segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Sobre o Termo Circunstanciado: um tema inesgotável



“A falta de espírito adota todas as formas apenas para se esconder por trás delas: ela se disfarça num modo empolado ou bombástico de se expressar, no tom da superioridade e da fidalguia e em centenas de outras formas.” (Schopenhauer)


Cotejando a segurança pública de hoje com a CRFB e leis referentes, deduz-se facilmente que tudo está uma solene baderna institucional. Pois umas instituições se enfiam na competência de outras, atropelam o ordenamento jurídico da nação e a vista grossa impera como se o país vivenciasse a máxima anomia. Por outro lado, talvez a necessidade de adequação dos meios aos fins explique as distorções legais, e não o interesse das instituições em burlar as leis. Porque os tempos são outros, e a Assembleia Nacional Constituinte, no que se refere à segurança pública, apenas cristalizou as impropriedades estruturais e culturais anteriores. Daí a baderna que atualmente impera na manutenção da ordem pública, com as instituições policiais, incluindo-se entre elas as Guardas Municipais, atropelando-se entre si em conflitos intermináveis, sem falar na inusitada criação da Força Nacional de Segurança Pública à revelia da CRFB. Cá entre nós, nem mesmo leis e decretos federais receberam atualizações significativas; muita dessa legislação é anterior à vigência da Carta Magna e mantém intacta a desconfiança da União nos seus Estados Federados: permanece controlando as Polícias Militares sob o defasado pretexto de que são “forças auxiliares reserva do Exército”, hoje uma grande bobagem, o Exército Brasileiro, tanto quanto as Polícias Militares, dependem de superior decisão do Poder Político para atuar nos estados de exceção legal (defesa e sítio) cujas regras estão estabelecidas na Carta Magna.
Esse modelo anacrônico de segurança pública, equivocado desde o título constitucional (“Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”), antes se reporta à II Guerra Mundial, época em que a Defesa territorial e a Defesa Interna se impunham no contexto da Segurança Nacional. Tanto é que as leis estaduais referentes à PMERJ (Estatuto, Regulamento Disciplinar, Processos Administrativos Disciplinares, e outros dispositivos de controle da estrutura, do material bélico, do efetivo, da mobilização, da localização dos quartéis no terreno etc.) são cópias autenticadas do Exército do tempo do onça; mas as Forças Armadas se atualizaram, o que a PMERJ não fez: ela continua, por exemplo, com seu Estatuto idêntico àquele do verde-oliva datado de 1946: da primeira letra ao ponto final...
Ora, não se precisa ir longe para perceber que os tempos mudaram. Hoje existe a polícia de trânsito municipal, a polícia ambiental municipal, funções de policiamento ostensivo que ainda constam como “exclusivas” das Polícias Militares. Hoje as Guardas Municipais executam atividades repressivas inclusive consideradas complementares pela PMERJ, como a repressão ao comércio ambulante, com os Guardas Municipais paramentados como Polícia de Choque, tal como a PMERJ. Não critico o fato, apenas constato que ele decorre da realidade, e deve ser assim, embora contrariando a Carta Magna e atropelando as leis vigentes, que não se atualizam para adequar as funções das instituições de segurança pública aos novos tempos. Também há as blitze da chamada “Lei Seca”, ou da PCERJ, atividades exclusivas de Policiamento Ostensivo realizadas em rotina por outras instituições como se nenhuma regra constitucional ou legal existisse no Brasil. Insisto que não critico, apenas constato. Contudo, na hora em que a PMERJ tenta cumprir uma nova lei que se insere no âmbito de suas ações mais rotineiras de atendimento à população, aí o bicho pega!
Refiro-me à lei 9099/95, que manda registrar em Termo Circunstanciado os delitos de menor potencial ofensivo, sendo claro o seu escopo no Art. 2º: “O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.” Enfim, a lei simplesmente dispensa a intermediação do Inquérito Policial Civil e a interferência do delegado de polícia indiciando pessoas, cabendo-lhe tão-somente lavrar o TC (ato mecânico) para encaminhamento à Justiça. Significa, portanto, que qualquer agente policial investido do Poder de Polícia pode e deve lavrar Termo Circunstanciado, cabendo ao Ministério Público e à Justiça as decisões subsequentes.
Eis, portanto, a finalidade da Lei 9099/95, que, antes de se constituir num instrumento de poder policial, representa sua observância um dever de qualquer agente policial que lida com delitos simples e graves, sendo que, no caso dos primeiros, o critério foi o da otimização do atendimento à população, livrando-a dos entraves burocráticos representados pelo Inquérito Policial Civil. E assim tem sido Brasil afora, mas enfrentando reações veementes dos delegados de polícia estaduais, estes que se entendem como únicas autoridades policiais, e efetivamente o são, só que restritamente à atividade de polícia judiciária, que lhes incumbe em vista da Carta Magna, que, aliás, não fala em “exclusividade”. A razão da restrição é simples: a Polícia Militar, que detém, aí sim, a exclusividade do Policiamento Ostensivo Fardado, e, além de ser autoridade Policial administrativa, é também autoridade de polícia judiciária em vista da legislação penal e processual penal militar. Tudo, na verdade, é questão de oportunidade, e não de propriedade intelectual, pessoal ou funcional, sendo certo que, se a PMERJ não pode instaurar Inquérito Policial Civil, a PCERJ também não pode instaurar Inquérito Policial Militar.
Mas a birra está no mundo e promete desdobramentos judiciais que talvez sejam úteis, pois não há como duas polícias conviverem entre muitos tabefes e poucos beijos. Afinal, o povo espera de ambas o melhor serviço e não está disposto a ser platéia desse ringue que acolhe como desafetos aqueles que deveriam estar do mesmo lado, como irmãos siameses. O chato dessa história é a constatação do corporativismo dos que deveriam ser conciliadores isentos puxando a corda para o lado da PCERJ. Refiro-me à SSP e à CGU, que assim agem ignorando as inúmeras decisões judiciais, até mesmo do STF, indicando serem as Polícias Militares habilitadas a lavrar Termo Circunstanciado, para o bem da sociedade.
Se isto já é uma chatice, maior ainda é constatar que a PMERJ se obriga mais uma vez a tombar sem luta, como ocorreu com o Alferes José Francisco Brandão Galvão, atingido por esferas de ferro e pedra, deste modo obrigado a “curvar-se abraçado a si mesmo, sem nem poder pensar em sua morte.” (VIVA O POVO BRASILEIRO – João Ubaldo Ribeiro). Mas, no caso do Alferes, não houve covardia nem tempo de reação: houve a morte de surpresa, o que a PMERJ não pode alegar para reagir à altura de suas bicentenárias tradições. Nem lhe cabe ignorar o que acontece no Brasil ou aqui mesmo no RJ. Mas a velocidade com que ela ensarilhou as armas administrativas e jurídico-judiciais para se curvar em humilhação à politicagem local faz justiça ao seu primeiro lugar no ranking das polícias mais desmoralizadas do país. Lembra a ironia de Deonisio da Silva sobre a Retirada da Laguna, na Guerra do Paraguai, gravada no seu romance cujo título aqui é o que basta: “AVANTE SOLDADOS: PARA TRÁS”!

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