quinta-feira, 2 de junho de 2011

Sobre a “polícia cidadã” das UPPs

Talvez eu seja impertinente, mas não posso ignorar a realidade de um tema que se desdobra de mil modos, obrigando-me ao contra-argumento. No caso, trata-se de mais uma reportagem sobre as UPPs, – assinada pelos jornalistas Rogério Daflon e Elenice Botari no Jornal O Globo de hoje, 1º de junho de 2011, – iniciando-se com o seguinte teor:



Apesar de o ritmo dos investimentos privados não acompanhar, nem de longe, a velocidade com que as UPPs se espalham pela cidade – 500 PMs estão sendo formados por mês para atuar como polícia cidadã em regiões onde só havia tráfico ou milícia...”



Sem entender como a PMERJ pode preparar tão velozmente novos efetivos, “por mês”, como se fora fábrica de inanimados, intriga-me apenas o vocábulo “polícia cidadã”, sendo certo que os insignes jornalistas se referem à polícia que cuida especificamente das UPPs. Em que conceito, então, firma-se a expressão, no caso sem hífen, indicando o vocábulo “cidadã” como “qualidade”, ou seja, um adjetivo?... Ora bem, qualquer que seja o conceito, é de se concluir que a outra “polícia” (representada pelo efetivo majoritário da PMERJ), – distanciada do objetivo específico das UPPs, – sob a ótica reducionista dos ilustres jornalistas não é “cidadã”. É o quê, então? É “anticidadã”? Ou seria “não-cidadã”?
Claro que quando os jornalistas carimbam de próprio punho a “polícia cidadã”, referem-se à PMERJ, esta que é responsável única pelo efetivo das UPPs. E, neste ponto, assalta-me um espanto maior, pois uma “polícia” (organização) não pode funcionar sem pessoas, o que nos permite assegurar que uma “polícia cidadã” deva ser formada por “policiais cidadãos”, que não é o caso dos PMs, pois a eles são negados os mínimos direitos de cidadania destinados aos trabalhadores urbanos e rurais sob a descarada alegação de que os militares estaduais são “servidores especiais”. Como eu já reclamei em romance (O Espião – vide site www.emirlarangeira.com.br):

“(...) Neste ponto, cabe outra indagação: Que processo de mudança se opera nas atitudes do jovem que de repente resolve ser miliciano? Afinal, que valores lhe eram antes inerentes e qual a intensidade da ruptura psicológica que ocorre neste cidadão civil ao ser transmudado em miliciano? É óbvio que há uma mudança visível: a derrubada dos cabelos descontraídos e a adoção de um modelo de cabeça lateralmente rapada, a imitar os conscritos das Forças Armadas (em algumas milícias ainda é assim). Há ainda a troca abrupta da roupa normal por uma farda geralmente feia e malvista, espécie de marca registrada de exclusão social, já que o jovem, ao ingressar na milícia, e a par dos preconceitos que sofre até em meio a sua própria família, passa a ser considerado não mais um típico trabalhador brasileiro, cujos direitos estão claramente grafados na Carta Magna, e em outros diplomas legais que conformam o conceito jurídico-político-legal da cidadania plena, esta que é perdida quando o jovem se torna miliciano.
Sim, o miliciano se transforma num cidadão incompleto, limitado no gozo de seus direitos civis exatamente no momento em que é investido do poder de restringir e condicionar direitos e garantias individuais de cidadãos plenos. Enfim, dão-lhe a capacidade de agir com fundamento no Poder de Polícia, enquanto reduzem drasticamente sua própria cidadania. Esta tipificação do miliciano numa esdrúxula categoria especial de servidores até nos permite inserir aqui uma alegoria: surge o miliciano como um novilho marcado para se integrar à manada destinada ao corte, ao mesmo tempo em que lhe dotam de força e ferocidade, porém somente até o abate, ou seja, já nasce um futuro “boi de piranha”...
Com efeito, produz-se no jovem um violento choque cultural, que logo se internaliza e se vai somando a outros novos e rigorosos valores (ou desvalores) que lhe são impingidos em treinamentos massificados, tudo, enfim, contribuindo para pulverizar sua cultura original, boa ou ruim, não se sabe ao certo, mas que vai sendo substituída por uma contracultura de vivência em grupo, com ênfase num misto de docilidade do lado de dentro dos quartéis e de agressividade do lado de fora, o que até então não se integrava ao ideário natural daquele jovem que, por qualquer razão (especialmente por falta de oportunidade no mercado de trabalho), culmina ingressando numa corporação policial-militar. E depois ele vai às ruas proteger os cidadãos em comportamento tão simplório e estereotipado que poderia ser resumido no palavreado: “Correto!... Positivo!... Negativo!... Pronto!... Sim, senhor!... Não, senhor!...” Enfim, o miliciano é adrede condicionado como um militar foucautiano, para depois discernir como sujeito único da ação diante de diversificadas situações restritamente policiais. Como?...
Presumo que, diante desta absurda ambiguidade, os cidadãos queiram saber quem são esses indivíduos que se enfiam numa farda, em praticamente todos os recantos brasileiros, com o poder de lhes parar os carros, de lhes exigir a identificação, de lhes revistar os porta-malas etc. Afinal, quem são esses geralmente casmurros e muitas vezes grosseiros milicianos que lhes estão cerceando a liberdade individual em nome de um subjetivo interesse coletivo?...
Mas sabemos, sem dúvida, que são eles os mesmos que socorrem feridos em acidentes graves e lhes salvam as vidas, que aparam bebês dentro de viaturas e ainda se arriscam e morrem heroicamente em confronto com bandidos ferozes. E percebendo salários miseráveis... Em resumo, e em razão da omissão governamental, cada miliciano se torna um autêntico faz-tudo, pois em várias ocasiões, e em muitos lugares, ele é o único que existe a fazer alguma coisa em favor da população. Ou contra ela...”

Ilustro esta reflexão com meu pensamento gravado em livro porque não sei como a PMERJ, – sem mudar nadinha na sua cultura bicentenária vinculada aos seus deveres de força auxiliar reserva do Exército Brasileiro, – conseguirá formar algum “policial cidadão” para compor a tal “polícia cidadã” destinada às UPPs. Porque é certo que a PMERJ como um todo tem de respeitar indistintamente a cidadania dos brasileiros. E esta, dentre outros valores, inclui os direitos sociais dos trabalhadores urbanos e rurais que aos PMs são negados em absurda discriminação.
Ora, o PM não pode receber formação diferenciada para proteger o favelado como “cidadão”. No fim de contas, o favelado tem o direito de ser respeitado como qualquer brasileiro de terno e gravata nos parâmetros das mesmas leis nacionais. E, na medida em que se sugere que ele seja tratado como “cidadão”, admite-se que ele ainda não o é. E eu entendo que não o seja, e não apenas por culpa da polícia, mas da sociedade como um todo. Na verdade, ela é bipartida em societários e comunitários, preconceito que subsiste desde os tempos terríveis da aristocracia até os dias de hoje em que essa mesma aristocracia se identifica no famigerado livro dos “socialites” nacionais... Por conseguinte, pressionar a PMERJ por meio da criação de neologismos como iscas a serem engolidas em ingenuidade, não dá! Porque a tal “polícia cidadã”, salvo melhor explicação de seus mentores, não passa de insinuação discriminatória, dado o poder de influência da mídia.
Ora, ora!... Exigir que a PMERJ, como instituição formada por brasileiros, mesmo não abrigando cidadãos plenos em seus quadros, respeite a cidadania dos favelados nos termos das leis vigentes, vá. Mas fazê-la engolir a fedorenta isca por meio de malícia, isso não! Com todo respeito, que venham os jornalistas explicar melhor o sentido da tal “polícia cidadã”, esta que, para mim, e até este ponto, não passa de invencionice com uma pitada de desprezo pela tropa da PMERJ no seu todo.

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