domingo, 1 de janeiro de 2012

Sobre a política de segurança pública no Brasil


Fonte: Jornal O Globo de 30 de dezembro de 2011






O conceito de sistema, antes restrito ao saber de alguns especialistas, hoje predomina em todos os campos do conhecimento humano. O principal mentor desse pensamento, o biólogo alemão Ludwig Von Bertalanffy, assim critica o reducionismo: “Visão de que se tem do mundo dividida em diferentes áreas, como Física, Química, Biologia, Psicologia, Sociologia etc. (...) A natureza não está dividida em nenhuma dessas partes.” Com este foco inspirador, o mestre da Teoria Geral da Administração, Idalberto Chiavenato, afirma: “A Teoria Geral de Sistemas deve estudar os sistemas globalmente, envolvendo todas as interdependências de suas partes. A água é diferente do hidrogênio e do oxigênio que a constituem. O bosque é diferente das suas árvores.” 1
Enfim, tudo é sistema, tanto no mundo conceitual como no físico, não se podendo isolar uma parte senão na medida certa do seu estudo singular, porém sabendo de antemão que esta parte, por maior ou menor que seja, integra-se sistemicamente ao todo, dele recebendo e fornecendo insumos, de modo que um sistema pode ser indistintamente focalizado como super-sistema, polissistema, subsistema, e assim sucessivamente, dependendo das restrições ou ampliações que se lhes imponham para efeito de estudo e de produzir resultados práticos.
A digressão serve a uma avaliação crítica do modo como a mídia expõe um dado crucial à paz e à harmonia da convivência social, situações indispensáveis à ordem pública como polissistema nacional interagente, interdependente e inter-relacionado com o super-sistema de ordem pública transnacional. E, deste modo reducionista, destaca a “taxa de homicídios no Brasil entre 1980 e 2010” e suas oscilações por “100 mil habitantes”. Enfim, um critério nada inovador e de fácil conclusão em vista de pesquisas meticulosas de Manuel López-Rey publicadas num compêndio, sob os auspícios da ONU, com o título: “CRIME” 2. Vale sublinhar o autor logo na introdução:

O que o crime perdeu em originalidade ganhou em extensão e em gravidade. Muitas vezes isso é negado pelos que têm mais interesse em elogiar o ‘status quo’ do que em fazer uma análise objetiva da realidade. Sem procurar criar efeitos dramáticos temos que admitir o fato de que, a despeito do progresso material e científico, ou o que é assim considerado, o crime é um problema intratável na maioria dos países desenvolvidos e eventualmente o será nos outros países, sejam ou não desenvolvidos.

Não vou adentrar o livro senão pouco mais para ilustrar uma dura realidade mundialmente pesquisada, de 1946 a fins de 1965, e publicada no Brasil pela ARTENOVA, em março de 1973. Porque é certo que, de tão meticulosa e séria, a narrativa de López-Rey ainda hoje serve como referência a quem queira se aprofundar no estudo do fenômeno criminoso, acertando o primeiro passo na marcha pelos meandros intrincados do crime como fenômeno globalizado, ou seja: o todo maior que a soma das partes.
Logo abaixo do gráfico, há a entrevista do ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, que sugere a mesma parcialidade, embora esclareça que “a segurança pública exige uma avaliação global...” tornando ambíguo o seu conceito de “políticas globais” em comparação com a sua prática ministerial: “atenção especial a três pontos: monitoramento das fronteiras, combate ao crack e outras drogas, e modernização do sistema penitenciário.” O introito da matéria jornalística, de autoria do jornalista Jailton de Carvalho, questiona a postura ministerial, porém incorrendo em reducionismo ao pontuar o seu discurso em vista do destaque do homicídio a sobrepujar todos os outros delitos (antecedentes, intervenientes e causais) que para ele concorrem:

O governo suspendeu, por tempo indeterminado, a elaboração de um plano de articulação nacional para a redução de homicídios, um dos pilares da política de segurança pública anunciada pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, no início do ano. A decisão irritou integrantes do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), que acompanha a escalada da violência no país.” E acrescenta: “O Brasil é o país com o maior índice de homicídios do mundo em termos absolutos – quase 50 mil por ano, 137 por dia – e o sexto quando o número de assassinatos anuais é comparado ao tamanho da população.”

Os estarrecedores índices decerto não consideram as mortes por fome, doença e maus-tratos de pacientes nos corredores de hospitais; com certeza, também não incluem outros crimes dissimulados como “morte natural ou não especificada” ou o simples sumiço de gentes brasileiras que jamais existiram oficialmente no mundo, e dele partem enfiados em covas rasas, em águas fundas ou em “pneumáticos micro-ondas”... Estes não se inserem na volumosa lista de homicídios, o que me obriga a sublinhar outra assertiva de López-Rey gravada ainda na introdução:

Há um grande aumento no número de crimes cometidos sob a proteção de cargos oficiais e acobertados por ideologias políticas ou como uma sequela da ação revolucionária e da defasagem crescente entre as classes privilegiadas e as não privilegiadas tanto nos países desenvolvidos como nos em desenvolvimento. Isto quer dizer que aquilo que se chama convencionalmente de crime, e que é ainda o assunto principal da criminologia contemporânea, é apenas uma pequena parte do todo.

Enfim, a insistência em pontuar determinados crimes, mesmo os mais graves (crimes de morte), não ajuda muito na solução do problema da criminalidade, que é complexo, multifacetado e interligado; enfim, é o sistema situacional criminoso que necessita de contrapartida antissistemática estatal mais eficiente e eficaz. E não serão a violência e a criminalidade superadas ao se atacar a parte, como se infere da entrevista do ministro da Justiça, cabendo parcial razão ao Conasp ao se insurgir contra esse tipo de anúncio. Porque as ações anunciadas não produzirão efeitos positivos a não ser por sua espetaculosidade midiática. Em outras palavras, não mais cabe o discurso específico da “lei e ordem” (mais policiamento e repressão encetados por estruturas defasadas) no trato deste grande mal que assola a sociedade mundial e se reflete no Brasil pela ponta da linha do tráfico de drogas largamente produzidas em países vizinhos, sob o manto falso de uma soberania situada acima do mal que causa a outros povos.
Ora, tratar com seriedade o crime pressupõe a necessidade de diagnosticá-lo globalmente, como subsistemas e sistemas interligados a polissistemas nacionais e a super-sistemas mundiais. Esta visão globalística impõe o estudo concomitante de uma criminalidade geral e de todas as estruturas físicas e conceituais destinadas a contê-la: sistema carcerário, sistema judicial, sistema ministerial, sistema político, sistema policial, sistema militar, sistema legal, sistema doutrinário etc., todos formando um polissistema abrangendo estruturas municipais, estaduais e federais, acrescendo-se, em valor maior, a participação da sociedade (polissistema social). Porque, segundo a lógica arquitetural de Louis Sullivam (“o formato segue a função” 3), ou, em outras palavras, enquanto os objetivos nos níveis estratégico, tático e operacional (vinculados ao polissisistema situacional criminoso), não forem fixados, não há como reformatar nos mesmos moldes as estruturas governamentais e particulares para alcançar resultados ótimos.
Contudo, e como nem todas as desordens podem ou devem ser tipificadas como crime (campo da ordem pública material – o ser – e do Ato de Polícia fundamentado no Poder de Polícia), há de haver ênfase na eficiência estrutural, de modo a garantir indiretamente a ordem pública por meio do atalhamento da desordem posta num continuum mínimo e máximo). Já a ordem pública formal (o dever ser) deve ser posta na mesa como questão sociopolítica, ou seja, a sociedade, por meio dos seus representantes parlamentares, passa a sugerir novas leis e a reformulação de outras tantas, para assim estimular uma cultura nacional de consenso no controle da criminalidade. Porque, quando alguém atenta contra a vida de outrem, isto é sinal de que de ocorreram muitas variáveis antecedentes, intervenientes e causais não diagnosticadas nem tratadas com eficiência e eficácia. Eis por que o sistema carcerário culmina como solução do grave problema do crime, que, em sendo homicídio, serviu tão somente para engrossar a estatística em comento...
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1. Chiavenato, Idalberto – INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DA ADMINISTRAÇÃO – Elsevier – Rio de Janeiro – 2004, pág. 474.

2. López-Rey, Manuel – CRIME – Tradução Regina Brandão - Artenova – Rio de Janeiro, 1973, introdução.

3) Carter, Chris e outros – UM LIVRO BOM, PEQUENO E ACESSÍVEL SOBRE ESTRATÉGIA – Tradução Raul Rubenich - Bookman, Porte Alegre, 2010, pág. 111.

3 comentários:

Celso Luiz Drummond disse...

Tem um vídeo muito interessante sobre o assunto no youtube. Esta dividido em 05 partes.É de 2010, um pouco antes da política de UPPs avançar no Estado do RJ. Mas mesmo assim não deixa de ser interessante, pois ele contextualiza a questão da violência a nível nacional. Os convidados são um delegado da PF que era o então sec. de segurança publica do ES, Rodrigo Pimentel e a jornalista Fátima Souza autora do livro PCC a Facção.
http://www.youtube.com/watch?v=ddxvDD1XY5k

Dê uma olhada é bem interessante
Grande Abraço
Celso Luiz Drummond

Emir Larangeira disse...

Obrigado pela dica. Já comprei o livro para leitura imediata. Eu não o conhecia. Só li sobre o PCC o livro do jornalista Carlos Amorim sobre a união do CV com o PCC. Recomendo a leitura. É fácil localizar no Google.

Celso Luiz Drummond disse...

Fala Emir tudo bem?

Este que você citou estou finalizando a leitura dele, para iniciar o último da triologia do Carlos Amorim que se chama "Do Asssalto ao Poder." Sobre o PCC tem mais um que se chama Sindicato do Crime do Percival de Souza.

Grande Abraço
Celso Luiz Drummond