segunda-feira, 27 de junho de 2016

VIOLÊNCIA URBANA II - O CRIME ORGANIZADO DO TRÁFICO




            1 – LINHAS GERAIS

Os estudos a respeito do crime têm conduzido à ideia de que não se pode mais analisá-lo como fenômeno isolado, salvo em raras situações. Porque hoje o poderio econômico e a consequente sofisticação do crime respondem por sua impressionante expansão, ficando a sociedade perplexa e inerte diante deste gravíssimo fenômeno da vida coletiva.
Com efeito, não se pode mais falar em crime fortuito em virtude de sua pouca incidência se comparada com o crime organizado e conexo, este, que ocupa de tal maneira a tessitura social que o primeiro perdeu importância estatística. Também a criminologia tradicional não tem mais espaço para defender teses que associam criminosos a seus traços físicos e mentais (vide: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cesare_Lombroso).
Na verdade, o consenso prevalente é o de que o crime é fenômeno sociopolítico. Assim, em termos sociais, a visão do crime está condicionada a uma realidade que não se contesta: ele é fenômeno inerente ao ser humano, tal como o amor e o ódio. A explicação sociopolítica do crime, portanto, diz respeito à sua rotulação pela sociedade, o que faz variar sua importância geopolítica.
Manuel Lopez-Rey, jurista espanhol e pesquisador da ONU (vide Google), defende a tese sociopolítica do crime destronando muitas referências causais da criminologia tradicional. Depois de pesquisar o fenômeno em diversos países, sua conclusão é a de que o crime permeia todas as sociedades e tende a agravar-se no futuro. E é o que se observa até mesmo nos países mais avançados, de onde chegam notícias claras dando conta do poderio do crime, especificamente do organizado em moldes empresariais.
Rendendo-me a Lopez-Rey no sentido de que a macrocriminalidade já se constitui num segmento que não pode ser subestimado no contexto da ambiência social, daí não se poder concebê-la como problema simples, na medida em que a característica de qualquer estrutura organizada é a complexidade. Acresce ainda a esta natural complexidade o fato de o crime mascarar-se no submundo e somente vir à tona através de artifícios aparentemente legais, como, por exemplo, a lavagem de dinheiro.
Falar de macrocriminalidade implica também sua imediata associação ao narcotráfico, cujas características empresariais lhe dão a atual dimensão de organização multinacional.
Numa relação de causa e efeito, o que primeiro sobreleva é a matéria-prima: a coca, a papoula, a maconha etc., vegetais que dependem de plantio e colheita. Nesse aspecto, a sociedade mundial não tem conseguido muito sucesso no controle. Diversos países, por motivos políticos e/ou econômicos, demonstram interesse em recolher os benefícios desse plantio criminoso, eis que protegidos pela soberania e incitados pelo lucro astronômico.
Eliminada a possibilidade de se combater o crime organizado do narcotráfico pela simples erradicação de sua verdadeira causa, resta aos estados e suas sociedades, afetados em maior intensidade, apenas lutar contra os efeitos. E neste ponto surgem complicadores variados e complexos...
A primeira providência que sempre se busca em razão da impossibilidade de se combater a verdadeira causa é observá-la como variável antecedente ao problema; em seguida, parte-se para outras generalizações causais, tais como: crise econômica, injustiça social etc., que dão o toque de subjetividade que faltava ao complexo problema. Assim, uma situação que já é universal infiltra-se em cada país pesando na sua compreensão a cultura e a ideologia de seus povos. Desta maneira, o problema distancia-se de sua base real, fixa-se no campo subjetivo do proselitismo e se amplia...
Alguns estudiosos afirmam que a questão da criminalidade passa pelo modelo econômico de determinado país, influenciando no seu controle o tipo de sociedade: se o estado é intervencionista e a sociedade, clientelista, a solução fica restrita às providências do primeiro. Neste caso, a macrocriminalidade sempre sai ganhando. Se a sociedade é participativa, verifica-se uma aversão maior ao crime e seu controle é mais eficiente. Mas não se pode assegurar eficácia, pois os resultados estão a demonstrar que esses países não conseguem cortar os tentáculos da macrocriminalidade, cujo poder de regeneração assusta até os mais poderosos.
Restringindo-se a reflexão ao aparelho repressor do estado –  e ao seu sistema de Justiça Criminal –, ressalta-se imediatamente sua ineficiência estrutural. Em primeiro lugar, é difícil imaginar nos países de Terceiro Mundo, entre os quais se inclui o Brasil, a perfeita noção de sistema. O que existe são órgãos isolados e ineficientes em todos os níveis da Administração – nacional, regional e local –, quase sempre voltados para sua própria sobrevivência. E vamos aqui nos ater apenas à questão estrutural, pois, se considerarmos outros componentes como a corrupção, o despreparo profissional e a tecnologia rudimentar, a situação complica-se sobremaneira. Portanto, nesses países – nitidamente clientelistas no tocante à sociedade e hipertrofiados em relação à maquina burocrática – a proliferação do crime organizado ocorre em progressão geométrica, isto sem falar no aumento acelerado da população, que, segundo Lopez-Rey, é fator matemático de ampliação do número de crimes e de criminosos, numa relação óbvia.
Essas considerações são suficientes para a constatação de uma realidade insofismável: a sociedade contemporânea é universal, tanto como a macrocriminalidade. Em consequência, não haverá eficácia no seu controle porque o conceito universal de segurança somente se evidencia nas questões econômicas e de soberania dos povos.
Outra inquestionável realidade diz respeito aos crimes conexos. Falar em sequestros, assaltos, roubos de carro, assassinatos etc. como crimes isolados é o mesmo que admitir um câncer em apenas uma célula. Ora, tudo tem relação entre si, tudo é sistema, tudo tem conexão com seu principal motivador: o tráfico de drogas. Este, sim, é o verdadeiro mal a ser destacado por alguém que se arrisque a comentar sobre o crime organizado.

2 – SITUAÇÃO BRASILEIRA

O Brasil enquadra-se perfeitamente no modelo socioeconômico de país de Terceiro Mundo. Por conseguinte, apresenta um quadro de extrema gravidade em relação à macrocriminalidade. Destaca-se, além da ponderável dimensão territorial, o fato de ser fronteiriço com países plantadores dos vegetais alucinógenos. Do mesmo modo, é possível admitir que o Brasil seja também plantador do vegetal que irá produzir a matéria-prima, porque a interação entre esses povos e o nosso ocorre nas regiões mais isoladas e inacessíveis do território nacional.
Em se tratando de narcotráfico, já está mais que comprovado que o Brasil é, além de grande consumidor, rota internacional do tráfico de drogas, em razão da ineficiência do seu aparelho repressor. São pistas de pouso clandestinas em fazendas no interior de diversos estados, são portos e aeroportos mal fiscalizados e corrompidos, que tanto servem como facilitadores do tráfico de drogas quanto do contrabando de armas sofisticadas, de eletrônicos de comunicações e de equipamentos de informática, e descaminho de pedras preciosas e outros bens nacionais, demais de lavagem de narcodólares e de propinas. Esta é uma realidade social já no campo pragmático, cuja resposta do estado e da sociedade até o momento tem sido insuficiente ou nula diante de tamanho poderio do crime.
Um fato que comprova a falência do estado e da sociedade em relação ao crime organizado é sua influência no meio político nacional, estadual e municipal, que já chega a ponto de eleger representantes em todos os níveis da política. Aqui o clientelismo tem peso, tanto quanto o descontrole estatal em relação à macrocriminalidade. E os exemplos são inúmeros, alguns de domínio público e outros ainda mascarados no submundo. E não é demais afirmar que os segmentos sociais que interferem na cultura e na economia do país estão igualmente contaminados; mas a extensão e a profundidade deste gravíssimo fenômeno de expansão do crime organizado são invisíveis aos olhos da sociedade.
Na medida em que o crime organizado se vê obrigado a atender à sua enorme demanda, já na ponta da linha, ele se torna mais visível, assim como é visível o aparelho repressor destinado à contê-lo. Este é o momento de percepção da imprensa que resulta em divulgação. É o fato concreto observado e imediatamente explorado pelos meios de comunicação de massa; é o fato isolado gerador de noticias,que são absorvidas prontamente pelo leitor e forma o quadro do que entendemos como Opinião Pública. É, na verdade, o continente do problema, e não seu conteúdo, conforme nos explica muito bem o Cel Jorge da Silva, Oficial da PMERJ, Professor da UERJ, Conferencista e incansável estudioso do assunto, cujo saber é hoje mundialmente reconhecido.

3 – A SITUAÇÃO NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Origem e sede do Comando Vermelho e de outras facções poderosas do crime organizado, o território fluminense é um dos mais afetados por sua expansão. Além de sua população natural, o RJ acolhe impressionante contingente de migrantes, transformando seu território num intrincado complexo social em razão de sua evidente impossibilidade em absorver racionalmente esta população que busca sua mobilidade social. Nesse aspecto, o Estado do Rio de Janeiro, devido exatamente ao fenômeno migratório desordenado, apresenta um quadro aterrador, de verdadeira calamidade social. São favelas em todos os lugares da Região Metropolitana, principalmente, mas com nítidos reflexos no Interior. E nesses locais carentes de tudo, onde se concentra grande parcela da população, é que o crime se torna mais visível; porque no asfalto, pela própria cultura criminosa da sofisticação e da camuflagem, ele não é tão observado, apesar de existir em grande escala.
Chegamos então ao seu ponto terminal: os traficantes, de um lado, ocupando as favelas pelo terror das armas e pelo clientelismo. Do outro lado, a Polícia, apenas parte integrante do aparelho repressor do Estado-membro e tão ineficiente quanto os demais órgãos – Justiça, Ministério Público, Sistema Carcerário, Defensoria Pública etc. –, além do anacronismo da Legislação Penal. Também não se pode esquecer a imprensa, que é o único elo do estado com a sociedade neste nível último da macrocriminalidade, mas também muito afetada por interesses ideológicos e financeiros, eis que não é feita de semideuses ou anjos.
É nesta situação que se começa a observar, da base para o topo, as verdadeiras distorções na relação entre a sociedade “sadia” e seu segmento “doente”. A primeira dificuldade está na forçosa interação entre trabalhadores e criminosos nas favelas, onde ambos se confundem. Para começar, no campo invisível esse mister policial é impraticável, pois a sociedade não tem o hábito de colaborar com o aparelho repressor; e são muitas suas justas razões, na medida em que este aparelho estatal é formado por pessoas com enorme possibilidade de contaminação. Afinal, um aparelho repressor que confunde trabalhador com bandido não consegue interagir com a sociedade para receber dela os insumos que conduzam à singularização dos criminosos.
Talvez a saída fosse a tecnologia, mas como falar em tecnologia se a investigação criminal no Brasil é prática que se resume à “tomada de depoimentos” na polícia e na justiça, fazendo prevalecer a “verdade das palavras” na ausência de boa prova científica? Ora, no final quem ganha com isto é o criminoso! Porque, além da dificuldade da sua singularização eficaz, ele ainda conta com a ineficácia das leis e com a habilidade de seus advogados em explorar “falhas no processo”.
Enfim, esta é a síntese da criminalidade no Estado do Rio de Janeiro, que só se diferencia dos outros estados brasileiros quantitativamente. De resto, é tudo igual ao quadro generalizado de expansão do crime organizado, que, no Brasil, já pode ser considerado como sucursal da Colômbia, do México, da Bolívia etc.

4 – CONCLUSÃO

Como se depreende desta reflexão, a macrocriminalidade é fenômeno universal de complexidade ímpar. Estudar esse fenômeno sem considerar sua globalidade não tem sentido. Do mesmo modo, justificá-lo por meio de generalizações causais do tipo “a culpa é da miséria, do menor abandonado etc.” é promover seu crescimento. Tentar combatê-lo somente com o aparelho repressor do estado não atingirá o seu âmago; ainda mais no Brasil, que nem sistema de Justiça Criminal possui. E, por último, tentar conter o crime organizado com ação exclusiva de polícia é simplesmente inocuidade.
Tal inferência conduz o raciocínio à sociedade, único caminho possível para reverter a situação de vitória que o crime organizado sustenta no momento. Mesmo assim, deve-se enfocar o problema primeiramente em termos de sociedade universal, o que não impede a reação da sociedade brasileira no sentido da repulsa veemente a esse desagradável e danoso fenômeno social já disseminado pelo país.
A sociedade brasileira deve repensar o modelo governamental, exigindo do estado investimentos na estrutura de prevenção e repressão. Os segmentos sadios da sociedade brasileira, mormente aqueles de reconhecida influência sobre os demais – Igreja, Universidades, Escolas, Imprensa, Instituições empresariais e comunitárias etc. – devem tomar as rédeas do problema e a iniciativa histórica da mudança.
Desta maneira, abolindo de nossa cultura a coexistência passiva com o crime, não aceitando imediatismos e proselitismos políticos, é possível impor uma cultura de repulsa ao crime e a seus impunes adeptos. Também é assim que a sociedade brasileira poderá transformar-se em exemplo para outros países e alcançar o objetivo universal de vencer a macrocriminalidade ou torná-la pelo menos tolerável.
Ora, não se pode controlar a criminalidade com apenas ação policial. Pois se trata de fenômeno social gravíssimo. Na verdade, desde muito tempo já calamitoso e a demandar esforço geral e permanente da sociedade. Porque o criminoso jamais será eliminado da vida social. Ele é também, e infelizmente, permanente e sempre existirá a nos atormentar. E quanto maior o descontrole, maior o tormento...



Um comentário:

Unknown disse...

Na minha humilde opinião, enquanto não houver políticas públicas que ofereça dignidade aos menos favorecidos, tal qual incentivos a sua educação, esporte, cultura, dificilmente conseguiremos mudar esse quadro. É muito fácil colocar a culpa na Polícia, quando a vê o histórico e quadro atual que o Coronel acabou de descrever acima.