domingo, 29 de maio de 2011

A Beltrame o que é de Beltrame...


O Jornal O Globo de hoje, 29 de maio de 2011, estampa um dos mais lúcidos depoimentos do Secretário de Segurança Pública, Dr. José Mariano Beltrame. A sinceridade dele decerto tirará o sono de muitas autoridades públicas que com ele interagem ou fingem interagir no seu dia a dia. Porém, mais do que a angústia por ele admitida há certa melancolia no seu pronunciamento, uma ponta de solidão externada como resposta aos aplausos cada vez mais distantes e que se vão desaparecendo em fade inevitável. Percebe-se, sim, uma espécie de adeus nas entrelinhas de sua entrevista e nela aflora uma crítica contundente, embora posta com suavidade. No fundo, ele admite que o sonho das UPPs possa terminar como um “balão japonês” cuja bucha é de queima efêmera e a beleza de suas cores logo some a meio caminho do céu sem luz.
Com visão prospectiva ímpar, o secretário expõe as vísceras de um sistema governamental momentaneamente vencedor do crime. Mais que isso, desveste a própria sociedade que desfruta dos benefícios das UPPs, mas se mantém tão distanciada quanto os segmentos governamentais e empresariais que se recusam a complementar a bem-sucedida ação da PMERJ, talvez (quem sabe?) por duplo preconceito: contra os favelados e contra a instituição policial-militar (com hífen porque é vocábulo composto por dois substantivos e que se dane o Aurelião, que se recusa a compor um verbete específico e apenas se refere a “policial militar” como desdobramento do vocábulo “policial”!).
Trata-se de entrevista divulgada em boa hora, porque a tendência das UPPs, infelizmente, é a de ser tragada pela dura realidade de uma economia implacável, que não vê no favelado um bom investimento. Não se sabe qual é o ganho real do favelado e que capital circula nos intestinos das favelas a ponto de os interessados em lucros (empresários) investirem lá algum capital. Outro ponto que se ressalta é o fato de as UPPs, empurradas ladeira acima pelo sucesso merecidamente estrondoso, acabaram se tornando “uma PM à parte”, uma estrutura isolada e ainda não integrada como autêntico subsistema ao sistema maior (PMERJ). Isto por decisão das próprias autoridades públicas, que as isolaram como “banda boa”, ficando o resto da corporação como “espécie em extinção”: a “banda podre”. Só que o resto é toda a PMERJ, subsistema do sistema de segurança pública, e sistema como locomotiva do policiamento preventivo-repressivo de polícia administrativa de manutenção da ordem pública. E, como sistema, não deve exaltar as UPPs em detrimento da imensa maioria de PMs destinados a outras modalidades de policiamento ostensivo. Mas é o que hoje ocorre, com os PMs assistindo de longe aos louros recolhidos por seus colegas. Entretanto, o grande contingente de desqualificados não trocaria de lugar com os “escolhidos a dedo” para o serviço qualificado nas UPPs. Por quê?...
A verdade é que nem mesmo as gratificações especiais fomentam o interesse generalizado do PM por um “lugar ao sol” nas UPPs. A uma porque o próprio critério seletivo das autoridades públicas o excluiu de pronto; a duas porque muitos outros interesses, justos ou injustos, o impulsionam no sentido contrário ao interesse específico de servir em UPP, a começar pela distância de casa (as UPPs estão situadas na zona nobre da cidade, portanto distantes da periferia onde reside a maioria da tropa da PMERJ). Outros motivos de recusa mútua poderiam ser elencados, mas se tornam desnecessários ante a dura realidade apontada pelo secretário Beltrame, hoje imerecidamente isolado no seu sucesso profissional e pessoal a ponto de vir a público externar sua angústia com sintoma de despedida ou talvez de ameaça velada para tentar salvar as UPPs.
Excluído o interesse governamental, este que, até então, e como afirma o secretário Beltrame na entrevista, se resume à LIGHT, à CEDAE e à CET-Rio, − destacando-se as duas primeiras empresas pelo interesse de se fazerem presentes apenas para lucrar com a eliminação dos “gatos” de luz e água, bens essenciais que decerto serão cobrados mesmo minimamente (também não é demais afirmar que em pouco tempo poderemos avistar “pardais” multadores em algumas favelas), − o que falta?... Ora, tudo! Como reclama o secretário, falta o que a mídia impôs como espécie de neologismo complementar: a “UPP Social”.
Discordando da posição contrária do secretário ao neologismo, creio ser ele oportuno porque marca a ausência dos investimentos empresariais e dos serviços públicos imprescindíveis à tão almejada inclusão social ainda restrita, como sempre, à presença física da PMERJ nas favelas. Claro que com uma brutal diferença, razão do sucesso operacional das UPPs: o predomínio da prevenção em vez da repressão desregrada, com o respeito à cidadania até então negada aos favelados, sendo de bom alvitre lembrar que são apenas 17 UPPs num universo de talvez mais de 1000 favelas no RJ. Isto amplia a responsabilidade governamental não somente de manter funcionando as UPPs já instaladas, mas também de ampliá-las às demais comunidades carentes situadas na capital e no interior. Tarefa difícil, senão impossível...
Apesar do tom pessimista do secretário Beltrame (longe de ser derrotista), há implícito um recado geral em suas palavras que precisa chegar à sociedade por meio dos leitores do importante Jornal. Porque, mais importante que acordar as autoridades públicas representadas nos três patamares (União, Estado-membro e Município) e os empresários, é vital despertar a sociedade do asfalto, mui numerosa e indiretamente atendida pelas UPPS em seus anseios por mais segurança. A queda dos índices de criminalidade no entorno das favelas beneficiadas por UPPS deveria impor aos “societários” uma mudança de atitude de tal monta que os impelisse à prática de um novo comportamento em relação aos seus vizinhos: os “comunitários”.
Não invento as terminologias postas em aspas para caracterizar o que o ilustre jornalista Zuenir Ventura mui bem designou como “Cidade Partida”. Há conceitos firmados na Ciência Política (Paulo Bonavides) e nas Ciências Sociais em geral sobre a natureza orgânica das comunidades e sobre a natureza formal das sociedades. E quando digo que é necessária uma mudança de atitude é porque a sociedade não costuma ser solidária entre seus membros. Incentivar ou cobrar, pois, a solidariedade da sociedade do asfalto indiretamente beneficiada pelas UPPs não será tarefa simples. Porque, se a sociedade não é solidária nem mesmo entre seus membros, pode ser utópica a possibilidade de ela ser solidária com os favelados de modo permanente e animador. Tal mudança funcionaria como espécie de “homeostase” do sistema UPP, evitando ou revertendo o processo entrópico (“entropia”) claramente admitido pelo secretário Beltrame como hipótese futura.
Eis, portanto, uma ótima hora de fazer com que a oportuna entrevista não vá ao lixo. Se houver uma mobilização societária através de suas representações já organizadas nos bairros beneficiados pelas UPPs, e uma real interação destas com as representações comunitárias igualmente estruturadas, − não para discursos, mas para traçar metas que permitam, finalmente, a inclusão social dos favelados por meio da participação direta dos societários, − as favelas não mais ficarão à mercê de um futuro incerto. Essa interação é possível e produzirá, − de ambas as partes, − um sentimento positivo permanentemente renovado, ou seja, “homeostático”, afastando em definitivo o espectro do insucesso das UPPs, desgraça que só beneficiará o banditismo.

Nenhum comentário: