domingo, 24 de maio de 2015

Distração I

Ando meio desanimado. Vejo-me em pessimismo diante dos acontecimentos policiais que só dão conta de fracassos. Sim, pois não há um só dia em que os jornais não estão apinhados de notícias ruins. São tragédias afetando cidadãos e suas famílias, ou notícias desmerecendo a polícia, em especial a PMERJ, o que me obriga a adotar uma postura crítica, muito a contragosto, pois sempre sonho com uma corporação melhor e feliz, o que, infelizmente, sei ser utopia. Mas, em vista disso, vou postar aqui algumas histórias de PM para distrair. Se forem verdadeiras ou falsas, deixo com o leitor a conclusão. Feita a advertência eis a primeira:


OS AZARADOS


Serafim e Expedito eram dois eternos azarados, tanto quando estavam juntos como quando separados. Juntos porque ambos eram milicianos e formavam uma singela dupla de radiopatrulha, para que não se comece logo pensando que eram gueis ou algo que o valha, o que já lhes seria uma errônea interpretação ou má sorte, porque, machões como arrogavam ser, não lhes ficaria bem encaixilhada a dúvida, o que já lhes seria um azar. Mas, convenhamos, a má sorte eles efetivamente carregavam, e muita, fardo tão pesado que até devo ter alguma cautela, cruzar os dedos, apelar para a proteção duma figa de guiné ou enfiar no bolso um trevo de quatro folhas e demais mandingas, de modo que não me atinja a urucubaca desses dois milicianos, como vocês poderão constatar, esperando que não deem nenhuma topada no caminho desta leitura nem cortem o dedo ao virar a página...

Sim, o caiporismo deles vinha longe no tempo, desde crianças. Se lhes começássemos agora a contar as quebraduras de ossos, difícil seria saber quem ganharia de quem, e somente considerando os casos de prova concretizada. Serafim venceria Expedito por uma costela quebrada a mais. Em compensação, Expedito daria um banho de vitória em Serafim na hora de lhes contar as cicatrizes. Eram marcas para todos os lados, em ambos, que mais pareciam que eles haviam um dia participado da Guerra do Paraguai, mas no papel de soldados de Solano López e a enfrentarem o 12º de Voluntários da Pátria. Em serviço, na PMERJ, e em matéria de marcas de tiro nas carcaças, estavam quase empatados, eis que cada um tinha duas, porém neste caso Serafim levaria a melhor, posto uma das marcas de Expedito ocultar-se exatamente na região glútea. Daí a alusão a quase empatados...

Muitos, por esta hora, devem estar pensando que aqui estamos tratando de brincadeiras; mas, como brincar com o azar? Não deveríamos brincar com a má sorte de ninguém, é verdade, mas não há como não achar engraçada a última cicatriz de Expedito. Para variar, ele estava de serviço com Serafim quando receberam pelo rádio a incumbência de perseguir um ladrão de galinhas e similares no bairro de Santa Rosa, em Niterói, onde a azarada dupla policiava rotineiramente.

Era uma noite chuvosa. O ladrão, ao avistar os destemidos patrulheiros, danou a correr pelos quintais das casas, pulando muros e cercas, com Serafim no encalço dele, e à frente de Expedito, este que, de repente, gritou lá de trás para Serafim: “Tô pegado!” Serafim largou o ladrão de lado e voltou correndo em socorro do amigo, pensando que ele fora baleado ou esfaqueado, pois assim se entendia na prática o terrificante grito de dor. Mas não fora tiro ou facada que “pegara” Expedito. Quando Serafim dele se acercou, no escuro, desatou uma sonora gargalhada ao ver o colega preso numa cerca, todo enrolado e sem poder se desvencilhar dos arames farpados que o feriam por tudo que era lado. É, efetivamente, Expedito estava “pegado”... na cerca, e não foi pouco o trabalho para retirá-lo dali, o que foi feito por Serafim graças a um cidadão que surgiu com um alicate... Ah, é preciso dizer que a ferramenta não deixou de produzir suas sequelas nos inábeis e azarados dedos da dupla?...

A segunda-feira era sempre cheia de problemas para Serafim e Expedito, ambos zagueiros de boa estirpe no futebol de domingo, porém azarados como só eles conseguiam ser. Mesmo assim, nunca abdicavam de jogar pelada no campo de várzea do bairro onde moravam, e era o bastante para surgirem sem o pedaço do dedão do pé, perdido na hora do chute, ou então ostentando um feio arranhão no joelho, ou um ovo na canela, ou um inchaço no tornozelo, ou... E assim chegavam em quartel no dia seguinte, ambos mancando e de havaianas nos pés. Calçar butes, nem pensar!...

Mas o comandante da dupla era bastante condescendente. Sabia, afinal, que Expedito e Serafim comportavam-se como bons milicianos, perfeitos cumpridores dos deveres da caserna. Mas o azar deles corria a praça... Por isso, naquela segunda-feira, e em muitas outras, o sargento de antemão escalava a dupla na reserva da guarda do quartel, pois eles sempre chegavam despedaçados. E não adiantava lhes dar conselhos para que parassem com o futebol aos domingos, trocando-o por uma corrida rústica, por exemplo. Aliás, não adiantava, porque Serafim tinha trauma de corrida, bem como Expedito: ambos já haviam sido atropelados quando faziam uma simples caminhada pelas ruas do bairro. Sim, a questão não era o que faziam, mas o azar que carregavam em seus embornais como um fardo inevitável.

Nem é caso de aqui lembrar quando eles resolveram andar de bicicleta, um carregando o outro na garupa. Caramba!... Aí é que suas carcaças receberam marcas e marcas, algumas que até os levaram à solidária internação hospitalar. Aliás, no hospital da PMERJ, chamado de HPM/Niterói, havia um quarto com duas camas sempre esperando os azarados. Eram dois clientes preferenciais do nosocômio, sem falar nos acidentes que lá mesmo ocorriam, de modo que muitas vezes as altas tinham de ser adiadas para novos tratamentos.

Certo dia, Serafim e Expedito foram a um terreiro de candomblé por indicação de amigos do quartel. Diziam que o azar deles era quebranto. Não era!... Voltaram desencantados com o pai-de-santo, pois logo na chegada da dupla, ele mesmo, o pai-de-santo, deu uma baita topada num pequeno e enfeitiçado toco de charuto e caiu de cara no chão, incrível azar que ele logo atribuiu à azarada dupla. Ainda houve outro acidente durante a consulta mediúnica, um incêndio na garrafa de cachaça, que quase explode tudo, provocado por Expedito no instante em que o pai-de-santo lhe mandou puxar a fumaça de outro charuto. Das mãos do pai-de-santo até as mãos de Expedito, em pequeno espaço, a brasa do charuto fez o estrago, pois Expedito deixou o charuto cair exatamente onde estava a cachaça. Zzzz... Vupt... Puumm! Ai, ai, ai!... Eta dupla!... Não era dia de graça para uso de charutos... Que me desculpem vocês, mas agora foi comigo o azar: acabei de torcer meu fura-bolo ao ajeitar a cadeira pra me acomodar melhor em frente do computador! Ai! ai!... Vou dar um tempo... Depois eu volto...

Ainda bem que a má sorte daqueles milicianos, que até me atingiu, não afetava suas famílias, porque assim seria azar demais da conta. Com eles, porém, coisas inacreditáveis realmente ocorriam, como, por exemplo, quando estavam rodando em radiopatrulha nas ruas. Na Central de Operações já se sabia que entrariam no rádio as comunicações mais estapafúrdias da paróquia, como a que Serafim um dia repassara:

– Atenção, Central! Estou conduzindo o PM Expedito ao nosocômio. Ele está com a cabeça quebrada.

– Po-si-ti-vo, RP, po-si-ti-vo, mas, que houve? Você não comunicou nada?...

– Po-si-ti-vo, Central!... É que não houve tempo. Expedito foi abordar um suspeito na calçada e não viu o bueiro sem tampa. Enfiou-se nele e se deu mal...

Ou então era o contrário, quando Serafim foi chamado na rua por aflita moça que se dissera assaltada por um pivete ainda correndo à vista de todos. Mas foi só Serafim romper atrás dele para tropeçar num paralelepípedo e se esborrachar no chão, machucando-se deveras, enquanto o pivete sumia numa dobra de esquina. Tombo mais espetacular levou Expedito numa feira livre, onde ingressara cheio de autoridade para admoestar um português que estava a vender caro demais seus produtos, com a mulherada na maior chiadeira. E lá se foi Expedito feira adentro, o mulherio atrás em algazarra e xingamento, quando de súbito ele escorregou numa casca de banana esborrachando-se voluptuosamente no asfalto. E lá se foi o azarado direto ao HPM/Niterói, socorrido pelas próprias mulheres que pretendia socorrer dos preços altos do portuga. Deste modo insólito ele culminou “visitando” Serafim, ainda internado, ficando ambos em “patrulha hospitalar”...

No quartel, havia grande preocupação dos companheiros dos milicianos com o exagerado azar que os perseguia. A maioria da gentes milicianas achava que Serafim e Expedito um dia teriam a má sorte de serem vítimas fatais na profissão. Tinha lógica a apreensão, porque os azares não cessavam, nem mesmo com mandingas, rezas e descarregos que eles repetidamente providenciavam. Porém, o máximo que conseguiram foram mordidas de cachorros ferozes numa residência que estava sob suspeita de assalto, tendo os proprietários acionado a polícia, mas com a casa fechada e os cachorros à solta no quintal.

Com a chegada apoteótica da dupla, se ali existisse algum assaltante ele já estaria na China, tal o aviso que a sirene certamente lhe daria. Ainda foi a estrídula sirene que irritou sobremaneira as feras, que babavam e tentavam romper as grades do portão para abocanhar as canelas e outras partes dos milicianos, já assustados, mesmo que protegidos pelas grades.

Veio então o amedrontado dono da casa olhando para todos os lados à procura do ladrão, este que já se havia escafedido fazia tempo. Foi quando Serafim falou: “Prenda os cães!” Logo, então, o dono da casa correu a cuidar do pedido, chamando os cachorros à ordem. Sim, a energia do dono da casa levou-os ao canil, onde foram presos a sete chaves, enquanto Serafim e Expedito vasculhavam minuciosamente o quintal, o portão já aberto para a entrada deles. Nem tanto assim a sete chaves, eis que das sete o cidadão se esqueceu de dar a volta na última delas, ficando os endiabrados cães presos com apenas seis, número insuficiente para lhes conter a ira. Assim todos escapuliram, indo direto contra Serafim e Expedito, decerto vendo-os como lauta refeição... Três meses internados, lanhos e mais lanhos pelo corpo todo...

Diriam os leitores: “Mas, que azar danado!” Diriam com inteira razão, porque três meses depois eles lá estavam, insistentes, buscando uma solução espiritual para lhes eliminar da vida o azar. Com essa esperança, foram a uma conhecida cartomante, que, segundo diziam, costumava tirar com sucesso absoluto os quebrantos e todas as demais espécies de maus-olhados, jetaturas e caiporismos existentes na face da Terra. E partiram à cartomante subindo a ladeira do Morro dos Predestinados, designação merecida, de tanto que a tal sortista já resolvera problemas alheios, além de assegurar a todos que encarnava o espírito da cabocla Bárbara, que, no passado, profetizara à Natividade a briga entre os filhos gêmeos, Pedro e Paulo, ainda no ventre materno, como biblicamente ocorrera com Esaú e Jacó, e assim narrou o mestre M. de Assis. Mas, no caso de nossos mal-aventurados milicianos, não estavam eles preocupados com “coisas futuras”, e sim com o azarado presente.

Contudo, nem chegaram à cartomante, o azar não lhes permitiu tal intento. O terreno lamacento e escorregadio, de anterior chuvarada, deveria ter sido o suficiente para que a dupla desistisse da ideia de arriscar a sorte (ou o azar) naquele malfadado dia. A esperança, porém, era mais forte, e eles preferiram se arriscar na aventura em busca da solução definitiva para seus azares. Mas o que conseguiram foi um espetacular tombo, ora rolando Serafim, ora embolando Expedito, ora ambos grudados pela lama, como arroz de japonês, escorregando ladeira abaixo sem nada a lhes travar no caminho. Pararam somente no pé do morro, com ferimentos vários e muitos músculos luxados. Incrivelmente, desta feita entenderam que tiveram sorte, eis que nada quebraram. E retornaram animados, porém mancando como condenados e expandindo sofridos ais pelo caminho.

Entre tombos sensacionais, e tiros no lombo, e trombadas de carro, e topadas, Serafim e Expedito entraram de férias. Como eram unidos na alegria e na dor, resolveram viajar com as famílias para uma praia na Região dos Lagos, onde alugaram uma casa. De caminho, as mulheres foram logo avisando que eles estavam proibidos de ingressar na cozinha, qualquer que fosse o motivo. Eles, sérios e compenetrados, concordaram; tinham consciência do azar que os perseguia; porém, não davam os pescoços à forca; esperavam o dia de tudo mudar e a sorte chegar, mesmo que tardiamente.

Durante a viagem, na peleja entre o azar de ambos e a sorte das famílias, ganharam as últimas. Ainda bem, porque acidentes em estradas sempre acarretam vítimas fatais, que não é o caso de aqui inseri-las porque seria azar demais... Daí que, assim, tranquilamente, eles chegaram ao destino, o carro lotado de gente, só parando em frente da casa, à beira da praia do Peró, em Cabo Frio.

Frio induz a se pensar em “fria”, pois logo que desceram do carro Serafim e Expedito deram asas ao caiporismo. Sim, logo na chegada, posto que ambos correram ao porta-malas para trocar gentilezas. Expedito dirigira o carro e Serafim cogitara retribuir-lhe o esforço levando para dentro da casa a bagagem. Foi quando Expedito, distraído, abriu de súbito o porta-malas, exatamente na hora em que Serafim abaixava a cabeça na linha de encontro com a tampa que subia. Foi aquela pancada na testa! Pior ainda foi a reação de Serafim, que arriou a tampa no susto exatamente no momento em que Expedito enfiara a cabeça debaixo dela para ver a bagagem. Que pancada na nuca!... Ficaram olhando um para o outro, ambos atônitos e coçando as doloridas cabeças, um atrás e o outro na frente, enquanto a mulherada e os filhos riam às bandeiras despregadas, o menorzinho rolando no chão todo mijado e borrado, encenando uma galhofa particular em homenagem aos dois azarados.

Será que eles perderam o otimismo?... Que nada! Afinal, a praia estava ali, azul, limpa (?), linda, convidativa. As famílias entraram na casa, mas com eles sendo antes dispensados pelas patroas com a ordem de permanecerem do lado de fora para evitar acidentes. E depois de tudo arrumado, finalmente foram chamados a entrar para trocar suas roupas austeras por calções de banho. As famílias, por esta hora, estavam já arrumadas em estilo e imediatamente partiram à praia. Eles entraram e deram de cara com uma lastimosa realidade: as patroas esqueceram de levar-lhes os calções; só colocaram na bagagem suas cuecas sambas-canção. Depois de muito tempo é que eles então lograram comprar novos calções de banho; mas o lusco-fusco do anoitecer já lhes transferia o banho de mar ao dia seguinte...

Mal amanhecera e lá estavam os dois, de calções exatamente iguais, – de um ridículo vermelho sangue-de-drago, eis que na loja não havia de outras cores, – e correndo em direção à água, é claro que sem as devidas precauções, porque, além de quente, a areia estava cheia de cacos de vidro jogados por farofeiros irresponsáveis durante a anterior noite de farra. Já sabem o que aconteceu... Os dois azarados com seus pés cortados, dor lancinante, sangue voando longe e eles correndo à farmácia sem nem mesmo pisarem na água. Voltaram de caras chorosas, com a recomendação do farmacêutico para se preservarem até que os cortes sarassem, ambos ainda com os traseiros formigando da picada do antitetânico... Mas, creiam-me, nem assim eles perderam o contagiante otimismo...

Três dias vendo a família mudar de cor, indo ao bronze, e eles, brancos como a neve em inverno rigoroso. Ah, peguei vocês!... Sei que muitos estavam pensando que Serafim e Expedito eram negros, devido aos nomes. Aí, cá pra nós, neste país das desigualdades e das discriminações, seria azar demais... Acham que não?... Ora, seria sim, não faltaria quem não estranhasse preto na praia, como se tomar banho de mar e pegar sol fosse privilégio apenas de brancos.

Eram brancos, sim. E três dias depois finalmente conseguiram chegar até à água e mergulhar. Não, não bateram com as cabeças nas pedras debaixo d’água, não! Foram precavidos e mergulharam somente onde os filhos faziam o mesmo. E ficaram no banho, com a água salgada curtindo suas peles alvas e o sol lhes queimando os lombos sem que eles o percebessem. Deste modo, eles se foram avermelhando, apimentando, efervescendo e... pronto: queimadura de primeiro grau em ambos! “Eta azar!”, até pensaram, mas as famílias discordaram, concluindo e convencendo-os de que eles apenas não atentaram para os perigos do excesso de raios solares, não se tratando, portanto, de azar. Eles ouviam as ponderações das mulheres e das crianças, dando-lhes razão, enquanto externavam intermináveis ais...

Mais três dias de sombra, pomada e ansiedade, com Serafim e Expedito olhando da varanda a família se divertindo. Estavam chateados, de um lado, porém felizes em ver a família contente, do outro. Assim curaram os pés e quase que também as queimaduras, os dois planejando como agiriam no dia seguinte para curtirem a praia sem acidentes. Não lhes seria fácil, eles sabiam, mas já estavam acostumados aos azares. Enfim, torciam por eles mesmos...

– Amigo, vamos nos separar amanhã para enganar nosso inimigo? – sugeriu Serafim a Expedito.

– Concordo. Se o Azar vier, vai ter que escolher somente um de nós. Assim pelo menos o outro se salva – animou-se Expedito.

Pensavam erradamente. O azar era multifacetado e tinha como se dividir para alcançá-los indistintamente e num átimo. Eles é que não sabiam disso, e foi pior a emenda que o soneto, aforismo apropriado ao acidente que eles arranjaram mesmo que astutamente separados. Sim, a má fortuna era mais arguta que ambos, independentemente de eles se posteram a quinhentos metros um do outro, distância em que se comunicavam apenas com acenos de mão, especialmente com o polegar de uma delas de quando em quando voltado para cima indicando o Oll Korrect, pois os azares da parte da manhã foram por eles superados e o sol já começava a ceder seu brilho ao lusco-fusco do crepúsculo sem que nada de novo e azarado acontecesse...

Veio a noite e eles, abusando demais da sorte, ficaram curtindo as delícias da água ainda aquecida pelo sol causticante do dia... Distraídos, porém, não viram que vinham vindo umas barbatanas ameaçadoras na direção deles, um grupo de barbatanas para um, e outro grupo de barbatanas para o outro: eram pequenos tubarões que arremeteram contra os azarados como aqueles cachorros bravios lá de trás. E eles, apavorados, pularam fora d’água do jeito que o Todo-Poderoso permitiu e ajudou, senão teriam morrido. Não morreram; porém, ficaram com os corpos lanhados e foram levados por populares ao hospital mais próximo. Mais três meses de mertiolate, pomada e ataduras deixando Serafim e Expedito como verdadeiras múmias egípcias. É óbvio que as férias terminaram antes do tempo, para azar também das famílias, que voltaram desalentadas...

Mas, “será o Benedito?”, diziam no quartel os companheiros de Serafim e Expedito, já sabedores do mais novo azar, sempre o penúltimo da vida deles. Nem souberam o que houvera antes naquelas malfadadas férias e na azarada praia; muito menos souberam que depois, ainda no hospital, outro acidente pegaria a dupla antes da alta. Uma bobagem à toa, mas tinha de acontecer com eles: a enfermeira se distraiu e deu aos dois diversos comprimidos de laxante em lugar do antiflogístico prescrito. Eram exatamente iguais...

Fim de férias, o trabalho chama-os de volta; também as galhofas dos companheiros, que fugiam da dupla fingindo-se medrosos e avisando que azar “pegava” feito AIDS. E eles, coitados, desta vez sentiram certa discriminação, porém, como sempre, não reclamaram. No fundo, tinham esperança de que aquela fase azarada um dia se findasse por conta de alguma fada bondosa. Sim, leitores, eles eram azarados, sim, mas jamais perderam a fé!...

Saíram de serviço depois de vinte e quatro horas sem qualquer acidente de percurso. Dentro do alojamento, já de banho tomado, e sem acidentes, Serafim e Expedito se entreolhavam desconfiados. Seria possível?... Seria, sim. Realmente, depois de muitos anos, eles passaram, juntos, vinte e quatro horas consecutivas sem que nada de anormal lhes acontecesse. Resolveram aproveitar a maré de sorte (ou de distração do Azar) e jogaram ambos na mega-sena acumulada... E foram sorteados! E apenas os dois! E pasmem: sessenta milhões de reais!

Foram-se embora o Azar, e a Polícia Militar, e a radiopatrulha, e todo o resto da farda esmerilhada por tantos azares, posto que ambos pediram licenciamento e se mandaram para outras paragens. Hoje curtem com suas famílias a doce vida dos ricos. Sim, partiram do azar extremo para uma sorte inigualavelmente absurda, como somente poderia acontecer neste caso, para azar dos que torceram para que esta história jamais terminasse, ou que terminasse mal para os azarados, pois assim sói comportar-se a sociedade em relação aos PMs: desejam-lhes sempre o azar...


Um comentário:

Paulo Xavier disse...

Bom dia Cel Larangeira.
Deixando o desânimo e o pessimismo de lado, essa narrativa me fez lembrar de um caso que dizem ser verdade e acontecido na minha Macaé, nos idos dos anos 70.
Havia um sujeito apelidado de "Menos Um", que de tão azarado quanto o Serafim e o Expedito, sofrera um acidente de moto e perdera um dos testículos, daí o apelido. Menos Um jamais conseguira ganhar uma única aposta, nem cerveja na porrinha ele conseguia ganhar. Num belo dia teve a idéia de tirar proveito do fato de ter um testículo a menos; então no bar bebericando uma cerveja, virou-se para o Zeca, morador novo no bairro, inquiriu:_Zeca, vamos fazer uma aposta? _Fala aí Menos Um!
_Zeca, quer apostar como nós dois juntos temos apenas três "ovos"?
_Vale o que?
_Uma dúzia de cerveja.
_Tá valendo.
_Vamos lá no banheiro, quem quer ser testemunha? Lógico que ninguém quis testemunhar aquela aposta pra lá de insólita.
Quando arriaram as bermudas Menos Um gelou. Não é que o Zeca era portador desde o nascimento de três enormes testículos. E lá foi o Menos Um pagar mais uma aposta.