sábado, 5 de novembro de 2011

Sobre a declaração do editor-chefe do Jornal EXTRA, jornalista Octávio Guedes


Não faz muito tempo eu ouvi na CBN uma categórica declaração do ilustre jornalista Octávio Guedes sobre as milícias. Ele afirmou, em outras palavras, que “tráfico não é crime tão organizado como milícia”. Tento ainda compreender esta visão particular do insigne jornalista do Sistema Globo; considero-a importantíssima porque manifestada por um ícone do jornalismo em geral e especialista em segurança pública. Porém, aproveitando a primeira capa de O GLOBO de hoje, gostaria de propor um adendo ao discurso dele, discordante não em relação à proliferação de milícias no RJ, que ele denuncia como fato gravíssimo. Prendo-me ao fato de o jornalista pôr o tema sob o foco da simples comparação entre milícia e tráfico. Ao minimizar a capacidade de dano do segundo, ele de certo modo ignorou que ambos são danosos subsistemas de extremidade vinculados a um sistema criminoso maior, multinacional, que tem no mercado de drogas e armas seu ponto forte. Na realidade, são todos inter-relacionados, interatuantes, interdependentes, e, portanto, farinha do mesmo saco!
Claro que, para efeito de combate à criminalidade como polissistema, é lícito isolar determinados crimes para tentar minimizar seus males, do mesmo modo que a ciência isola um vírus para atacá-lo com o remédio mais eficaz. Não significa dizer que o crime ou a doença sejam eliminados da face da Terra em função do ataque... Pois uma coisa é singularizar um crime para priorizar seu combate, outra é crer que esse crime seja isolado e não mera face de um multifacetado sistema criminoso capaz de recriá-lo. Daí o meu espanto ante a enfática afirmação do jornalista, cuja voz é bastante ouvida. Creio até se tratar de momentânea indignação dele com o crescimento de milícias em favelas antes dominadas pelo tráfico, malefícios que, em tese, se equivalem. Pior ainda é que não se há de negar o domínio do asfalto por milicianos e traficantes (são apenas mais discretos), tanto na periferia como nos centros mais elegantes das cidades (contando com tácita ou explícita benevolência policial, decerto remunerada: nada é gratuito no submundo do crime).

Essa tendência do crime de ocupar territórios ignorados pela segurança estatal não é novidade. Ocorre aqui e em muitos países desenvolvidos pela impossibilidade da onipresença policial. Há também os subsistemas de vigilância particulares legalizados, hoje excelente negócio, mas confunde o que é exclusivamente público com o privado, estando o segundo a mais e mais legitimado no cerceamento do direito de ir e vir dos cidadãos sob pretexto aparentemente justo, mas que, na verdade, não passa de transferência do monopólio do uso da força, exclusivo do Estado, para o particular, corda bamba que costuma gerar crimes ao fim e ao cabo... Já no caso das milícias [(perigosa mistura de sistema (policiais ativos) e antissistema (ex-policiais)], não seria demais compará-las com as máfias dominadoras de territórios delimitados por fronteiras como se fossem “países governados pelo crime” ante a deliberada inércia estatal, deste modo convivendo o poder paralelo com o poder público, ora em conflito, ora em consenso, dependendo dos interesses maiores da política e da economia, que não amam a ética (aqui entendida como o conjunto das leis, da moral e dos costumes) e dispensam a honestidade, exceto nas aparências...

Milícia, portanto, não passa de versão terceiro-mundista de máfia: não exclui do seu interesse o rentável tráfico de drogas, ou praticado diretamente, depois de expulso o concorrente, ou a este permitido explorar mediante acordos percentuais, incluindo a proteção dos milicianos contra os ataques de traficantes rivais. Enfim, tudo tal e qual máfia exploradora de todas as variedades de crime dentro de um mesmo território. Poderíamos citar como exemplo, sem alongar, os sequestros praticados em regiões predeterminadas, em consenso de facções rivais, que, nestes casos, e em outros, se respeitam mutuamente num contexto de “guerra fria”. Enfim, ou tudo é disputado a sangue ou negociado em partes para assim garantir a “paz dos negócios” num ambiente criminoso que se entrelaça à tessitura social como quaisquer outros segmentos: contravencionais, criminosos e ordeiros. Pois não há como separar em piquetes cada rebanho com seus interesses concorrentes ou conflitantes, já que os segmentos sociais são interligados e nunca isolados em si mesmos.

Peço desculpas a Octávio Guedes, profissional que admiro e respeito pela excelência de sua carreira de jornalista investigativo, para afirmar que o tráfico de drogas e armas responde pela macrocriminalidade mais organizada do mundo, sendo a milícia apenas um de seus multivariados tentáculos da ponta da linha. Equipara-se o tráfico, talvez, à praga dos crimes financeiros igualmente vultosos e alastrados em tudo que é sistema governamental e particular neste mundo de economia globalizada. Esta massa delituosa é tão sinérgica (o todo maior que a soma das partes) que nem precisa fermento para fazê-la crescer e envolver tudo e todos por meio da gananciosa prática mais conhecida da História da Humanidade: a corrupção.




Por sinal, nem Jesus Cristo escapou da ganância! E não devemos pensar em corrupção apenas vinculada a dinheiro. Há muita imoralidade a impulsionar pequeníssimos e grandiosos pecados sociais, de tal modo que não seria exagero, numa linguagem pessimista, afirmar que o Bem triunfa do Mal ontem e hoje, e provavelmente triunfará amanhã. Porque, enquanto pessoas influentes, como é caso do ilustre jornalista, − de inquestionável competência e caráter inegavelmente ilibado, − insistirem na afirmação de que milícia é “crime mais organizado que o tráfico”, dentre outras afirmações semelhantes, tal comportamento tende a gerar benefício para o “lado perdedor” da comparação, que pode merecer do poder público perigosa desatenção. Contrariamente, portanto, ouso repetir que milícia não passa de desdobramento da macrocriminalidade (transnacional) de armas e drogas, cuja poderosa engrenagem garante o consumo na ponta da linha dos países tiranos e democráticos, desenvolvidos ou subdesenvolvidos... Tanto que neste instante pode estar estimulando algum viciado da própria empresa a que se integra o ilustre jornalista a furtar lápis, canetas, envelopes e quejandos para trocar por um papelote de cocaína na primeira esquina. Porque nenhuma vigilância, estatal ou particular, pode garantir que tal não ocorra entre as melhores empresas públicas e particulares e em meio às melhores famílias.

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