bairro Jardim América, quando
tentavam impedir um “pega” que contava com a assistência de centenas e talvez
milhares de pessoas. Os traficantes ali faziam a “segurança” e vendiam cocaína.
Os policiais civis foram colocados de joelhos, pedindo clemência aos bandidos, e
foram friamente executados, nada ocorrendo como represália por uma polícia
amedrontada e impedida literalmente de contra-atacar.
O
ódio de policiais contra os bandidos de Vigário Geral tem inúmeros
antecedentes, sendo notório que muitos policiais-militares já foram vítimas da
sanha assassina de traficantes ao transitarem em ônibus a caminho de suas casas
ou do trabalho. Bastava serem identificados em insólitas blitzen realizadas por
marginais apenas com o objetivo de matar policiais.
É
notório que Vigário Geral, como assegurou Carlos Amorim, sempre representou um
poderoso braço armado do CV: principais “guerrilheiros urbanos”, temidos até
mesmo por facínoras de outros locais. Esta fama não foi conquistada
gratuitamente. Ali sempre ocorreram lideranças cruéis, como a de Chiquinho
Rambo, – a denominação
fala por si só, – Flávio Negão e
o próprio Adão (Adlas), além de outro famigerado bandido, hoje preso: Zé
Penetra. Todos eles sempre se destacaram por muita audácia. São todos
assassinos ferozes, especialistas em sequestros e assaltos perpetrados contra
instituições financeiras.
Flávio
Negão comandou pessoalmente o bárbaro assassinato dos quatro policiais civis e
dos quatro policiais-militares, o fato último que fez entornar o caldo de um
ódio fervente e acumulado, originando a não menos absurda reação de PMs, cujo
nefasto resultado foi a chacina de 21 pessoas em Vigário Geral.
Independentemente
da barbaridade da reação, que acabou infortunando inocentes, homens, mulheres e
crianças, não se pode deixar de considerar esses antecedentes de ódio, e o
formato operacional de “guerrilha urbana” instalado na cultura de todos.
A
irracionalidade do ato dos PMs teve um antecedente indiscutível: a revolta. E
esta não mede consequências, assim como não se vincula a preceitos de
legalidade.
Por que a
revolta?...
É
lógico que os verdadeiros assassinos devem ser severamente penalizados.
Todavia, isto não irá eliminar o problema. Apenas irá acirrá-lo até à próxima
tragédia, que certamente ocorrerá, caso os bandidos continuem como “líderes”
daquela sofrida comunidade, que não tem outra alternativa a não ser a de ficar
do lado deles. É ilusão pensar que movimentos isolados de pessoas corajosas e
bem-intencionadas irão resolver o problema. Há, naquele local, o império da
anomia.
O
romantismo da democracia emergente não permite a hipótese única da decretação
de um Estado de Defesa, ou até de um estado de absoluta exceção legal – Estado de Sítio –, a fim de que a Polícia e as Forças
Armadas enfrentem os guerrilheiros do CV e demais facções criminosas em
igualdade de condições. Mas esse mesmo romantismo, e o proselitismo de todos
aqueles que continuam a defender a ineficiente e ineficaz ação de uma polícia desmantelada
pelo brizolismo e políticos assemelhados, muito se arrependerão um dia desse
adiamento...
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