quarta-feira, 28 de março de 2012

Apenas sonho


Não sei por que meu espírito põe-me a sonhar em demasia. No limiar do meu tempo, insisto em sonhar na solidão da madrugada fria, no silêncio inviolável de mim mesmo, e a tinta da caneta escorre pelo papel gravando ideias soltas, que talvez nem me interessem a mim, quanto mais a outrem. Mas não consigo travar o ímpeto de escrever sobre qualquer coisa sonhada, é algo mui forte a me impingir silêncio, solidão e sonho. Tem sido assim desde anos; não consigo ser normal como a maioria que gasta o tempo em bares ou em frente da tevê. Não gosto do dia, da agitação que caracteriza as grandes cidades. Quem dera poder viver no campo, entre flores vicejando em cores e pássaros pipilando em alegria. Mas, não. A cidade e a necessidade de sobrevivência neste mundo agitado me impuseram uma vida dura. Mesmo assim, em meio a adversidades mínimas e máximas, entre dores e amores, tentei até então viver e alegrar-me com a vida. Segui os padrões: namorei, casei e fiz dois filhos. Assumi outro menino, de 11 anos, que perambulava na Praça Tiradentes, Rio de Janeiro, engraxando sapatos. Descasei; casei novamente; e fiz uma pequerrucha cuja mãe, como a outra dos meus filhos, não me passou também de sonho. Que dureza! Tudo bem, a vida pertence ao dono e um dia a pequenina terá de se valer das próprias pernas e viver até cumprir sua última cláusula no Grande Contrato da Vida.
Há certo pessimismo em mim, mas não me custa sonhar, tergiversar, versar, prosar, poetar, consumir-me no meu sonho. Não há mal nisso, não causo prejuízo a ninguém, é ato isolado do meu espírito desgarrado. E assim vou gastando tinta sem concluir nada, apenas gravo um sonho qualquer, inofensivo, talvez um pedaço de mim que se solta e perde-se num espaço tão infinito que me torna um nada, tal como meu sonho. Sim, não sou dono de nada, nada me garante que tenho, nem sei se sou e só sei que nada sei. Enfim, talvez eu não passe de um sonho de mim mesmo que aos poucos se esvai ante a inexorabilidade do tempo até chegar ao pó de onde vim.
Será que eu realmente existo? Mas, se existo, sou o quê?... Para alguns, é fácil concluir pelo caminho dos deuses e santos; para outros, basta o Deus único, Este, tão sonhado e jamais apalpado além da virtualidade de um sonho que um dia, após a morte do corpo, talvez se realize. Na verdade, Deus é sonho tornado realidade em vida, modo de justificá-la, de entendê-la como utilidade, embora não lhe caiba, à vida, nenhuma finalidade além de nascer envelhecer e morrer, seja seu dono (da vida) herói ou vilão.
Sim, por que nascemos? Pra quê?... Segundo a ciência, para a multiplicação pura e simples da espécie, como sói ocorrer com tudo que respira na Natureza que se impõe com suas regras eternas. Somos apenas corpos comandados por um DNA que nos impele à procriação tal como os demais seres vivos, dos quais mui pouco diferimos. Ah, somos inteligentes, racionais etc. E conseguimos sonhar, temos imaginação fértil, somos capazes de modificar a realidade, mesmo que esta seja irreal. Aliás, modificamos tudo, até o planeta, para suprir nossas loucuras, das quais a maior é a guerra, a destruição de nós mesmos em decisões sem sentido. Ou seria isto mero determinismo, idêntico ao dos animais que se alimentam até de seus filhotes em alguns casos? Ah, nem tanto, nós não nos alimentamos de nossa carne, salvo exceções canibais havidas ao longo da evolução; mas, na verdade, somos ainda piores: gostamos de destruir fisicamente os da nossa espécie. Somos animais “racionais” sem que possamos definir que “razão” é essa. Cá entre nós, sonhamos até em destruir aqueles que nos incomodam ou maltratam, e talvez não realizemos tais sonhos por medo da punição terrena ou pelo temor do inferno... Não houvesse freio, esses sonhos seriam desgraçadamente concretizados. Tendemos, com efeito, à maldade, embora nos finjamos bons. Contudo, há bons sonhos, ou ruins, e ambos são necessários para descontaminar o espírito.
Sim, ocupo-me da madrugada insone para refletir em torno do absurdo da vida, do livre-arbítrio etc. Gasto tinta, sujo o papel com letras, palavras e frases que talvez nada signifiquem. Sinto-me, porém, aliviado, e aos poucos o sono me começa a abater. Envolvo-me na manta e me recolho ao leito. Quando amanhecer, terei de conferir se escrevi algo ou se apenas sonhei... Estou em dúvida, não posso esclarecer nada, o sono não me deixa pensar. Espero que tenha escrito alguma coisa, ainda que inútil. Se não, pelos menos creio que sonhei.

5 comentários:

Luiz Monnerat disse...

'O beata solitudo, o sola beatitudo!'

'Oh, abençoada solidão,
Oh, única felicidade!'

Meu caro Larangeira,
o que para alguns é tormenta, para outros é felicidade! Acredito que você esteja se alimentando desse néctar reservado a poucos. Tua produção intelectual necessita dessa imersão na solitude, como também é com muita propriedade que 'reclama' dela. Como se dizia naquele jargão de mau gosto: 'faz parte!' Temos que lembrar que já chegamos no tempo de gozar o 'otium cum dignitate', o descanso honrado, destinado àqueles que cumpriram com louvor a tarefa de vida atribuída a cada um. É o teu caso. E que maravilha acordar no meio, na ponta ou no fim da madrugada e respirar livre como um passarinho, considerar qualquer coisa profundamente e, depois,como numa grande decisão, enfiar a cabeça embaixo da asa e ressonar de novo o tempo que quiser...!!! Que beleza, continue escrevendo.

Paulo Xavier disse...

Cel Larangeira.
Gosto muito de ler isso que o sr chama de papel sujo de tinta e que para o sr nada significa. Deixa eu tentar fazer uma analogia com um artista que muito admiro, Moacir Franco. Certa vez num programa de televisão, Moacir Franco confessou que havia uma música de sua autoria que ele detestava cantar, que era chata, repetitiva, muito bem...essa música era simplesmente a mais pedida nos shows, supondo-se que era a que o público mais gostava, vai entender... e lendo esse seu texto, lembrei-me desse caso. Sempre acreditei que o gênio e o verdadeiro artista, aquele cuja arte está na alma e vem desde o ventre da sua mãe, tem como marca principal a humildade, a modéstia. E é isso que o sr demonstra nesse texto. Humildade e modéstia.
Continue a escrever, mestre, garanto-lhe que existem milhares de leitores anônimos se deliciando com seus belos textos.

paulo fontes disse...

O GUARDADOR DE REBANHOS(TRECHO)
FERNANDO PESSOA SOB O PSEUDÔNIMO DE ALBERTO CAIEIRO)

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
Pensar em Deus
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos! ...

Caro amigo, dedico esse pooema á tua angústia existencial.
Abcs
Paulo Fontes

Anônimo disse...

Obrigado velho amigo! Primeiro por ter me dado a opotunidade de vivenciar a veracidade de suas palavras. Segundo, por mostrar-me que escolhi um caminho certo ao buscar a Deus.
OBS: Perdi meu cel. com as agendas, se possível mande telef.

Emir Larangeira disse...

Por favor, amigo, envie-me um e-mail para eu lhe mandar meus telefones. (emirlarangeira@hotmail.com)
Abs.