sábado, 3 de julho de 2010

Sobre a UPP da Cidade de Deus

A realidade do poder do tráfico na Cidade de Deus apontada pela jornalista Vera Araújo e outros colegas dela no Jornal O Globo apenas confirma o que aqui venho especulando faz tempo. Evidenciando que não sou profeta nem bruxo, guardo razoável experiência em virtude de reflexão atenta sobre as diabruras do tráfico que muito combati no passado. Em vão... Sei, - depois de tanta mesmice, incluindo-se nela o modelo de conquista e ocupação do território dominado pelo “inimigo” (no caso representado por traficantes armados o suficiente para desenvolver e manter uma guerrilha urbana cuja ideologia é o lucro), - sei que o fôlego estatal é curto para superar o dos bandidos.
A explicação é simples: o tráfico gera mais dinheiro que os impostos altíssimos que pagamos para fins diversos. No caso do Poder Paralelo, todo o dinheiro acumulado é destinado à reposição cada vez maior da droga, à compra de armas e ao pagamento dos membros da quadrilha numa escala hierárquica tipicamente capitalista, ou seja, muito para poucos e pouco para muitos. Essa concentração de receitas e gastos permite ao traficante destinar polpudas somas à propina que desmoraliza os salários pagos pelo Poder Público ao policial e se torna irresistível. E as vozes falaciosas se levantam a contestar dizendo que a honestidade a toda prova deve ser a marca registrada do policial, mesmo que ele tenha nascido e crescido na base de uma sociedade corrupta e consumidora de drogas, exatamente a que acolhe seus críticos de plantão na política e na mídia. Na verdade, nesse amplo comércio de drogas nem os índios isolados na Amazônia escapam dos cantos cocainados que lhes chegam aos ouvidos...
Admitir um problema mundial de macrocriminalidade plenamente resolvido em algum ponto do planeta com meia dúzia de recrutas da PM cujas famílias estão expostas às vinganças dos traficantes que eles vigiam, ou fingem vigiar a medo de represálias, é afrontar qualquer inteligência mediana. Admitir a possibilidade de separar somente santos numa sociedade endemoninhada, e ao “modo PM”, é de morrer de rir. Porque é desta sociedade poluída que a PM tenta extrair seus “diamantes brutos” para “lapidar” no CEFAP, fingindo não saber que a maioria, tal como a sociedade massificada, não passa de “carvão” a ser queimado no primeiro fogareiro, sendo logo substituído por outros “carvões” que nem a chance de serem queimados têm. Porque é certo que o sistema oficial e o tráfico não absorvem mais que pequenas partes das montanhas de carvão sempre disponíveis, ficando o restante a formar novos monturos no país da imobilidade social. Não fosse a economia invisível (a pirataria, a venda informal de suados artesanatos, a contravenção e suas formas igualmente exploradas pelo Poder Público etc.), o país ingressaria numa entropia irreversível. Se já não está descontroladamente patinando nela...
Ora, é absurdo exigir honestidade ao miserável no país dos políticos que enricam apenas com salários oficiais, sem jamais exercerem outras atividades lucrativas, e ninguém os contesta (talvez os que têm o poder de contestá-los façam o mesmo). É utópico exigir tal honestidade na base da pirâmide social. Chega a ser hilariante... Portanto, e em vista de argumentos semelhantes que poderiam ocupar muitos parágrafos, querer cobrar honestidade e coragem de um recruta para enfrentar de cara limpa o Poder Paralelo do tráfico ou da contravenção é inadmissível. É engodo puro!
Claro que o discurso oficial será o de sempre: "apuração rigorosa dos desvios de conduta” e tome carvão no fogareiro para atender à gula dos críticos que o querem aceso para tostar o filé mignon que lhes pertence desde os idos coloniais! E assim sempre o será, em processo infinito, nesta sociedade apodrecida, mas a fingir santidade enquanto peca de todos os modos. E, mais uma vez, irritado pela falta de argumento a tratar do mesmo assunto, apelo para o meu amigo, o renomado poeta Salgado Maranhão, e para o poema que ele gentilmente me dedicou, retrato de uma realidade invencível (sic):




"FARDA

p/ Emir Larangeira


Melhor se se chamasse fardo,
em vez de farda, – esse travel
cheque para o sacrifício –
a defender o indefensável.


Melhor se se chamasse alvo:
mural da ira acusadora
contra os próprios personagens
que lhe julgam protetora.

São, normalmente, pretos, pardos,
Pobres, sobras de etnias:
gente fabricada em série,
que ao perder, tira se outra via.

E prossegue o ritual
desse espetáculo de horrores,
de Caim matando Abel
numa guerra sem vencedores.

E prossegue essa torrente
do sangue que não socorre,
o drama de ser ver morrer,
do lado de onde sempre morre."


SALGADO MARANHÃO


4 comentários:

Paulo Ricardo Paúl disse...

Caro amigo, você sempre equilibrado nas avaliações. Postei no blog.
Juntos Somos Fortes!

Wanderby disse...

Mais um texto magistral TC.
Talvez se as cabeças/carvões fossem cortadas/queimados obedecendo, digamos, à hierarquia inversa e tendo atenção a instâncias de corrupção/ação/omissão/desvio mais diversificadas, a verdade fosse sempre (ou quase) privilegiada.

Celso Luiz Drummond disse...

Emir Laranjeira você é o cara. Você merecia ocupar o posto de Secretario de Segurança do estado do Rio de Janeiro. Você sabe tudo sobre segurança pública. Cada texto seu que leio eu aprendo um pouco mais sobre o assunto.
Aliás seus textos são verdadeiros ensinamentos para nós leitores.

Celso Luiz Drummond disse...

Emir recebeu o email que lhe envei hoje