sexta-feira, 6 de abril de 2012

Sobre a qualidade do tiro policial



Eu fui, durante anos, instrutor de armamento e tiro na antiga PMRJ. Enquanto na ativa mantive-me treinado e ensinando sistematicamente a muitos PMs. E posso afirmar ter sido ótimo atirador. Hoje, encaminhando-me para os 70 anos, sinto-me ainda capaz de acertar um ônibus parado a dez metros de distância, embora, e por amor à verdade, eu admita poder errar o alvo... Mangações à parte, muitas vezes me espantei em estandes de tiro ao constatar companheiros meus (“operacionais”), oficiais e praças, atirando contra o alvo com os dois olhos fechados ou proporcionando deploráveis espetáculos de quase acertarem os próprios pés ou os céus, de tão ruins que eram na prática do tiro. Nem devo dizer do tiro com o corpo e/ou o alvo em movimento, situações predominantes nos confrontos reais...
O resultado dessa instrução desastrosa, – aliado à falta de treinamento mínimo de proteção do corpo em escaramuças contra bandos armados e protegidos pelo conhecimento do terreno e pela intimidade com cada coberta ou abrigo preexistente, – o resultado dessa instrução desastrosa costuma desembocar no cemitério: ou se enterra um companheiro atingido por bala de bandido, ou se enterra um inocente atingido por bala que não se lhe destinava, não importando qual arma a disparou. Esta é a primeira senão única especulação da mídia, como se o atingido fosse apenas um alvo errado e não um ser humano vitimado pela desordem urbana cujas causas são bem mais profundas que a simples ação policial.
Não creio tanto no imprevisto nem no azar. Creio na ausência ou na insuficiência do treinamento. Faz pouco tempo li um artigo exaltando o BOPE por seu insignificante número de baixas (ferimentos e mortes), tudo atribuído ao excelente treinamento daquela tropa de elite. Claro que isto se encaixa na minha especulação, que, decerto, será vista como falácia. Pode, sim, especialmente em vista do interesse dos gestores em garantir ser o treinamento de tiro fator corriqueiro na formação e no aperfeiçoamento de todo o efetivo. O planejamento do curso até faz supor que o treinamento é pra lá de eficiente e eficaz. Na prática, porém... Bem, basta ao espectador atento olhar as imagens televisivas para perceber que os homens não se protegem em cobertas ou abrigos, ressalvadas as exceções, especialmente a dos homens e mulheres do BOPE, que sabem progredir no terreno e dele tiram proveito, demais atirarem com a precisão requerida.
A morte do cabo PM na Rocinha pode ter sido azar... Por outro lado, sabemos que o Batalhão de Choque recebe treinamento diferenciado e, curiosamente, o uso de munição letal não é recomendável a uma tropa de contenção de manifestações públicas geralmente envolvendo trabalhadores em protesto, grupos ideológicos, torcidas clubistas organizadas (ou desorganizadas) etc. São manifestações que não justificam o tiro letal, a não ser em situações extremas e raras de grave perturbação da ordem pública encetada por manifestantes armados. Enfim, o Batalhão de Choque não recebe treinamento como o BOPE para agir em favelas, assim como a tropa comum não é treinada a contento; e muito menos reciclada de quando em quando, nem de longe em longe, de modo a garantir qualidade dos atiradores em situações de risco. No fim de contas, a rotina os impede de “perder tempo” em estandes de tiro e a economia exige parcimônia no gasto da munição, que é cara.
Sim, a munição no Brasil é poupada por uma polícia sem dinheiro, enquanto em países do Primeiro Mundo o gasto de munição em treinamento é despesa irrisória em vista da sua importância. Pior é que nos países que ainda disputam guerras étnicas ou religiosas os exércitos regulares e seus improvisados oponentes gastam bala à vontade e seguem matando indefesos homens, mulheres e crianças. Aqui no RJ, até onde eu pude constatar em estandes, lado a lado com oficiais e praças, a prática de tiro mais parece piada; aliás, literal, mesmo, pois assistir ao espetáculo de companheiros fecharem os dois olhos para atirar é deveras cômico... se não fosse trágico. Ah, é trágico!... Especialmente porque ninguém jamais assumirá ser mau atirador e nenhum gestor do andar de cima concordará comigo ser isto um problema...

2 comentários:

Monnerat disse...

Caríssimo Larangeira,
certo, certíssimo. Coisas óbvias, mas que nunca foram seguidas. É isso mesmo, acha-se até hoje que se perde tempo no estande, ou, ao inverso, que é uma distração muito cara, para não dizer uma brincadeira dispensável.Como daqui a pouco não teremos mais quartéis, pois o Cabral quer vender tudo e outro doido falava sobre verticalização dos aquartelamentos, não sabemos onde vai parar isso. Só uma dado para você. Os Carabinieri d'Italia com aqueles quartéis desde o início do séc XIX, a maioria verdadeiros palácios, resolveram construir um estande de tiro subterrâneo em cada um deles, pois estava sendo trabalhoso demais deslocar as equipes em treinamento para locais mais afastados. Ora, imagina a trabalheira e o custo que saiu dessa operação, pois cada metro que vc cava em Roma fica sujeito a encontrar outra Roma embaixo, o que representa parar tudo, chamar a quem deve ser chamado, etc. Mas,cito isto para mostrar a importância que eles dão ao tiro, o qual, aliás, considerei sempre como elemento estabilizador do emocional do PM, pois se ele sabe que se encontra treinado e preparado, é lógico que a visão dele dos riscos que corre é outra completamente diversa daquela de quem não atira nunca. Vc fala que chega a ser uma piada, mas é uma vergonha danada!

Paulo Xavier disse...

Cel Larangeira.
Parece que tudo continua como dantes no quartel de Abrantes, como a 40 anos atrás, no que se refere a treinamento da tropa dentro da PMERJ e aí perde a própria PM, perde o Estado, perde a população. A vida de um chefe de família, de um trabalhador, de um profissional, seja ele militar ou civil, não tem preço. Não só pela perda em si, como pelos desdobramentos sociais que ninguém coloca nos jornais; aliás já dizia Chico Buarque "A dor da gente não sai no jornal".
Alguém já falou em fatalidade, em azar, em treinamento inapropriado.
Confesso que gostaria de tomar conhecimento do veredicto do IPM que vai apurar a causa da morte do Cabo Rodrigo Cavalcante.
De quem será a culpa?