domingo, 1 de agosto de 2010

Elogio à minha mãe



Meu pai morreu precocemente. Fui criado por mãe viúva, enérgica, porém adorável em todos os sentidos. Cobrava-me responsabilidades além da minha idade, sim, mas me viciou em mordomias caseiras tornando-me um preguiçoso incorrigível. Talvez fosse remorso por mandar ao labor um menino de dez anos que gostaria, como todos da sua idade, de brincar na folga do colégio, o que não me era possível.
Trabalhei desde a tenra idade num laboratório de análises clínicas pertencente a um médico compadre do meu pai (padrinho do meu irmão). Lá, eu fazia de tudo um pouco: lavava lâminas e lamínulas e “tratava” dos sapos que serviam para teste de gravidez. O teste consistia em injetar a urina da provável gestante sob a pele do sapo e poucos dias depois, ou no dia seguinte, não me lembro, recolher a urina do sapo e levá-la ao microscópio. Quando apareciam uns bichinhos nadando, era gravidez certa, e é só o que sei, como também sei que muitos desconhecem esse teste já superado pela tecnologia. Creio que o teste levava os nomes de seus inventores: Galli-Manini e Zondeck, sem preocupação aqui com a grafia.
De uns tempos pra cá, depois de dois divórcios e já sessentão, não perdi a mania das mordomias maternas. Só que, vivendo como um eremita de cinco da tarde até a manhã do dia seguinte, tenho de dar meu jeito para sobreviver em se tratando de cozinha. Para início de conversa, sujo tudo que é prato, copo, talher, xícara etc., e acumulo a sujeira dentro da pia, na bancada dela, em cima da mesa e na tampa do fogão, espécie de vingança contra a empregada que invariavelmente se despede cinco da tarde e me deixa na mão. Acontece que, ao amanhecer, a primeira vítima de minha baderna sou eu mesmo...
Acordo cedo, com meu estômago clamando por um café reforçado. Olho a cafeteira e me animo: a luzinha está acesa, sinal de que há café da véspera esperando-me. Entorno o conteúdo da cafeteira numa caneca, e me frustro ante a dura realidade de que deixei a cafeteira ligada sem qualquer líquido dentro dela. Torço o nariz, lavo a cafeteira com bastante má vontade, pensando repor a água para um novo café. Já irritado, vou em frente: entorno a água dentro e fora da cafeteira, e molho o chão... Lembro-me então do filtro cheio de pó da véspera; retiro-o e jogo-o na famigerada lixeirinha sobre a bancada da pia, invariavelmente lotada. Claro que sobra parte da sujeira para a bancada...
Vou ao armário, demoro procurando a caixa de filtro de papel. Logo a encontro, na minha cara, rindo de mim. Retiro dois filtros agarrados um ao outro (jamais vem um só), separo-os (não me perguntem onde pus o que sobrou...) e finalmente ponho o novo filtro na cafeteira... Aí me começa o martírio: o pó em excesso entorna junto com a água quente, passa por fora do filtro e jorra a mistura de pó e água no interior da cafeteira, o que somente percebo depois do incidente. Sem saída, jogo tudo fora e reinicio, agora com maior cautela, a feitura do café. Diminuo a quantidade de água, ponho outro filtro, ajeito-o carinhosamente (irra!), diminuo a quantidade de pó. A cafeteira é ligada, agora devidamente limpa, e a luzinha acende (ufa!)...
Vencida a primeira turbulenta fase, e enquanto o café se faz sozinho depois de vencer o seu maior obstáculo (eu), vou à mesa, separo do pacote de pão light minhas duas fatias e lanço-as nos buracos da torradeira. Tudo sob controle... Aproveito o tempo e pego a lata de leite light (faço dieta). Quando corre tudo bem até este ponto, o que é raridade, pego da caneca branca; em contrário, utilizo a caneca preta, sinalizando que tudo vai mal e terminará mal, como sugere a maldita lei de Murphy... É meu recado para a empregada: caneca preta na pia exige-lhe cautela e paciência comigo o resto do dia...
Mas, voltando ao meu traumático café da manhã, coloco o leite em pó na caneca preta e vou à cafeteira. Pego-a e entorno o café no leite. Aí é a vez de o pão sinalizar que está torrado... demais... saiu como carvão da torradeira. Ah, que desgraça!... Tenho de começar tudo de novo: outras fatias, regulagem da torradeira (sempre me esqueço do detalhe do botão) e espera nervosa. Pouca espera e as fatias estão douradas, ótimas, faltando apenas passar a manteiga, o que rapidamente faço e... outra gafe: peguei a embalagem amarela contendo a manteiga alimentadora do meu colesterol ruim. Agora já era!... Quatro fatias jogadas fora, mais duas fatias na torradeira... Prontas, lambuzo-as com a manteiga light e tenho finalmente o meu “café completo”...
Ajeito-me na cadeira (na verdade um banquinho) e abro o jornal (começo o meu dia recolhendo o jornal no portão, vício que morrerei com ele). Pode até me faltar café, mas, jornal, nem pensar. A mesa, porém, é compatível com o tamanho da cozinha: pequena. Daí é que me começo a estressar ao tentar compatibilizar a minha fome de alimento com a de leitura das futricas diárias. Em simultaneidade: jornal e café... Luto, sim, para conciliar esses divergentes interesses, mas consigo, finalmente, depois de separar o primeiro caderno, jogando o restante do jornal no chão. Ah, que satisfação! Levanto a xícara e sorvo o primeiro gole do meu líquido precioso... Ih, esqueci o adoçante... Ó mãe!
Irado, procuro me controlar. Pego o adoçante, dou aquele espirro dentro da xícara e mexo com a faca da manteiga porque não me lembrei da colher em momento algum depois de tê-la utilizado para medir o leite em pó. Não sei onde foi parar. Daí, tomo outro gole, agora perfeito, embora o café com leite já esteja meio frio e enjoativo, não o suficiente para me tirar do sério. Deposito então a xícara na mesa (minhas grandes canecas não são providas de pires) e pego a primeira fatia de pão... completamente fria. Não mais me incomoda, já acostumei e desisti de concatenar todos esses movimentos. Contudo, não consigo tomar o segundo gole, o café com leite esfriou em definitivo. Meto então a xícara no forno de micro-ondas e marco trinta segundos. Nesta etapa sempre me saio bem, quando não marco erradamente três minutos...
E, enquanto a xícara roda, engulo a outra fatia de pão... geladinha. Pego então o café com leite, agora fervendo. Vejo as notícias marretando a briosa, fico danado da vida, tomo um gole do precioso líquido sem o devido cuidado e queimo a língua... Eis como cuido de mim pela manhã, até a empregada chegar sem se espantar com a costumeira bagunça e meus palavrões militarizados. Mas saibam: não sinto nenhuma saudade de ex-mulher nem lamento tanto a ausência da empregada. Em compensação, ah, eu aqui confesso, que falta me faz a minha mãe!

2 comentários:

Paulo Xavier disse...

Essa narrativa me fez voltar um pouco no tempo. Digo sempre que em 73 saí de Macaé sozinho com uma mala de roupas e regressei em 89 com uma mulher e um filho em um caminhão de mudanças. Voltei envergonhado com a marca da derrota no rosto.
Havia um programa numa rádio da minha cidade que eu gostava de ouvir, chama-se "Minha vida, minha história". O radialista lia uma carta de ouvinte por dia, depois tocava uma música a pedido do protagonista, era cada história de arrepiar, até que um dia tomei coragem e enviei uma carta contando a minha história.
Contei que quando fui aprovado para ingressar na PM, minha mãe me chamou e aconselhou. -Filho, porque você não termina seus estudos? Aquilo lá é muito perigoso. Respondi. -Mãe, eu preciso cuidar da minha vida, aqui em Macaé não tem emprego (naquele época era muito difícil)e parti sem medo de ser feliz. Mas a vida as vezes nos reserva surpresas, algumas agradáveis, outras nem tanto; umas que vem no colo do acaso, outras que nós mesmo provocamos.
Até que cheguei no ponto mais dramático da história. Na semana que retornei a Macaé (abril de 89)e este foi o motivo do meu retorno, estava em um bar (Niterói) tarde da noite bebendo todas, confesso que bebia bem naquela época, hoje bebo um vinho ou um licor, dentro da minha casa ou de amigos; quando passou um carro devagarzinho com 4 tipos estranhos, 3 desceram e vieram na minha direção e quando me virei já havia uma escopeta apontada para minha cabeça, eram bandidos de alta periculosidade. Nessa mesma fração de segundos, como que enviada por Deus, apareceu uma RP e foi um tiroteio dos diabos, os projeteis zuniam nos meus ouvidos. Logo apareceu uma guarnição de Patamo, que perseguiu e encurralou os bandidos que resistiram até tombarem sem vida. Não tinha como eu continuar em Niterói, fiz muitos inimigos exercendo a função de Policial Militar.
A música que pedi foi Lady Laura e confesso que não tive tempo de gritar por ela (minha mãe) na hora daquele desespero, mas sempre me lembro que fui aconselhado e coração de mãe não se engana.
Minha mãe está com 77 anos, a vejo quase todos os dias, hoje mesmo a levei à igreja e não esqueço de pedir. -Mãe ora por mim, mesmo sabendo que ela sempre faz isso.
Hoje Graças a Deus refiz minha vida, tenho um bom emprego, uma esposa dedicada e um filho muito legal (está terminando Engenharia de Produção) é também funcionário da Petrobras.
Cel Larangeira, desculpe se abusei no comentário, quanto à publicação, fica a seu critério.
Qualquer dia desses vou me consultar com um analista e procurar saber porque ajo dessa forma. O senhor deve saber porque
Um afetuoso abraço. Paulo Xavier

Anônimo disse...

Engraçado! Dias atrás conversava com minha cunhada, que aliás, após minha separação, foi quem sempre tomou conta do meu filho(seu afilhado e sobrinho), para que eu pudesse voltar a trabalhar. Na época, ele com 8 anos e hoje com 18.Não pude lhe fazer nenhum mimo nem lhe dar grandes mordomias.Bem, ela me falava que ele é muito auto-suficiente, que resolve tudo sozinho, não pede ajuda e nem incomoda ninguem. Chamei-a para a realidade de que ele se adaptou ao que tinha, ou seja, já não tinha o pai e por consequencia não perdera a mãe mas a dividia sempre com o trabalho que além de uma escala no hospital fui obrigada a adicionar mais um extra, diminuindo assim o nosso tempo juntos. Logo depois, em 4 anos perdeu a avó, o tio PM(como já relatei antes)e depois o avô. Graças a Deus, sempre foi muito inteligente e nunca deixou que a minha separação e os outros acontecimentos o afetasse. Hoje, no 1º ano de Biofisica no Fundão, me orgulho muito dele. Ao me deparar com o seu texto, percebi que talvez esses mimos e essas mordomias de mãe possa ter feito muita falta a ele porque quando as vezes ficamos em casa juntos ele nunca me pede que lhe faça nada, apesar de me oferecer talvez até na intenção de retroceder no tempo. Confesso também que nunca tive essas mordomias e que quando ouvia alguem comentar que mamãe fazia isso ou aquilo eu me perguntava porque comigo era diferente. Sem arrependimentos nem revoltas, no fim, são essas pequenas coisas guardadas em nossa memória, que nos fazem crescer e lutar por dias melhores. Gostei de ver a sua honestidade em dizer que sente falta desses mimos e mordomias como se ainda fosse um menino dependente e tão carente da presença: MÃE, que aliás, são poucos os que podem dizer que realmente sentem essa falta. Foi ótimo voltar no tempo.
Obrigado!
Parabéns!