“O mundo está perigoso para se viver! Não por causa
daqueles que fazem o mal, mas por causa dos que o vêem e fazem de conta de que
não viram.” (Albert Einstein)
Objeto
de pesquisa da ilustre Antropóloga Alba Zaluar na Cidade de Deus, é de fato controversa
a interação entre esses três segmentos no turbulento ambiente social do Estado
do Rio de Janeiro, notadamente na sua Região Metropolitana e mais
especificamente em favelas. São inúmeras as polêmicas e muitas as conclusões
precipitadas devido ao “senso comum” de que esses segmentos são antagônicos (Cá
entre nós, são mesmo!). Por outro lado, há a mídia sensacionalista e viciada em
ideologias respondendo por boa parte desta dissensão. Em virtude disso, – mesmo incorrendo no risco de ser mal
interpretado, – vamos cometer a imprudência de desenvolver uma reflexão, fruto
de nossa percepção de ex-comandante de batalhão operacional (9º BPM) numa das
áreas de maior movimento urbano: a Zona Norte do Rio de Janeiro. Também
esclareço que, embora tenha escorrido bom tempo (minha percepção remonta a 1989
e anos seguintes), de lá para cá pouco ou nada mudou, a não ser pela ampliação
do problema, que guarda as mesmas características de outrora.
Começando
pelo segmento doentio – os bandidos –, sobrelevam três circunstâncias
fundamentais: o aumento expressivo de marginais da lei na proporção direta do desordenado
crescimento populacional; a exagerada concentração do povo simples em favelas;
e, por último, a impunidade crescente e decorrente de proselitismos políticos,
incluindo a discutível proteção de menores infratores sob o falso pretexto de
que são “vítimas sociais”, embora em boa parte talvez o sejam, o que não
significa aceitar seus crimes como “normais”.
É,
sem dúvida, na capital, a situação mais alarmante, porque aglutina a maior
parcela de trabalhadores mal remunerados, de policiais mal pagos e de bandidos ricos
e ferozes interagindo no mesmo espaço geográfico, numa convivência promíscua
entre rotos e esfarrapados. E não há de se delimitar as fronteiras dessa
convivência no cotidiano da turbulenta interação que se verifica entre esses
segmentos. Todos são vizinhos, os filhos geralmente frequentam as mesmas
escolas, o lazer é comum, o supermercado atende a todos etc.
Sim, eles têm vida comum, pois são integrantes do
mesmo contingente humano socialmente excluído, exceção para os policiais
hierarquicamente superiores, também injustiçados, mas que conseguem ficar à
parte desse cotidiano de pobreza, indigência e miséria. Daí uma inevitável
constatação: todos têm traços culturais compartilhados, orgânicos, e mais
poderosos do que qualquer diferenciação teórico-formal. É, portanto, admissível
que todos se influenciem entre si, que pressionem ou sejam pressionados, na
tentativa de predomínio social.
Se
considerássemos somente a quantidade de pessoas, a vantagem seria dos
trabalhadores, sempre em maior número. Desta forma, os policiais – integrantes
deste segmento da sociedade (trabalhadores diferenciados) – deveriam
submeter-se aos primeiros (trabalhadores comuns), pois os policiais são ou
deveriam ser seus protetores legais. Nesta axiologia, os bandidos
corresponderiam à parcela menos poderosa. Mas a realidade não é bem assim...
Os
policiais contam com a lei e a força do estado coercitivo que representam, mas,
individualmente, na simples condição de vizinhos obrigatórios dos bandidos, anulam-se
pelo temor ou por inevitável amizade quando são oriundos do mesmo berço comunitário.
Na verdade, os policiais só assumem a verdadeira condição de agentes da lei quando
interagem com grupos desconhecidos de outras favelas. Nesse contexto específico
os policiais agem, – dentro da lei, ou fora dela, – no sentido de predominar no
ambiente, de “vencer” simultaneamente trabalhadores e bandidos.
É a grande hora do extravasamento de suas frustrações
e dos recalques acumulados no seu meio de origem. Ou então – e pior –
submetem-se passivamente à corrupção anônima e rendosa, colocando-se ao lado do
bandido e contra o trabalhador.
No fundo, porém, o que os policiais mal pagos mais
almejam é livrar-se do jugo desmoralizante do seu próprio “bandido-amigo”,
enquanto na condição de cidadãos favelados. E não adianta especular sobre
princípios de honestidade, moralidade etc. Isto é pura teoria, distante da
realidade social já explicada. Aliás, desonestidade, anonimato e impunidade não
são privilégios só da elite. A isto o pobre também tem fácil acesso...
Os bandidos, por sua vez, impõem-se pela
arrogância e pelo terror das armas, sem preocupação com anonimato ou com valores
morais e legais. Afinal, são os mais poderosos em armas e dinheiro e contam com
o beneficio maior: a impunidade.
Os favores eventuais que prestam aos
trabalhadores e aos policiais “amigos de infância” só ocorrem quando
obedecidos; caso contrário, utilizam-se do sistema de poder mais convincente: a
eliminação física.
Não existe bandido bom, como defendem
alguns cínicos da política ou do mundo acadêmico. Existe é bandido respeitado –
designado pela insigne antropóloga Alba Zaluar como “bandido formado” – cujo
grau de periculosidade já se comprovou em fases anteriores. Neste caso, ele é
útil à comunidade porque a protege contra os bandidos iniciantes, geralmente pivetes
empolgados com a prática impune do mal. O processo de imposição do poder é o
mesmo: “o bandido formado” é a concretização do predomínio sobre todos, é o
“mal menor”...
No final, quem recebe o impacto mais
doloroso disso tudo é o trabalhador íntegro e pacífico. Desarmado, e só podendo
contar com a força da lei, ele começa perdedor para a impunidade, sendo-lhe
certo que a lei em nada o beneficia. Tem contra si toda sorte de violência (promovida
indistintamente pela polícia e pelo bandido), e, paradoxalmente, sofre com o
anonimato favorável aos maus policiais e aos bandidos.
Achincalhado física e moralmente, o
trabalhador assiste conformado e compreensivo às relações interpessoais de medo
ou de amizade entre policiais e bandidos. E sabe que não pode ser diferente...
Nesta situação de nítida inferioridade
social é que o trabalhador tenta organizar grupos comunitários internos para
instituir um ilusório “poder de maioria”. Mas o bandido está sempre atento,
controlando e subjugando essas lideranças. E as tentativas da polícia (da
parcela desconhecida e não comprometida) e de outras autoridades públicas no
sentido de prestigiar esta prática comunitária, rompem-se à primeira
turbulência pela eliminação física dos líderes comunitários mais insistentes.
As ações governamentais – geralmente
falseadas pelo proselitismo político típico de nossa hipertrofia interventiva estatal
– não têm sido bem sucedidas. Não conseguem fazer predominar os trabalhadores
em detrimento de maus policiais e bandidos. O fracasso das UPPs prova isto,
infelizmente...
Na verdade, essas ações estatais
bem-intencionadas apenas têm servido para inibir a parte sadia da polícia e
estimular ainda mais a omissão através da ameaça generalizada de punições decorrentes
de denúncias mal apuradas e imediatistas. Isto sem falar do excesso de
assassinato de policiais-militares lotados em UPPs.
Aqui, novamente, o bandido vem se
sagrando vencedor absoluto, porque, além de determinar ao trabalhador que
denuncie, inveridicamente, os bons policiais que tentam vencer as barreiras do
medo e da impunidade, o bandido conta com dinheiro fácil para acionar bons
advogados e instrumentalizar juridicamente suas falsas denúncias.
Ao bom policial resta-lhe a
impossibilidade de defesa no mesmo nível de qualidade da do bandido, sendo real
a probabilidade de ser retaliado injustamente pelo imediatismo do seu próprio
sistema, já impotente diante da organização e da sofisticação do crime. Ainda
corre sério risco de ser eliminado por um mau policial, também assalariado do
crime, que está ao seu lado fingindo ser como ele; ou culmina eliminado pelo
próprio bandido, que conta com recursos suficientes para concretizar sua
vontade através de algum de seus pares. Por isso, muitas vezes o bom policial
prefere a omissão à ação, apesar de ser, também, crime previsto em lei.
Comprova-se, por conseguinte, que o
trabalhador é o segmento mais frágil, o de menor poder, em nada significando
sua maioria representativa na comunidade
a que pertence. Em seguida se destaca a fragilidade do policial-militar
em todos os sentidos. Esta é a realidade do cotidiano fluminense, caracterizado
pela vitória do poder marginal, que há muito tomou para si o monopólio da
força, atributo legalmente destinado pela sociedade ao estado, mas que, na
prática, está sob o domínio do bandido.
A única saída deste caos social está
amparada no próprio trabalhador, desde que conte com o apoio irrestrito da
sociedade e do estado. Pois somente esta
reação conjunta poderá reverter esta absurda e caótica situação, esta paradoxal
inversão de valores sociais. Difícil, né?...
Pois com o estado falido, com o
predomínio da impunidade e da cultura escravocrata que caracterizam a nossa
sociedade, com o exagerado conformismo a que estão submetidos os trabalhadores,
com uma polícia saída do mesmo ambiente social pauperizado, formando o
trabalhador e o policial-militar um contingente de rotos e esfarrapados, e,
finalmente, com uma sociedade formal indiferente e clientelista, tal desiderato é humanamente impossível!
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