quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Filosofia de botequim

Igualdade



Quando se trata de hipocrisia social, toda junção de caracteres é possível: lados contrários se unem, ideologias se pulverizam e ressurgem irmanadas. Estúpidos e cultos assentam-se nas cadeiras comuns rodeando a mesa única do barzinho como se se entendessem às maravilhas; enfim, nulidades e sumidades se igualam no rumo de seus interesses imediatos. Isonomia, diriam alguns, depois de alargarem as qualidades filosóficas do inculto artífice, com este enaltecendo os dizeres dos primeiros sem entender patavina de nada. É mais ou menos assim numa esquina democrática e na mesa entulhada de rodelas de papelão marcando as tulipas consumidas pelo servente e seu engenheiro, ambos igualados pelo chope e demonstrando conhecimento profundo da última convocação da seleção. Depois, igualitariamente embriagados, o servente sai bamboleando pelos quarteirões até chegar ao ponto do ônibus, que não vem, e se deixa quedar ali mesmo, por fim deitando-se na sarjeta do costume, dormindo o sono dos excluídos até o amanhecer de mais um dia destinado ao suor. O engenheiro, porém, há muito chegou ao lar, de táxi, e depois de vomitar seus excessos e deglutir os remédios da ressaca, deita-se ao lado da mulher boazuda fingindo-se adormecida e a lembrar o amante com quem curtiu o sexo durante a tarde num chique motel. Assim a vida continua e o sol empurra mais uma noite e faz chegar o dia, com cada qual, engenheiro e servente, se preparando para pousar no galho social de uma árvore de pouca copa e muitas raízes fincadas no chão agreste de intransponíveis diferenças sociais... Também assim o cirurgião faz a cirurgia num paciente que não precisava operar e o faxineiro do hospital esfrega seus corredores com produtos impróprios à esterilização, ou seja, cada qual no seu galho ou raiz cumprindo o destino por força do nascimento em berço de ouro ou nenhum berço. Mas ambos se sentem felizes, talvez até mais o faxineiro, que, sem pensar em desventuras, consegue fazer brilhar o chão, enquanto o cirurgião chora a derrota de suas mãos inábeis no labor de rasgar o corpo alheio, algo que faz apenas em agrado ao pai, rico fazendeiro, analfabeto, que lhe determinara ser médico a qualquer preço. Quem perde, afinal, é o paciente, que não precisava operar nada e gratuitamente sai do mundo sem saber se a morte é apenas um delicioso sono eterno: somatório de noites bem-dormidas esperando o prêmio do Paraíso. Ora, tanto faz como tanto fez, morto não dá palpite nem testemunho, e do seu cadáver restará somente o pó, eis a verdade substancial, pois todos os desiguais neste mundo de diferenças sociais se tornam isonômicos no sepulcro. E a morte é simples e direta, não importa a beleza do túmulo nem a riqueza do morto, seja sociólogo ou motorneiro, psicólogo ou louco, eleitor nordestino ou presidente eleito. Mas a vida é o ponto visível e tragicômico das gentes que se enganam ao representar papéis como se tudo fosse tão eterno que nem mesmo a morte é lembrada, parece que não existe. Enquanto isso, brilha o sol de um novo dia, a mulher se enfeita, e seu jovem marido, magistrado, quase ainda adolescente, se põe em grave reflexão sobre a condenação que escreveu na véspera para punir um criminoso sem saber se ele é mesmo criminoso, mas certo de que agradará ao clamor público porque anunciou a culpa do réu, e somente isto importa. Notícia é notícia, é a atração que fundamenta a notícia seguinte, em suíte, e ele, o juiz, não quer ser o ator-vilão-da-história. Que o seja o réu, mesmo inocente!... Sim, sim, a vida é assim, tem de ser e será sempre assim! Afinal, chovendo ou fazendo sol, condenando ou absolvendo o réu, a vida continua, é o que diriam todos em volta da mesma mesa em que antes discutiam o servente e o engenheiro sobre a escalação da seleção, enquanto empilhavam rodelas de tulipa de chope. E assim a vida vai, e vem, e vai, e vem, e vai, e vem, até que a morte alcance a todos, ricos ou pobres, e seus corpos, agora isonômicos, sejam baixados em caixões luxuosos às sepulturas de granito ou plantados em covas rasas depois de escorregarem pela abertura do vai-volta; enfim, corpos servindo de adubo às raízes da mesma árvore que cresceu no cemitério, árvore frondosa, arejada por ventos do prazer material de um tempo desgraçadamente finito, tanto para ricos que o desfrutam no prazer da mais-valia como para pobres que o veem escorrer junto com o suor de sua menos-valia. Eis a verdade de ontem, de hoje e de amanhã! Eis nosso mundo igualitário! Mas a noite é nossa, e na cama aquecida ou na calçada úmida o sol democraticamente jorra seus raios ao nascer de um novo dia. No fim de contas, o sol nasce para todos...

3 comentários:

Paulo Xavier disse...

Coincidentemente, hoje pela manhã recebi a notícia que um amigo de infância encontra-se gravemente enfermo de uma doença incurável.
Filho de pais pobres, formou-se em medicina e é um dos médicos mais conceituados de Macaé. Foi o vereador mais votado em uma eleição passada e já foi vice- prefeito, portanto um vencedor.
Ponho-me a refletir, porque pessoas que vem ao mundo somente para fazer o bem, ajudar o próximo, exemplos de luta e dedicação, de repente são vítimas da violência, ou da doença que chega silenciosa e tortura sua vítima até não haver mais resistência e levá-la para o túmulo.
Tudo é mistério e creio que um dia descubriremos toda a verdade.

Wanderby disse...

mas a sombra, somente para alguns...
Foi o que ouvi em 1989 como prelúdio do que se avizinhava em nosso primeiro dia de caserna.

NEIDE disse...

ME DETENHO A VERDADEIRA COLOCAÇÃO DE MINHA FALECIDA MÃE: DEUS SÓ QUER PARA SI, OS BONS DE CORAÇÃO, MAS ANTES COLOCA-OS NA TERRA PARA ALIVIAR O SOFRIMENTO DE OUTROS ACARRETANDO TUDO PARA SI E PARA TENTAR ENSINAR AO PRÓXIMO QUE TUDO É APRENDIZADO ENQUANTO VIVEMOS AQUI. QUE POSSAMOS CUMPRIR NOSSA MISSÃO E MOSTRAR A DEUS QUE A CONFIANÇA DELE EM NÓS NÃO FOI EM VÃO. AS VEZES LHE PERGUNTAVA POR QUE OS BONS ERAM SEMPRE PERSEGUIDOS E ELA NA SUA SINGELA SABEDORIA DE VIDA ME RESPONDIA QUE A LUZ OFUSCA O OLHAR DOS INVEJOSOS E POR ISSO ELES TENTAM A TODO CUSTO APAGAR A SUA LUZ. MEU AMIGO! NUNCA DESISTA DE NOS PRESENTIAR COM SUAS PALAVRAS TÃO BEM REDIGIDAS. PRECISAMOS DESSA LUZ. QUE DEUS O ILUMINE SEMPRE.