A CAÇA ÀS BRUXAS
Desde que o mundo é mundo a desordem se integra à vida
do ser humano em sociedade. Se antes os seres humanos eram incivilizados, nem
tanto complexos, a formação de um estado controlador do comportamento
individual e coletivo serviu para instituir uma sociedade formal e civilizada,
pelo menos como hipótese. Mas logo SE viu ser impossível formular regras
absolutas de comportamento, tendo então o estado funcionado dentro da ideia de
que não existe nada absoluto, tudo no mundo social é relativo, até mesmo nos
regimes mais fechados que possamos conceber.
Curiosamente, nos regimes absolutistas ao extremo o
estado teve de apelar para a crueldade dos seus métodos de controle social, e deste
modo se impôs como inelutável detentor do poder, ficando a sociedade que o
criou como refém de si mesma. Nem assim, todavia, foi possível eliminar da
convivência coletiva a desordem, como tendência natural da natureza humana
tornada “social”. E toda esta pressão, que se poderia sintetizar no período das
trevas, época em que a igreja e a monarquia agrilhoaram o povo ao mando
totalitário pela eliminação sumária dos recalcitrantes, nem assim foi possível
vingar uma convivência coletiva pacífica num sistema somente de ordem formal,
excluindo-se a ordem material e sua respectiva desordem. E quanto mais as
sociedades se industrializaram e os seres humanos se tornaram complexos, mais
situações de desordem, como os crimes de fraude, por exemplo, não puderam ser
alcançados pelo poder estatal, a par de sua complexidade, eis que voltada bem mais
para a economia capitalista e seus lucros. Ou seja, os lucros do capital não se
transformaram em lucros sociais a não ser nos discursos, o que não se pode
dizer dos lucros estatais a enriquecerem os ímpios.
Enfim, em se tratando de ordem (seja econômica, seja
jurídica, seja política, seja social), não se pode olvidar a desordem como seu
contraponto, bem como não se pode eliminar contraponto de nada, o mundo é feito
de contrastes e não de consensos, e de contrastes vive o homem. É o que os
estudiosos denominam como o “ser” da convivência social, em contraposição ao defasado
“dever ser” como forma de controle social, este, que varia de povos para povos,
dependendo do regime político que informa a vida do cidadão em sociedade. Mais
ainda se tornou evidente a impossibilidade de o estado controlar todas as
formas individuais e coletivas de comportamento, pois o ser humano é
naturalmente complexo e não consegue se manter adstrito a limites para eles
formulados pelo estado.
Neste estágio da convivência social em que não se pode
evitar a desordem como reação à ordem, seja ela natural (o ser) ou formal (o
dever ser), as leis surgiram como amparo às decisões do estado controlador,
sempre com o foco na ideia de que sua função-síntese é a de “prestar
segurança”, ou, em outras palavras, a de manter a ordem para garantir o
progresso da vida coletiva. Enfim, estabeleceu-se que para haver progresso na
vida individual e comunitária é imperativo haver a ordem. Mas, e a desordem?
Desapareceu?...
Não! Claro que não!... Até porque não foi possível ao
estado controlador tipificar tudo que poderia ser considerado como conduta
imprópria ao bem comum, e deste modo enlatando todo o comportamento humano, nem
mesmo nos regimes mais fechados e avessos à liberdade, nos quais o estado
passou a ser o máximo controlador pelo uso intenso e desmedido da força, indo
ao estremo da eliminação física dos rebeldes por meio do “castigo-espetáculo”,
este que, se antes ia ao extremo do cadafalso e do carrasco, agora é
dissimulado nos tribunais de júri tão paramentados como outrora,
substituindo-se as sobrepelizes pelas togas engrandecedoras do estado
controlador da vida em sociedade.
Vale, neste ponto, reproduzir o marcante exemplo de
“castigo-espetáculo” de um parricida de nome Damiens, retratado por Michel
Foucault em sua magistral obra “Vigiar e Punir”. Leiam e se aterrorizem:
“CAPÍTULO I O CORPO DOS CONDENADOS [Damiens fora
condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da poria
principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa
carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras;
[em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí
será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua
mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com
fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo
derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos
conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro
cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas
cinzas lançadas ao vento.1 Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette
d’Amsterdam].2 Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos
utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi
preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar
as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas... Afirma-se
que, embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador, nenhuma blasfêmia
lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas faziam-no dar gritos
horríveis, e muitas vezes repetia: “Meu Deus, tende piedade de mim; Jesus,
socorrei-me”. Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura
de Saint-Paul que, a despeito de sua idade avançada, não perdia nenhum momento
para consolar o paciente. [O comissário de polícia Bouton relata]: Acendeu-se o
enxofre, mas o fogo era tão fraco que a pele das costas da mão mal e mal
sofreu. Depois, um executor, de mangas arregaçadas acima dos cotovelos, tomou
umas tenazes de aço preparadas ad hoc, medindo cerca de um pé e meio de
comprimento, atenazou-lhe primeiro a barriga da perna direita, depois a coxa,
daí passando às duas partes da barriga do braço direito; em seguida os mamilos.
Este executor, ainda que forte e robusto, teve grande dificuldade em arrancar
os pedaços de carne que tirava em suas tenazes duas ou três vezes do mesmo lado
ao torcer, e o que ele arrancava formava em cada parte uma chaga do tamanho de
um escudo de seis libras. Depois desses suplícios, Damiens, que gritava muito
sem contudo blasfemar, levantava a cabeça e se olhava; o mesmo carrasco tirou
com uma colher de ferro do caldeirão daquela droga fervente e derramou-a
fartamente sobre cada ferida. Em seguida, com cordas menores se ataram as cordas
destinadas a atrelar os cavalos, sendo estes atrelados a seguir a cada membro
ao longo das coxas, das pernas e dos braços. O senhor Le Breton, escrivão,
aproximou-se diversas vezes do paciente para lhe perguntar se tinha algo a
dizer. Disse que não; nem é preciso dizer que ele gritava, com cada tortura, da
forma como costumamos ver representados os condenados: “Perdão, meu Deus!
Perdão, Senhor”. Apesar de todos esses sofrimentos referidos acima, ele
levantava de vez em quando a cabeça e se olhava com destemor. As cordas tão
apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no sofrer dores
inexprimíveis. O senhor Le Breton aproximou-se outra vez dele e perguntou-lhe
se não queria dizer nada; disse que não. Achegaram-se vários confessores e lhe
falaram demoradamente; beijava conformado o crucifixo que lhe apresentavam;
estendia os lábios e dizia sempre: “Perdão, Senhor”. Os cavalos deram uma
arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por
um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após
várias tentativas, foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma: os
do braço direito à cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços,
fazendo-lhe romper os braços nas juntas Esses arrancos foram repetidos várias
vezes, sem resultado. Ele levantava a cabeça e se olhava. Foi necessário
colocar dois cavalos, diante das atrelados às coxas, totalizando seis cavalos.
Mas sem resultado algum. Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Le Breton
que não havia meio nem esperança de se conseguir e lhe disse que perguntasse às
autoridades se desejavam que ele fosse coitado em pedaços. O senhor Le Breton,
de volta da cidade, deu ordem que se fizessem novos esforços, o que foi feito;
mas os cavalos empacaram e um dos atrelados às coxas caiu na laje. Tendo
voltado os confessores, falaram-lhe outra vez. Dizia-lhes ele (ouvi-o falar).
“Beijem-me. reverendos”. O senhor cura de Saint-Paul não teve coragem, mas o de
Marsilly passou por baixo da corda do braço esquerdo e beijou-o na testa. Os
carrascos se reuniram, e Damiens dizia-lhes que não blasfemassem, que
cumprissem seu oficio, pois não lhes queria mal por isso; rogava-lhes que
orassem a Deus por ele e recomendava ao cura de Saint-Paul que rezasse por ele
na primeira missa. Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que
lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas
na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda força,
levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e
depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços, com as espáduas e
axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos; os
cavalos, puxando com toda força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e
depois o outro. Uma vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores
para lhe falar, mas o carrasco informou-lhes que ele estava morto, embora, na
verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se
falasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que, assim que eles
levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda estava vivo. Os quatro
membros, uma vez soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira
preparada no local sito em linha reta do patíbulo, depois o tronco e o resto
foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo à palha ajuntada a
essa lenha. ...Em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último
pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite.
Os pedaços de carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo. Os
oficiais, entre os quais me encontrava eu e meu filho, com alguns arqueiros
formados em destacamento, permanecemos no local até mais ou menos onze horas.”
Há muitos países em que ainda vigora a pena de morte,
sempre, claro, determinada pelo estado-protetor-controlador do todo em suposto
benefício da parte. Já outros eliminaram a pena capital, porém mantiveram a
prisão perpétua, não se sabendo o que é pior numa comparação simples de quem
não está na condição de condenado. Outros escalonaram as penas de prisão, indo
de um máximo a um mínimo de controle que hoje, por exemplo, no Brasil, alcança
a prisão domiciliar e a tornozeleira eletrônica, que permite ao estado
controlar cada passo do condenado, até que numa progressão de pena ele alcance
a liberdade, porém jamais absoluta, já que ele deixa de ser criminoso primário.
Mas nem assim, nem com esta magnitude de controle da sociedade pelo estado, a
desordem foi nem será eliminada da vida coletiva, o que demanda mais
providências estatais de controle, já aí por meio da coerção direta de agentes
públicos incidindo sobre pessoas e coisas sem necessidade de prévia
tipificação, o que na doutrina do direito, mundo afora, se ousou denominar
“Poder de Polícia”, vocábulo exsurgido do direito tributário norte-americano
(“Police Power”), segundo se sabe, o que é mero detalhe, o objeto desta criação
pelo estado controlador foi, é, e sempre será um subjetivo “bem comum”.
Como se vê, para o cidadão como individuo detentor de
direitos sobra-lhe bem mais dever que direito, assim como para a comunidade à
qual se integra, embora o pressuposto estatal seja o de sua segurança
individual e comunitária. E como a desordem pública é multivariada e
multifacetada, o estado, por meio de seus agentes, tem de se desdobrar em
muitos para manter o que entende como ordem, tendo como inevitável contraponto
e desordem. E para a esta se antecipar, o agente público se vê às voltas com a
necessidade inadiável de formular imediatos juízos de valor ante um
comportamento supostamente delituoso ou desordeiro, tendo de agir, todavia,
levando em conta que seus excessos estão tipificados como crime. E quanto mais
liberdade presumida possui o cidadão, menor é a capacidade de coerção estatal
por meio do seu agente público. Este é o cenário de ação de uma polícia administrativa,
cenário atual das polícias uniformizadas, no caso brasileiro, das polícias
militares, da polícia rodoviária federal, da polícia ferroviária, das guardas
municipais e semelhantes, sendo certo que algumas dessas instituições
fiscalizadoras do comportamento individual e coletivo, com fundamento inicial
no Poder de Polícia, não usam farda nem uniforme, são identificadas às vezes
por coletes improvisados ou simplesmente por nada: usam roupas comuns a todos
os cidadãos, ostentando apenas uma identidade funcional ou um crachá.
O assunto não tem fim. É um processo a ser
permanentemente estudado, avaliado, reavaliado etc. Enquanto isso, no vácuo das
incertezas e das turbulências ambientais novas leis e regras de controle proliferam,
voltando-se aos tempos das delações que levaram muitos inocentes à fogueira, à
forca, ao fuzilamento, bastando lembrar a história tenebrosa das “Bruxas de Salém”.
Ah, estamos em nova temporada de “caça às bruxas” que faria Tomás de Torquemada
corar. É, sim, o que se assiste atualmente num atordoado Brasil que se abraça
aos “dedos-duros” para vigiar e punir supostos criminosos, sem se importar se
dentre eles possa haver inocentes. Sim, sim, onde impera a pena capital o
estado aposta cinicamente numa tal “humanização” da morte como se uma fosse
diferente da outra para quem é por ela alcançado. E aqui, no atual torrão
tupiniquim, o estado “salvador” seleciona as reses para o abate deixando no
pasto algumas cabeças merecedoras de igual fim, mas que precisam se reproduzir,
senão o “castigo-espetáculo” cessará e deixará o povo sem o pão e o circo, sem
o seu “César” a esperar o polegar lhe indicando: “Este sim, este não! Este sim,
este não!” E assim sucessivamente, até quando Deus quiser acabar com a festa mandando
um meteoro invencível. Pode demorar, senhora e senhores, mas ele virá!...
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