sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Sobre a irracionalidade do militarismo estadual

Uma eterna discussão





Cópias autenticadas dos regulamentos disciplinares do Exército Brasileiro (EB), inadequados ao exercício da atividade policial, os regulamentos disciplinares das PPMM brasileiras, via de regra, são bordunas de bugre a serem desferidas sem pejo no quengo dos recalcitrantes, não importando os motivos (justos ou injustos); porque esses dispositivos disciplinares são solenemente ignorados por superiores quando se trata de respeitar direitos fundamentais do cidadão fardado de PM que reside no subsolo da hierarquia militar: o subordinado. É assim para manter a tropa enquadrada nos princípios foucaultianos dos “corpos dóceis”, em que ao subordinado só cabe obedecer aos comandos milimétricos que tornam o homem mero autômato. Ocorre que esse homem é o policial de rua que lida com os cidadãos e seus conflitos, que enfrenta uma criminalidade violenta e escalas de serviço humilhantes, tendo como contrapartida péssimos salários e nenhuma chance de reclamar dos maus-tratos sem infringir as regras que adrede lhe são impostas.
Era assim antes de 1964, período em que as PPMM viviam aquarteladas como militares na essência e na existência. Ocultavam-se intramuros dos quartéis em comodidade de força auxiliar do EB, e pioraram ao exercitar uma existência policial em exposição direta de poucas virtudes e muitos defeitos perante o contribuinte, sendo maior deles o desconhecimento da profissão policial. Sim, a mudança drástica dos quartéis para as ruas não mereceu nenhum preparo conceitual e prático além da ordem contundente exercitar o policiamento ostensivo fardado e calcado num planejamento rígido que se continha num manual nacionalmente conhecido como “Amarelinho da IGPM”. Sobre o desconhecimento das filigranas da profissão policial, a bem da verdade havia um compêndio de Instrução Policial Básica Individual (IPBI), editado no tempo do onça pela PMDF, contendo orientações de superfície postas apenas para o caso das poucas intervenções nas ruas em grandes eventos populares em que as PPMM eram acionadas, claro que agindo a comando, como tropa, e conduzindo todas as ocorrências, das simples às complexas, aos balcões da Polícia Civil. Enfim, não havia a cultura que hoje se vê, fruto de dolorosas experiências acumuladas, do policial discriminativo se sobrepondo ao militar foucaultiano, sendo certo que o primeiro não se enquadra tão facilmente nos regulamentos disciplinares copiados do EB.
Para quem não sabe ou não lembra, a IGPM (“Inspetoria Geral das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares”) ainda existe. É órgão do Estado-Maior do EB criado pela Revolução de 1964 e destinado ao controle e à fiscalização das forças auxiliares (militares estaduais) nos quartéis e nas ruas, o que antes da abertura política se restringia ao exercício do militarismo e às cobranças de combate à “subversão” pelos setores de Inteligência (“comunidades de informação”). Hoje, a IGPM nem parece existir. As PPMM cuidam de si mesmas sem ideias próprias a nortearem as interações internas entre superiores e subordinados. E nas ruas não conseguem exercitar um padrão ideal de polícia por “vício do cachimbo”, tal como o cão que leva pontapé do seu dono e morde o transeunte para se vingar. Sim, porque, tratado em arrocho intramuros, o militar estadual chega às ruas sem o bom senso que deveria predominar num policial discriminativo, servidor público, cônscio de que deve ao cidadão, como regra, o devido respeito, ficando a coerção como exceção mui bem discernida e nos limites da lei. Sabemos que não é assim que ocorre em alguns Estados-membros e muito menos aqui, principalmente em favelas sem UPPs ( imensa maioria).
Na falta de doutrina disciplinar adequada, e entendendo o rigor excessivo contra o subordinado como necessidade imperiosa, as PPMM permanecem nos ambientes brasileiros como se fosse o exercício da atividade policial mais militar que civil, embora o predomínio da segunda condição (policial) seja igualmente imperativo. Na verdade, as PPMM vêm a mais e mais se tornando anfibológicas, eis que submetidas a variados humores de governantes e comandantes-gerais geralmente afinados com os primeiros, estes que efetivamente mandam nas corporações. A evolução do militarismo intramuros para o modelo policial extramuros implantado de forma abrupta, sem grandes planejamentos e ensinamentos policiais, tornou as PPMM nada mais que teratogenias organizacionais num primeiro momento, e ainda perdura esta cultura, já que a forma (estrutura e cultura militares) não se alterou para atender às novas funções (objetivos policiais).
Claro que nenhuma PM brasileira assume oficialmente suas aberrações, e todas as tentativas de mudança de baixo para cima como reação à opressão disciplinar são sufocadas pela borduna disciplinar no quengo dos exaltados, sendo a mais contundente pancada o processo de deserção, que é crime militar, o que impede qualquer possibilidade de manifestação reivindicatória e muito menos grevista. No militarismo, o estado de greve é motim e ponto final!... Ademais, as medidas disciplinares incluem o licenciamento a bem da disciplina, e seus fundamentos podem ser subjetivos, pois são invencíveis nas Varas de Fazenda Pública, que indefectivelmente dão razão ao sistema situacional militarizado, para desgraça do “ex-PM”, pejorativo que o marcará para o resto da vida.
Esta irracionalidade do militarismo nas PPMM acaba produzindo situações estranhas e extremas como a prisão de um comandante-geral, pelo Tribunal de Justiça de Alagoas, por rigor excessivo na punição de um major; ou no Maranhão, onde o governo vinha ameaçando os grevistas com a deserção, sem falar no problema dos bombeiros-militares no Rio de Janeiro, cuja mácula maior resumiu-se à invasão do Quartel Central do CBMERJ por tropa armada da PMERJ, absurdo jamais imaginado na história das centenárias instituições coirmãs, ora tornadas desafetas por mau humor do atual governante a lembrar Patrício, pai de Santo Agostinho (Os Santos Que Abalaram O Mundo – Renë Fülöp-Miller):

Seu caráter desigual, seu temperamento desenfreado, desqualificavam-no completamente para o papel de educador. Era complacente quando acontecia estar de bom humor, mas quando se achava nos transes de um de seus subitâneos acessos de cólera, repartia castigos sem razão ou discriminação.

Curioso é que nas reuniões anuais de comandantes-gerais, que já se tornaram tradição nacional, o assunto disciplina não figura como centro das preocupações. Seja quem for o comandante-geral, de qualquer PM, em qualquer época, ele sempre aparenta satisfação com o modelo disciplinar calcado naquele anacrônico regulamento do EB que se reporta ao período da Grande Guerra. Nem considera que o EB aprimorou seus instrumentos disciplinares e seu Estatuto, adequando-os aos tempos atuais. Nas PPMM permanece “tudo como dantes no quartel de Abrantes”, ressalvadas algumas exceções, que aqui ponho só como tese, pois lhes desconheço os detalhes. Mas decerto não são muitas as mudanças no tocante ao arrocho da tropa – claro que sempre para pior e predominando a ameaça da supracitada borduna do bugre batendo no cocuruto dos faltosos como se estes fossem homens-máquinas.
Nada muda nacionalmente, porém as reações dos militares estaduais estão se fazendo a mais e mais presentes e se legitimando no mundo jurídico-político. Eles enfrentam todos os dissabores e riscos e vão à luta por melhores condições de trabalho e de vida. Tanto que alguns movimentos nacionais nascidos na base da pirâmide, como a mobilização em prol da PEC 300, demonstram que a tendência de união nacional das PPMM é irreversível. E se se considerar que o efetivo de militares estaduais em atividade deve gravitar em torno de 500.000 almas, demais dos inativos que também se mobilizam, é melhor que o Governo Federal acorde para o fato de que não há mais como ignorar essa força política e a possibilidade cada vez maior da união de todos, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, em torno de causas comuns. E se alguém ainda duvida da interação imediata dessa tropa de militares estaduais, basta observar os últimos acontecimentos e atentar para a movimentação dos internautas militares estaduais em prol de causas comuns. Sim, a internet tornou-se a melhor de todas as armas dos militares estaduais para vencer as sombras que lhes são impostas em arrogância. Eis como tremeluzirão as luzes das conquistas, nem que sejam a fórceps. Sim, e, quem ainda duvida, que atente para os últimos exemplos de reações vencedoras país afora...

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