domingo, 5 de maio de 2013

A MISÉRIA DO LIXÃO


Urubus voejam sobre a carne putrefata de cadáveres deixados à revelia do tempo e do espaço terrestres. São frutos de mais uma guerra, desde antes, e agora, e assim o serão depois... Mas há ainda o cheiro do sangue de alguns mortos recentes misturados ao miasma da carne putrefata de outros corpos, todos nus e anônimos.

Do alto, os urubus fazem um sinistro zigue-zague antes de arremeterem ao solo em busca do seu quinhão de animal trapeiro de carnes mortas. E em torno da terrível cena aérea e terrestre reina o silêncio ensurdecedor, e o calor libera a fumaça quente do lixo que serve de cama aos mortos e vivos. Mesmo assim, em ambiente hostil, cães magros e pestilentos, atores constantes do lixão tais iguais aos urubus, não dispensam seu pedaço de carne humana, não lhes importando se apodrecida. E vão à carne em voluptuosidade... Mas os urubus descem zangados e bicam os cães, que, porém, os enfrentam de igual pra igual até a debandada da matilha urbana com o rabo entre as pernas; não sem antes acrescentar aos cadáveres humanos algumas carcaças de urubus distraídos, logo consumidas pelos demais com os quais voavam em solidariedade aparente. É lei de vida e morte que termina em carcaças humanas e animais a alimentarem os vermes ao fim e ao cabo de tudo.

O espaço é um medonho lixão a céu aberto do planeta malcuidado. O dia é qualquer um, qualquer dia serve ao propósito da cena que se desenrola em muitos cantos do planeta. É cena de miséria acrescida de fome extrema e da morte banal de seres humanos e animais. É a miséria dos barracos de papelão, e de tábuas podres, e de zincos enferrujados: a casa dos rotos e esfarrapados à vista da indiferente abastança. É o que chamam “civilização”, é o que denominam “progresso”, é o tal “bem-estar social” alardeado em caradura pelos ladrões de casaca. E dos ladrões de casaca vêm nascendo em gerações sucessivas os doutores que vivem em abraços e beijos com burocratas (serviçais de luxo) garantidores da ordem social e pública. Vestem ternos, fardas, togas, tailleurs e sobrepelizes indicando poder e riqueza. Este é o mundo planetário, assim é o Brasil, e o RJ, e seu Grande Rio apinhado de lixões e favelas. E nas favelas estão os ferozes traficantes e demais criminosos, aos montões, armados como os melhores exércitos. São eles que jogam os corpos no lixão e deixam cair na conta da polícia, embora esta acrescente alguns cadáveres aos dos bandidos, garantindo-se assim o círculo vicioso.

No lixão, que tem de tudo, desde cocô a jornais lidos, os catadores se encurvam em busca de preciosidades inexistentes e de comida estragada. Tudo lhes serve de alento, a cachaça ruim lhes garante a anestesia da boca e do bucho. E há as crianças... É toda a família catando, catando, catando, até que depara com os corpos podres e lhes desdenha a presença, não lhes interessa carne humana. Se sobrasse algum urubu, aí sim, seria comida disputada como se fora frango a lhes saciar a fome. Esta cena brutal muitas vezes foi capturada por fotógrafos e cineastas premiados, mas que não voltaram para agradecer aos atores da miséria real que assola os grandes centros urbanos pátrios, mas como se não existisse, como se fosse holograma visto das janelas de ônibus e carros que passam às vezes no meio da pavorosa realidade que os motoristas e passageiros olham, mas não veem.

Que imagem!... Como não se pode ver tanta miséria exposta? Ó respeitável público, que espetáculo de horror é esse? Será sonho?... Estarão os transeuntes tão anestesiados pelo cansaço de mais um dia de labor mal remunerado que nada conseguem ver? Estariam tão esgotados que perderam a capacidade de captar imagens do mundo em torno de si? Ah, é assim que o mudo gira?... Sim, é assim, e é por causa dessa aberrante indiferença que a miséria alastra mundo afora, e mais ainda no Brasil, e muito mais no RJ, e no seu Grande Rio, que é minúsculo em matéria de igualdade social e maiúsculo em se tratando de crimes banais. Por outro lado...

... Por outro lado, existe o glamour dos cínicos defensores dos direitos humanos, porque o são desde que lucrativos. Quanto ao glamour, a sensacional mídia lhes basta, eis que se lhes vende a preços exorbitantes sem que o dinheiro falte nessas algibeiras tão antigas quanto Dom João VI... Sim, são as mesmas, todas pertencentes à casa-grande, que historicamente se sustenta dos miseráveis e lhes devolve como paga nada mais que lixo, doença e morte. Mais que fortuna, porém, os senhores da casa-grande possuem o poder de mandar ao lixo quaisquer assanhados que ponham a cabeça de fora da fossa destinada aos sem-nome-de-família. Porque tudo é casta colonial, imperial e republicana, ou gentes estrangeiras de sobrenomes complexos, e o resto é resto de Zé Povinho a se contentar com os detritos despejados pelos senhores mandatários do poder e detentores da fortuna acumulada. E se não há regime que mude esta cultura tupiniquim enraizada até o centro da Terra, então, que fique tudo como está, até que todos igualitariamente se tornem alimento de vermes!...

2 comentários:

Paulo Xavier - Ex PM disse...

Até que todos igualitariamente se tornem alimento de vermes!...
Assim termina esse belo e reflexivo texto; mas a história não termina aí. Os causadores da miséria, da fome, da indigência humana, com certeza ainda terão muito o que acertar após a passagem desta para a outra vida.
A cobrança será justa e na medida proporcional aos danos que causaram, cada centavo desviado de um irmão haverá acerto de contas.
Creio na Justiça Divina e que Deus a fará sem interferência de poderosos ou pedidos de amigos ou de pessoas influente$. Tenho pena dessa gente!

caldeira disse...

Texto, aliás como sempre em sendo da lavra do Comandante Emir Laranjeira, de uma síntese e profundidade impressionantes. Realidade existente em TODAS as cidades do Brasil. Mais ainda em metrópoles!
Corroborando o colega Paulo Xavier, acima, acredito que os que abusam das dádivas divinas oferecidas nessa vida carnal, não exercendo bem a autoridade ou o uso de bens, deixarão de evoluir como a poderiam...como Policial Militar, resta-me somente me resignar nesse entendimento....Obrigado Cel Emir Laranjeira, por nos brindar com textos tão atuais e inteligentes...