domingo, 31 de agosto de 2014

ORDEM PÚBLICA E SEGURANÇA PÚBLICA: COMO FICAM AS GUARDAS MUNICIPAIS NESTE CONTEXTO?



(Visão sistêmica, da lavra do Professor DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO)


(Análise intertextual, por Emir Larangeira)

Arrisco-me aqui, em texto que não pode ser tão sucinto devido à complexidade, a adaptar intertextualmente uma palestra do emérito Professor Universitário de Direito Administrativo, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, autor de mais de duas dezenas de livros e de muitos artigos versando sobre ordem pública, segurança pública e seus desdobramentos doutrinários, que são vastos. Finalizo comentando sobre as Guardas Municipais em vista dos Decretos-Leis nº 667/69 e nº 88.777/83 (R-200). Alerto aos leitores que posso ter cometido deslizes de conceito. Afinal, o assunto é ainda muito incerto e duvidoso até para expertos. Em tendo ocorrido falhas conceituais, solicito aos leitores que me perdoem e informem no campo de comentários para os devidos reparos, assim como serão bem-vindas quaisquer contribuições. Dito, vamos então à análise proposta.

1.   Partindo do conceito genérico de sistema e depois fixando o raciocínio no sistema social, o Prof. Diogo fez inovadora abordagem a respeito da ordem pública e da segurança pública, argumentando inicialmente que todo sistema possui uma organização e uma ordem. Eis alguns conceitos preliminares por ele firmados para escudar a evolução do seu raciocínio:

1.1 – sistema (Hanika, F. de P.): “qualquer entidade, conceitual ou física, composta de partes inter-relacionadas, interatuantes ou interdependentes”.

1.2 – ORGANIZAÇÃO: “caráter regular e estável das interações dentro de um dado sistema”.

1.3 – ORDEM: “pré-requisito funcional da organização. Disposição interna que viabiliza uma organização”.

1.4 – PRÉ-REQUISITO FUNCIONAL: “condição indispensável para o funcionamento de uma sociedade concebida como um sistema social”.

1.5 – CIÊNCIA SOCIAL: “é a ciência dos sistemas sociais” (Gorokin).

2.   Com base nesses fundamentos teóricos aqui resumidos, o Prof. Diogo passa então a formular seu entendimento da ordem pública e da segurança pública a partir de um POLISSISTEMA SOCIAL por ele concebido para estudo da seguinte maneira:

2.1. O POLISSISTEMA SOCIAL deve ser primeiramente desdobrado em dois grandes sistemas, a saber: ORGANIZAÇÃO e ORDEM SOCIAL.

2.2. Mantendo o foco apenas nesses dois grandes sistemas, não sem explicar que são infindáveis os grandes sistemas, tais como econômico, familiar, religioso, acadêmico, sistema de convivência pública etc., o mestre fixa-se em dois específicos: SISTEMA POLÍTICO e SISTEMA JURÍDICO, esclarecendo que ambos, respectivamente, possuem sua organização e sua ordem: ORGANIZAÇÃO E ORDEM POLÍTICA e ORGANIZAÇÃO E ORDEM JURÍDICA.

3. Em seguida o Prof. Diogo faz distinção entre SISTEMA SOCIAL e SISTEMA NATURAL, assinalando que o sistema social ocupa-se também da DESORDEM, advindo daí a ORDEM NORMATIVA. Em outras palavras, as ciências naturais cuidam do estudo dos sistemas reais (SER), enquanto as ciências sociais ocupam-se do estudo dos sistemas reais (SER) e dos sistemas ideais (DEVER SER).

4. As ciências sociais, no primeiro caso (SER), são DESCRITIVAS (constatação e descrição); no segundo caso (DEVER SER), elas são NORMATIVAS (imposição).

5. Restringindo o raciocínio àquela ORDEM SOCIAL do POLISSISTEMA SOCIAL retro-mencionado, o Prof. Diogo estabelece o entendimento de que existe uma ORDEM SOCIAL DESCRITIVA e uma ORDEM SOCIAL NORMATIVA (FORMAL).

6. A seguir, deduz que todo sistema social (político, familiar, jurídico, religioso, da convivência social etc.) possui uma EXPRESSÃO DESCRITIVA e uma EXPRESSÃO NORMATIVA. Torna então ao SISTEMA POLÍTICO para aprofundar o raciocínio:

6.1. Deste modo, o SISTEMA POLÍTICO se desdobra em duas vertentes sistêmicas: ORDEM POLÍTICA DESCRITIVA (estudo das ciências políticas) e ORDEM POLÍTICA NORMATIVA (referente ao direito político).

6.2. Ou seja, cada nominação, descritiva ou normativa, representa um subsistema de um só sistema, ficando clara a disposição e a função de cada subsistema.

7. E finalmente ele focaliza o SISTEMA DE CONVIVÊNCIA PÚBLICA, objeto restrito do raciocínio sobre a ordem pública, para posteriormente se chegar à segurança pública vista como GARANTIA da ordem pública.

7.1. Sobre o sistema de convivência pública o mestre enquadra “todas as relações entre indivíduos e coletividades”. E seguindo a linha de raciocínio temos de um lado o subsistema ORGANIZAÇÃO e do outro o subsistema ORDEM, que no caso é a ORDEM PÚBLICA.

8. Sim, eis que surge a ORDEM PÚBLICA, que, segundo o Prof. Diogo, é “pré-requisito de funcionamento do sistema de convivência pública”. E complementa assegurando que este “pré-requisito de funcionamento se contém em todo polissistema social, porque viver em sociedade importa em viver publicamente”.

8.1. Observe-se que a noção sistêmica permeia todo o estudo, significando dizer que não existe ente isolado no mundo, real ou ideal, tudo interage com tudo, tudo influencia tudo e é por tudo influenciado. Enfim, um conceito é sistema e sua prática é sistema, e ambos podem ser supersistemas ou subsistemas dependendo da ótica do observador.

9. Partindo dos conceitos preliminares até aqui descritos, o Prof. Diogo esboça suas  acepções da ordem pública como componentes de estudo das ciências sociais naqueles dois aspectos: DESCRITIVO e NORMATIVO:

9.1. ACEPÇÃO DESCRITIVA OU MATERIAL: situação de fato, modelo real, resultado de observação (SER). (“tranquilidade pública, segurança e salubridade” — Louis Roland).  E sublinha que a ordem pública pode restaurar-se naturalmente.

9.2. ACEPÇÃO NORMATIVA OU FORMAL: conjunto valores, princípios e normas que se pretende devam ser observados (IDEAL). Sistema abstrato de referência — “sobredireito” — leis de ordem pública (DEVER SER).

10. Desta maneira, da ACEPÇÃO MATERIAL DA ORDEM PÚBLICA, da qual o Prof. Diogo extrai seu lapidar CONCEITO OPERATIVO:

 “Ordem pública, objeto da segurança pública, é a situação de convivência pacífica e harmoniosa da população, fundada nos princípios éticos vigentes na sociedade”.

11. Diz ainda o Prof. Diogo que a ordem pública material é a projeção imperfeita da ordem pública formal, sendo ambas interagentes, assim como assegura que “os princípios éticos vigentes na sociedade” são de tal amplitude que abrangem “as leis, a moral e os costumes”.

12. Com já demonstrado, o Prof. Diogo assinalou a DESORDEM como inevitável ingrediente social, porquanto a ordem pública material não pode ser estereotipada em formalismo rígido, mas apenas controlada na sua imperfeição através de mecanismos garantidores da convivência pública, nos termos do conceito operativo da ordem pública, esta que é “objeto da segurança pública”. Daí emerge a segurança pública (sujeito) como garantia da ordem pública (objeto).

13. Ainda com o foco na Teoria de Sistemas, o Prof. Diogo associa magistralmente a segurança pública com a homeostase, significando o processo que garante a vida do sistema para que ele não se degenere, indo à destruição (entropia).

13.1. No organismo humano o processo homeostático se faz presente na doença (formação de anticorpos) para garantir o equilíbrio (saúde). Quando isso não acontece, o indivíduo entra em processo entrópico (destruidor) e morre.

13.2. Nos sistemas sociais é possível a criação de dispositivos corretivos para o reequilíbrio (homeostase), podendo compensar indefinidamente o processo de entropia (regeneração).

13.3. A homeostase de um sistema de convivência pública consiste na manutenção da ordem pública.

13.4. Dentro desta ótica de sistema, a segurança pública pode ser considerada como o conjunto de processos homeostáticos da ordem pública. Enfim, a segurança pública é a garantia da ordem pública. Neste ponto o Prof. Diogo fixa seu conceito de SEGURANÇA PÚBLICA:

“É o conjunto de processos políticos e jurídicos destinados a garantir a ordem pública na convivência de homens em sociedade”.

14. Deve-se observar a distinção doutrinária entre ORDEM PÚBLICA (situação), SEGURANÇA PÚBLICA (garantia) e DEFESA PÚBLICA (ato).

14.1. É fácil concluir que tanto a ORDEM PÚBLICA como a SEGURANÇA PÚBLICA situam-se no plano conceitual, enquanto a DEFESA PÚBLICA representa o dia a dia do funcionamento das estruturas de segurança pública, esta que é vista pelo Prof. Diogo no seu sentido amplo, ou, conforme ele recomenda: sem preconceitos semânticos ou ideológicos contra o vocábulo “segurança”, cujo significado universal no Direito Administrativo é o de “garantia contra antivalores e riscos à convivência pública”.

15. Depois destas explanações, o Prof. Diogo externa seu entendimento a respeito da estrutura de um sistema de segurança pública, assim delineado:

15.1. SUBSISTEMA POLICIAL — PODER EXECUTIVO

15.2. SUBSISTEMA JUDICIAL — PODER JUDICIÁRIO

15.3. SUBSISTEMA PENITENCIÁRIO — PODER EXECUTIVO E PODER JUDICIÁRIO

15.4. SUBSISTEMA MINISTÉRIO PÚBLICO — FISCALIZA E DÁ COERÊNCIA

Obs.: como são sistemas e subsistemas, deduz-se que há interação permanente entre eles, o que não implica subordinação formal, sendo certo que outros subsistemas podem ser integrados, inclusive um específico representado por Guardas Municipais, estas que também poderiam ser subsistemas do subsistema policial por ser afim (minha dedução).

16. Indo adiante, o Prof. Diogo enfoca a polícia administrativa, no caso representada pela Polícia Militar, para distingui-la da polícia judiciária, representada pela Polícia Civil. Desta maneira, partindo da classificação funcional tradicional da polícia (polícia administrativa e polícia judiciária), o Prof. Diogo assegura que a Polícia Administrativa preenche os requisitos do Ato Administrativo:

16.1 - COMPETÊNCIA: ação direta, discricionária e imediata da segurança pública.

16.2 - FINALIDADE: manutenção da ordem pública.

16.3 - FORMA: mediante atos e procedimentos formais ou informais.

16.4 - MOTIVO: riscos à ordem pública.

16.5 - OBJETO: prevenção e repressão a ações e processos que perturbem a ordem pública.

17. Desta maneira, o Prof. Diogo conclui conceituando a POLÍCIA ADMINISTRATIVA DE SEGURANÇA PÚBLICA, in casu, a Polícia Militar ou semelhantes:

“É o ramo da polícia administrativa, inserido no sistema da segurança pública, que tem por atribuição a prática de atos de prevenção e de repressão destinados a evitar, reduzir ou eliminar, direta, imediata e discricionariamente, as perturbações à ordem pública”.

18. Esta é a definição clássica da polícia administrativa de segurança pública — ou polícia de manutenção da ordem pública — representada na estrutura do Poder Executivo Estadual pela Polícia Militar.

18.1. Isto conduz o raciocínio à “competência” da Polícia Militar para executar a “ação direta, discricionária e imediata da segurança pública”. Mas esta “competência” aludida pelo mestre é também, — mesmo que em âmbito restrito aos territórios dos respectivos Municípios, — a das Guardas Municipais, senão a existência delas não teria sentido.

18.2. E, como a ordem pública material (ser) é inevitável e não pode se enquadrar em formalismos prévios e condicionadores de comportamentos individuais e coletivos, a Polícia Militar atua de maneira executória, discricionária e coercitiva na manutenção da ordem pública, ou seja, age tendo como fundamento o Poder de Polícia. Mas, o que vem a ser Poder de Polícia?

18.3. Uma coisa é conceituar Poder de Polícia, outra é esmiuçá-lo, o que não faremos aqui, nosso escopo é o de apenas explicar superficialmente esta faculdade jurídica inerente ao Estado e inacessível ao particular, sendo temerário supor que se restrinja à atuação da polícia de manutenção da ordem pública, no caso a Polícia Militar, esta que apenas pratica Atos de Polícia fundados no Poder de Polícia, sem que, no entanto, impeça outros segmentos da Administração Pública de fazê-lo sob o mesmo manto estatal, como é o caso das Guardas Municipais. Eis então um conceito consagrado de PODER DE POLÍCIA, da lavra de Hely Lopes Meirelles:

“Poder de Polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em beneficio da coletividade ou do próprio Estado.”

18.4. Sobre os atributos do Ato de Polícia (fundados no Poder de Polícia), que são três (DISCRICIONARIEDADE, EXECUTORIEDADE e COERCIBILIDADE), trazemos à lide os ensinamentos do mesmo administrativista Helly Lopes Meirelles:

18.4.1. Sobre a DISCRICIONARIEDADE, o não menos emérito professor conceitua-a como “a livre escolha, pela Administração, da oportunidade e conveniência de exercer o Poder de Polícia, bem como de aplicar as sanções e empregar os meios conducentes a atingir o fim colimado, que é a proteção de algum interesse público.”

18.4.2.  Sobre a EXECUTORIEDADE (ou AUTOEXECUTORIEDADE), o Professor Mário Fernando Carvalho Ribeiro (Vide Google: Do poder de polícia no direito brasileiro. Breves apontamentos), reporta-se ao mestre Hely Lopes Meirelles, que a caracteriza como “atributo do Poder de Polícia Administrativa". Depois acrescenta “que o STF já decidiu que no exercício regular da autotutela administrativa pode a Administração executar diretamente os atos emanados de seu Poder de Polícia sem utilizar-se da via cominatória. A ação cominatória prevista Código de Processo Civil é simples faculdade para o acertamento prévio dos atos resistidos pelo particular, se assim o desejar a Administração.”

18.4.3. Por fim a COERCIBILIDADE. Novamente trazendo à lide Mário Fernando Carvalho Ribeiro, ele registra que este atributo do Ato de Polícia, na visão de Hely Lopes Meirelles, “é a imposição coativa das medidas adotadas pela administração; constitui também atributo do Poder de Polícia. Todo ato de polícia é imperativo (obrigatório para seu destinatário), admitindo até o emprego da força pública para seu cumprimento, quando resistido pelo administrado, ainda que não se legalize a violência desnecessária ou desproporcional à resistência, que em tal caso pode caracterizar o excesso de poder e o abuso de autoridade.”

18.4.4. Se bem atentarmos para os atributos do Ato de Polícia fundado no Poder de Polícia, e apelarmos para a Psicologia Social e seus conceitos sobre "atitudes" (não observáveis) e “comportamentos” (observáveis), poderíamos aqui asseverar que a discricionariedade e a executoriedade se situam no campo das “atitudes”, ou seja, o agente público considera-os subjetivamente por estarem nele introjetados, mas não são visíveis aos destinatários, sendo certo que somente a coercibilidade representa o “comportamento” visível e endereçado ao administrado em grau de força (monopólio do Estado) equivalente à intervenção desejada pelo agente público e necessária no sentido de garantir a paz e a harmonia na convivência social.

19. O Poder de Polícia tem bases conceituais antigas e é consagrado entre os estudiosos de diversos países como uma necessidade que tem o Estado de suprir lacunas que decorram da impossibilidade de se tipificar, na sua totalidade, as restrições individuais (crimes e contravenções) em prol da convivência harmoniosa e pacífica de uma coletividade.

19.1. Sim, porque o Poder de Polícia é vinculado muito mais à dinâmica multivariada da convivência social, cujo controle não pode ser adstrito a normas precedentes.

19.2. São as surpresas do cotidiano que implicam a necessidade de imediatamente contê-las, com o fim de se evitar danos coletivos.

19.3. Quando um policial, por exemplo, interrompe o tráfego numa via pública, mesmo com o semáforo indicando livre circulação, ele está agindo com fundamento no Poder de Polícia. É lógico que o policial não pode adotar tal comportamento que não vise ao interesse coletivo.

19.4. Em outras palavras, ao restringir direitos individuais, com base no Poder de Polícia, o agente público tem em mente que não pode ultrapassar os limites impostos pela constituição e pelas leis, sob pena de ele, agente público, ser enquadrado no crime de abuso de autoridade, podendo, portanto, ser punido pelo Poder Judiciário.

20. O estudo do Poder de Polícia é primordial ao agente público em geral, e ao agente policial em particular.

20.1. É importante generalizar o conceito para que não se pense que o Poder de Polícia se refere exclusivamente à ação policial.

20.2. Longe disso, trata-se de uma faculdade do Estado visto como um todo e cujo poder é uno e indivisível, porém exercido através de seus segmentos organizados nos três níveis da Administração – federal, estadual e municipal – e por seus poderes constituídos: Executivo, Legislativo e Judiciário, estes que funcionam independentes e harmônicos em vista dos objetivos fixados pelo povo brasileiro na sua Carta Magna.

21. Depreende-se do exposto que o Poder de Polícia não é exclusividade das Polícias Militares, mas tem abrangência muito mais ampla no âmbito do Estado nos seus patamares políticos (União, Distrito Federal, Estados Federados e Municípios).

22. Também releva esclarecer que quando ocorre alguma repressão de polícia judiciária incidindo sobre pessoas em virtude de tipo penal (crime tipificado), esta repressão não é de polícia administrativa e o poder de agir, no caso, não se escuda no Poder de Polícia, embora a polícia judiciária possa também agir em algumas situações menos usuais com base no Poder de Polícia, em especial quando cuida de permissões e proibições, hoje mais afetas às Polícias Militares e aos Corpos de Bombeiros Militares.

23. Importa, por conseguinte, jorrar luz no fato de que “polícia administrativa” e “polícia judiciária” não são instituições, mas atividades (funções). Significa dizer que as atividades (funções) legalmente endereçadas a esta ou aquela organização estatal são as que determinam seus fins sociais, sendo certo que enquanto as “polícias administrativas” se encarregam da preservação da ordem pública bem mais por meio da faculdade estatal do Poder de Polícia, as “polícias judiciárias” agem diante de flagrantes delitos decorrentes de investigação ou após o cometimento de crimes adrede tipificados, também os investigando e singularizando criminosos por meio de provas em inquéritos, para finalmente levá-los às barras dos tribunais.

24. Eis então a grande questão nacional: inexiste o ciclo completo de polícia nos Estados Federados. As Polícias Militares atuam como “polícias administrativas de segurança pública” (ou “polícias de manutenção da ordem pública”) e as Polícias Civis, como “polícias judiciárias”. Daí é que as Polícias Militares se obrigam, – em caso de intervenção como “polícia administrativa” em flagrantes delitos de crimes tipificados (repressão de “polícia administrativa”), – a conduzir suas ocorrências às sedes das “polícias judiciárias” (Delegacias Policiais Civis), estas que, por sua vez, prepararão os inquéritos e os flagrantes e os encaminharão ao Poder Judiciário, do qual elas são auxiliares diretas e a ele se reportam no dia a dia, sendo ambas as polícias (administrativa e judiciária) fiscalizadas pelo Ministério Público.

25. Embora tudo seja sistema, mesmo assim é natural que ocorram fricções nessas interações entre instituições independentes e nem sempre harmônicas. Porque não é muito fácil separar a polícia administrativa e a polícia judiciária, que, juntas, compõem o que se denomina “ciclo completo de polícia”, aspiração de ambas e foco central de não raros conflitos.

25.1. Eis uma síntese extraída do trabalho de Mário Fernando Carvalho Ribeiro:

25.1.1. “O que efetivamente aparta Polícia Administrativa de Polícia Judiciária é que a primeira se predispõe unicamente a impedir ou paralisar atividades anti-sociais enquanto a segunda se preordena à responsabilização dos violadores da ordem jurídica.”



25.1.2.  “A importância da distinção entre Polícia Administrativa e Polícia Judiciária está em que a segunda rege-se na conformidade da legislação processual penal e a primeira, pelas normas administrativas.”



25.1.3. “O erudito Hely Lopes Meirelles (1996, p. 124) distingue a Polícia Administrativa da Polícia Judiciária e da Polícia de Manutenção da Ordem Pública. A primeira é a que incide sobre bens, direitos e atividades, ao passo que as outras atuam sobre as pessoas, individualmente ou indiscriminadamente. A Polícia Administrativa é inerente e se difunde por toda a Administração Pública, enquanto as demais são privativas de determinados órgãos (Polícias Civis) ou corporações (Policias Militares).”



25.1.4. “A professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2004, p. 112) citando Álvaro Lazzarini (RJTJ-SP, v. 98:20-25), afirma residir a diferença na ocorrência ou não de ilícito penal. Com efeito, quando atua na área do ilícito puramente administrativo (preventiva ou repressivamente), a Polícia é Administrativa. Quando o ilícito penal é praticado, é a Polícia Judiciária que age.”

25.1.5. Percebe-se que Hely Lopes Meirelles distingue a polícia administrativa da polícia de manutenção da ordem pública, talvez para explicar a função das Polícias Militares em contraposição às Polícias Civis (objeto deste específico estudo dele, publicado num livro de Direito Administrativo da Ordem Pública editado pela Forense sob os auspícios da PMERJ). Muito interessante, porque o que ele afirma, situando lado a lado três polícias, corrobora nossa pretensão no sentido de que o Poder de Polícia permeia toda a Administração para depois ser situado nas partes (Polícias Militares Guardas Municipais, Corpos de Bombeiros Militares etc.).

25.1.6. Ocorre que o mestre, quando afirmou que a polícia de manutenção da ordem pública é “privativa” das Polícias Militares, ele o fez em cotejo com as Polícias Civis (era a ideia central do livro, que contou ainda com abalizados pareceres de Álvaro Lazzarini, Sérgio de Andrea Ferreira, José Cretella Júnior, Caio Tácito, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, dentre outros) e não com outras instituições de manutenção da ordem pública, com destaque para as Guardas Municipais, citadas inclusive nos dispositivos federais que regulam a atuação das Polícias Militares (Decretos-Leis 667 e 88.777).

26. Toda esta explanação, ainda pouca e superficial, é para situar as Guardas Municipais, inegáveis órgãos de segurança pública cujas missões atualmente se definiram como mais amplas, sendo certo, porém, que mesmo antes elas já autuavam com fundamento no Poder de Polícia, ou seja, como polícia administrativa de manutenção da ordem pública" ou como "polícia administrativa de segurança pública”, claro que exercitando suas funções nas circunscrições municipais, portanto territorialmente mais restritas que as das Polícias Militares (circunscrições estaduais).

27. Portanto, o fato de as Guardas Municipais terem ampliado suas funções em nada muda o contexto da segurança, que é antes de tudo função-síntese do Estado Brasileiro, este que se faz representar na manutenção da ordem pública por meio de muitos subsistemas: federais (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Sistema Carcerário Federal etc.), estaduais (Polícias Militares, Polícias Civis, Sistema Carcerário Estadual, DETRAN etc.) e municipais (Guardas Municipais, Secretaria Municipal de Segurança Pública ou de Ordem Pública, Postura etc.).

28. Enfim, uma gama de organismos que cumprem funções de segurança pública como garantia de uma ordem pública tão ampla que ainda abrange as Forças Armadas, estas que cuidam da lei e da ordem em situações de desordem que os Estados Federados não conseguem controlar com seus meios. De tão ampla, aliás, a ORDEM está ao lado do PROGRESSO no Pavilhão Nacional. Daí ser garantia desta ordem genérica aquela segurança que é função-síntese do Estado Brasileiro, assim repiso para concluir que nenhum órgão público aqui referido tem luz própria nem esgota em si nenhum monopólio do Poder de Polícia, foco central desta explanação. Pois o monopólio do uso da força pertence ao Estado. Seus agentes públicos apenas são encarregados de usar esta força na medida certa e acolhida por lei, sob pena de, ultrapassando-a, incidir em crime tipificado como abuso de poder, dentre outros.

29. Ainda sobre as Guardas Municipais, eis o que consta no Art. 45 do Decreto-Lei nº 88.777 (R-200) – Regulamento para as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares:

“Art . 45 - A competência das Polícias Militares estabelecida no artigo 3º, alíneas a, b e c do Decreto-lei nº 667, de 02 de julho de 1969, na redação modificada pelo Decreto-lei nº 2.010, de 12 de janeiro de 1983, e na forma deste Regulamento, é intransferível, não podendo ser delegada ou objeto de acordo ou convênio.



§ 1º - No interesse da Segurança Interna e a manutenção da ordem pública, as Polícias Militares zelarão e providenciarão no sentido de que guardas ou vigilantes municipais, guardas ou serviços de segurança particulares e outras organizações similares, exceto aqueles definidos na Lei nº 7.102, de 20 de junho de 1983 (transporte de valores), e em sua regulamentação, executem seus serviços atendidas as prescrições deste artigo.



§ 2º - Se assim convier à Administração das Unidades Federativas e dos respectivos Municípios, as Polícias Militares poderão colaborar no preparo dos integrantes das organizações de que trata o parágrafo anterior e coordenar as atividades do policiamento ostensivo com as atividades daquelas organizações.

30. Como se vê, já era imperativa às Polícias Militares a convivência harmoniosa com as coirmãs Guardas Municipais, cabendo às primeiras apenas reconhecer como atividade essencial de manutenção da ordem pública o labor das Guardas Municipais e semelhantes (Guarda Noturna, Vigilantes Municipais etc.). Portanto é dever das Polícias Militares prestigiar ainda mais as Guardas Municipais em vista do seu Estatuto Nacional recentemente aprovado em lei federal (Lei 13.022/2014), não se justificando qualquer discussão a negar, ainda mais judicialmente, a competência dessas estruturas de segurança pública municipais. O que as Polícias Militares devem é colaborar com as Guardas Municipais, pois estas igualmente existem para servir ao povo.

Por enquanto, é o que basta!

2 comentários:

Anônimo disse...

uma rica explanação na qual as sombras de ser ou não inconstitucional a atuação de polícia das guardas municipais logo se esvaem ;
sou agente de segurança socioeducativo, agente público responsável pelo encarceramento de menores infratores, minha categoria profissional, ainda numa situação mais retrógrada se comparada ao significativo avanço conquistado pelos guardas municipais, é alvo de linchamento social constante por parte das ONG's de direitos humanos e de quem mais deveriam atuar em prol das vítimas ou mesmo os familiares dos vitimados pelos delinquentes infratores juvenis : a Defensoria pública e o Ministério público.
E muito é útil a tergiversação aqui sobre o poder de polícia pois em diversas unidades federadas é situação comum o encarceramento de menores infratores sob cuidados de ONG's ou então Fundações geridas pelo ente privado ao passo que o poder de polícia é atributo típico de Estado inacessível ao particular.
recentemente descobri a existência desse veículo informativo e confesso toda manhã sempre o acesso em busca de saciar a satisfação do raciocínio por luz, sempre mais luz.

Anônimo disse...

Emir disse;

Prezado companheiro, na verdade a sua função de agente público é abraçada pelo Poder de Polícia, fundamento exclusivo do Estado e intransferível ao particular. Entretanto, na prática vislumbramos o particular cerceando até o direito de ir e vir de cidadãos em situações várias, algumas compreensíveis, como nas obras em vias públicas nas quais os empregados das empreiteiras controlam o tráfego para dar prosseguimento aos trabalhos de restauração das pistas de rolamento. Para evitar isto, o Estado (União, Estados-membros e Municípios) teria de dispor de agentes públicos para cumprir tal tarefa, já que ao particular não é dado o direito de cercear liberdades a pretexto de nada. Mas isto seria admitir um realismo maior que o rei. Por outro lado, a aceitação passiva de situações em que o particular se enfia em tarefas exclusivamente estatais culmina por criar situações aberrantes. Sei de muitas. Portanto, o ideal é primeiramente conhecer a doutrina de ação para questionar tal procedimento comum, porém ilegal. Daí o esforço que fiz, cujo objetivo é exatamente este: despertar os agentes públicos em geral para a ideia de que o Poder de Polícia não é exclusivo da polícia, como muitos pensam.
Obrigado pela útil intervenção.