“O mundo
está perigoso para se viver! Não por causa daqueles que fazem o mal, mas por
causa dos que o veem e fazem de conta de que não viram.” (Albert Einstein)
Aos jovens
cadetes e oficiais da PMERJ e demais interessados.
A divulgação
da lista de 43 PMs excluídos disciplinarmente da PMERJ em todos os jornais do
fim de semana, com seus nomes completos e graduações, sem dúvida serviu para
execrá-los perante a família, os vizinhos, os colegas de farda e demais amigos,
e inimigos, além expô-los em desgraça ao conhecimento geral da sociedade. Tal
situação remete-me aos ensinamentos de Michel Foucault sobre o
“castigo-espetáculo”.
Sei, por
óbvio, que a punição administrativa demandará reação judicial sob a égide do
direito constitucional à presunção de inocência, dentre outros direitos recorrentes.
E me ocorre a indagação: e se depois de vitimados por notícia de irreversível
dano moral, como foi o caso, algum desses PMs provar inocência em processo
judicial, como as coisas ficarão? Como ele terá o dano reparado? Como desfazer
os ruidosos comentários em rodas escolares, com as crianças questionando seus
coleguinhas em razão da desgraça de seus pais tornada pública em
intempestividade?
Não estou criticando
as investigações, creio na lisura da Corregedoria da PMERJ e posso presumir, pelo
tempo gasto nas apurações, que pela ótica da corporação houve indícios ou
provas suficientes para fundamentar a drástica decisão administrativa de
natureza coletiva. Mas novamente me indago: será que é somente a PMERJ feita de
demônios, e as demais instituições, sublinhando algumas que talvez tenham
atuado nesta fase da apuração, são feitas de anjos? Ou será que punem em
silêncio para preservar a imagem institucional em virtude de inevitáveis
desvios de conduta disciplinares ou criminosos em seus respectivos âmbitos?
Fico com a segunda ideia, a do silêncio, porque é impossível crer que só haja
desvios de conduta nos intestinos da PMERJ.
Mas o que
pretendo é sublinhar em ênfase o peso da sociedade se impondo sobre a
instituição PMERJ, cultura que vem de longe no tempo e é de tal complexidade
que não dá para discorrer sobre ela neste texto, a não ser aproveitando um
trabalho universitário que fiz juntamente com o Tenente-Coronel PM Claudio José
Valentim, como seu orientador, para atender a um professor do seu curso de
Direito. É texto longo e exaustivo, porque fruto de muita pesquisa e reflexão, mas
poderá servir como base de análise do fato em comento, principalmente pelo
Público Interno da PMERJ ou por quem mais se interessar, pois esta compreensão mais
acurada conduzirá o leitor àquela outra referente aos 43 PMs disciplinarmente
excluídos pela PMERJ do modo sensacional como se viu nos jornais. Com certeza,
a corporação não ganhou nada com a divulgação do seu ato administrativo, embora
eu não saiba se foi obra dela própria ou de terceiros mais poderosos instalados
no poder político...
Segue o
texto na íntegra de como foi apresentado na universidade, com a ressalva de que
angariou grau dez. Devo, porém, sublinhar que pensei iluminar algumas partes
mais afetas à situação que encabeça esta reflexão, mas entendi ser melhor
deixar que cada leitor faça suas ressalvas em cotejo com o cenário noticiado: a
exclusão sumária de 43 PMs a bem da disciplina.
MICHEL
FOUCAULT
ESTUDO
UNIVERSITÁRIO
Sumário
Introdução
.......................................................................................................................
II
1.0 -
Desenvolvimento .....................................................................................................
3
1.1 – 1ª Questão
.................................................................................
............................. 3
1.1.1 – Resposta
...............................................................................................................
3
2.0 – 2ª Questão
.............................................................................................................
15
2.1 – Resposta ................................................................................................................
15
3.0 – 3ª Questão
.............................................................................................................
18
3.3 - Resposta.................................................................................................................
18
4.0 – Conclusão
.............................................................................................................
22
5.0 – Bibliografia ...........................................................................................................
23
Introdução
Foi propósito deste
trabalho desenvolver respostas a quatro questões que focalizam sucessivamente a
concepção de Foucault sobre o Poder, sobre a Norma e o Direito,
nos dois últimos casos segundo a ótica de François Ewald, gravada em seu livro Foucault a Norma e o Direito (1). E, partindo ainda de inferências do
filósofo condensadas num livro intitulado A
Verdade e as Formas Jurídicas (2),
fruto de uma série de cinco conferências por ele realizadas na PUC do Rio de
Janeiro entre 21 e 25 de maio de 1973, mais duas questões, pertinentes a um
texto sublinhado pelo professor, foram relacionadas: “Qual o papel que
desempenhava para os gregos um homem como Tirésias em sua relação com os deuses
e o sagrado na Grécia Arcaica, e por que o testemunho foi de grande importância
para o nascimento das formas jurídicas?”
Bem, como o assunto
versava exclusivamente sobre Foucault, buscou-se ainda, como fonte de estudo, a
obra Vigiar e Punir (3), além das demais
supracitadas, evitando-se a digressão para outros campos de conhecimento e
autores que abordassem assuntos correlatos, com o fim de propiciar reflexão
mais acurada sobre o pensamento do filósofo ora estudado. Destarte, as três
obras foram situadas como um sistema de consulta desdobrado em três subsistemas
de igual nível de importância, especialmente porque François Ewald, na verdade,
analisa Foucault igualmente baseado em Vigiar
e Punir, muito embora se
refira a outras intervenções escritas por Foucault e ainda cuide de emitir
juízos próprios, porém ajustados aos do mestre, a quem reverencia como se fora
um seu discípulo. Mas, na verdade, são dois estudiosos seguindo a mesma vereda
da pesquisa filosófica, de um lado, e um aluno, leigo, do outro, buscando neles
as respostas às indagações do professor.
Dentro desta disposição
do espírito é que se procurou, a par do exíguo tempo e de outros afazeres,
realizar um esforço de compreensão dos temas caminhando-se pelas mesmas veredas
de ambos os mestres e evitando-se a formulação de juízos de valor, mas que a
gravidade dos textos naturalmente os provocou em momentos da elaboração deste
texto, o que, decerto, poderá ter resultado algumas interpretações errôneas por
parte deste aluno. Entretanto, a própria disposição de Foucault ao apresentar
suas idéias democraticamente, despindo-as de conceitos fechados e voltando-as
para uma realidade que a todos interessa, por si só dispensaria desdobramentos
especulativos. Por isso se buscou de certo modo evitá-los e apenas demonstrar o
entendimento que se conseguiu captar sobre os temas colocados em questão.
1.1
– 1ª Questão: explique a concepção de poder de Michel Foucault.
1.1.1 – Resposta
Explicar
a concepção de poder de Michel Foucault significa romper barreiras quase que
intransponíveis da passividade intelectual e fugir de enraizados
lugares-comuns, especialmente porque a sociedade contemporânea, de alguma
forma, é conseqüência do processo de submissão ao poder dominante de ontem. Significa,
enfim, dissecar esse estranho poder, desdobrá-lo em muitos, conforme o tempo e
o espaço ocupados por corpos humanos diversos e em circunstâncias tão variadas
que, para resumi-las, o próprio filósofo gastou muita tinta e papel e sua obra
certamente enfrentou e ainda enfrentará muitas resistências. Ele se foi, mas é
certo que essas resistências se mantêm vivas, a partir da constatação de que as
suas dele idéias, mesmo que apresentadas com a singeleza de um historiador sem
aparentemente maiores objetivos, incomodam os arraigados aos pensamentos de
outros mestres do saber que lhe são contrários.
Também
não se pode pensar em desvelar a idéia de poder de Foucault sem seguir os seus
passos a partir de sua obra Vigiar e Punir, impressionante tratado sobre o poder
que focaliza o funcionamento das sociedades ocidentais desde épocas bastante
remotas e busca esclarecer como as relações de poder surgiram a partir de
práticas sociais cujo foco se ligava ao artificialismo e à argúcia dos
detentores do poder, com este tomando muitas formas para se ajustar ou se
contrapor aos interesses imediatos da base, esta sempre a destinatária dos
mandos e desmandos impostos pelo ápice da pirâmide social.
Desde
que o mundo é mundo, o homem é o centro de tudo que existe a sua volta, e lhe é
intrínseco o desejo pela posse e pelo consumo das coisas além dos seus
semelhantes. E lhe é intrínseco o desejo do mais-poder. Também é cediço que a
ligação do homem com o sobrenatural, a partir da constatação inteligente da
irreversibilidade do seu fim corporal, fez da religião o principal instrumento
de conquista e manutenção do poder de alguns e até de um sobre a maioria,
dividindo-se as sociedades sempre em duas metades inconfundíveis: dominadores e
dominados, enfim, uma dicotomia reduzida a quem manda e a quem obedece. É neste
campo movediço das práticas sociais e jurídicas que o poder vem vencendo os
tempos e pairando sobre as pessoas em roupagens tão miméticas que lhe poderiam
designar como um espírito maligno, ou como todos os males da boceta de Pandora,
um dia aberta por quem certamente buscava, pela curiosidade, mais poder e mais
riqueza para si.
A
dominação sempre se situou como o principal alvo do ser humano com vistas à
perpetuação do poder sobre os seus semelhantes, indo até abaixo da classe
social mais baixa: a de escravos e criminosos. Para essas duas categorias
sociais, tanto na idéia de burgueses como de plebeus, dever-se-ia priorizar o
castigo extremo como o modo de punição mais eficaz de seus comportamentos
ilegais, além do exemplo marcante que ele naturalmente imporia aos demais
integrantes das massas submetidas à dominação. No caso dos escravos, desde
muito antes no tempo o suplício já os atingia como única forma de destruí-los,
exemplificando em ameaça concreta o que poderia ocorrer com os recalcitrantes.
E as técnicas rudimentares de suplício foram naturalmente aproveitadas e
aprimoradas para uso também contra os criminosos para, por via de uma
publicidade espalhafatosa, atingir o espírito do povo que, contraditoriamente,
participava em euforia desses espetáculos dantescos. E, sem o perceber, levava
na mente a idéia de que poderia ser o próximo a ser supliciado...
Esta
digressão, leiga, surge aqui já inspirada na obra de Foucault, que trata da
evolução do castigo a partir de um ponto em que ele é formalizado por uma
sociedade caracterizada pela selvageria. Pois é terrivelmente chocante o
exemplo gravado pelo filósofo na abertura do seu livro Vigiar e Punir,
decerto para causar uma impressão máxima ao leitor e prepará-lo, já atingido em
cheio no espírito, para absorver com uma visão fria os ensinamentos seguintes,
que mostram a evolução do poder a partir de sua face mais sórdida: a punição. E
para punir, claro, era preciso vigiar, controlar, especificar, enfim, instituir
uma tecnologia do castigo de tal modo que ele não debandasse em direção a uma
aleatória selvageria, que certamente fugiria ao controle de quem a instituiu e
se poderia voltar perigosamente contra os seus mentores.
O
brutal suplício de Damiens, logo comparado ao sistema de vigília e de punição
imposto aos “jovens detentos de Paris”, permite ao autor fixar seu raciocínio
em dois modelos e em duas épocas, com o fim de mostrar a evolução da pena para
uma “economia do castigo”, partindo-se da repressão ao corpo humano e de sua
destruição sensacional, que o autor designa por “castigo-espetáculo”, para uma
forma mais sutil de punição. Essa mudança para “uma moral bem nova própria do
ato de punir” já demonstra a presença do poder como a principal senão única
variável antecedente, e, ao mesmo tempo, como variável causal e seu efeito. E,
até pelos tipos de crime – parricídio e regicídio – citados pelo autor como
relevantes no novo modelo de morte rápida em guilhotina, ou do decepar de
membros do corpo do condenado mantido com o rosto coberto em crepe negra, que
veio substituir a morte lenta e dolorosa do condenado no suplício da roda e
outros métodos grotescos e sanguinolentos, vê-se claramente a presença de dois
poderes intangíveis, ressalvadas as devidas proporções entre eles: o poder dos
ascendentes e o poder do soberano.
Na
realidade, percebe-se o foco do autor primeiramente no “poder sobre o corpo”,
para depois situar que o alvo seguinte da justiça criminal seria a “alma dos
criminosos”, atendo-se a uma “realidade incorpórea”. Tudo, enfim, para lhe
permitir criticar a prática social do “poder de punir”, sem dúvida o máximo
exercício do poder, especialmente pelo seu aspecto desmedido. Vigiar e Punir,
portanto, é um livro que se resume num objetivo claramente proposto pelo próprio
filósofo: “Uma correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma
genealogia do atual complexo científico-judiciário onde o poder de julgar se
apóia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara
sua exorbitante singularidade”.
Partindo
de uma reflexão sobre a origem e a formação dos indivíduos integrantes da
espécie humana, para estudar suas práticas sociais e as formas de poder, e
tomando a punição como “uma função social complexa”, o autor parte para a
demonstração de como “o próprio corpo é investido pelas relações de poder” e
sugere a tentativa de estudo da “metamorfose dos métodos punitivos a partir de
uma tecnologia política do corpo”. Traça, enfim, a diretriz do seu pensamento,
quando insere a correlação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de
produção numa economia servil, afirmando que, nesses casos, “os mecanismos
punitivos teriam como papel trazer a mão-de-obra suplementar – e constituir uma
escravidão civil ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo
comércio” (Grifo do autor).
Neste ponto vale
sublinhar um dito do filósofo que encerra o capítulo sobre o que designou por O Panoptismo,
decerto derivado de “pan-óptico”, ou seja, “que permite uma visão total”:
“Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as
escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?”
Eis a síntese, magistral, que coloca o corpo e a alma dos indivíduos submetidos
à vigília constante de um sobre muitos (modo inverso do passado, em que muitos
assistiam ao suplício de um), e a uma disciplina sistematizada, e à ameaça de
punição até ao extremo do desaparecimento físico. Mas, ao mesmo tempo, deve o
corpo ser visto como um fator concorrente à produção, como um fator econômico de
suma importância, o que permite inferir que o campo político e suas relações de
poder passam pelo interesse maior de uma economia e das riquezas geradas pelo
esforço humano. É aquilo que o autor chama de “investimento político do corpo”,
no sentido de direcioná-lo para uma “utilização econômica” como “força de
produção”, formando, destarte, um “corpo investido por relações de poder e de
dominação”.
Não
significa, todavia, que as relações de poder tenham como pressupostos
fundamentais o uso da força diretamente aplicada sobre o corpo, traduzida em
punição de ordem física, ameaças etc., o que igualmente não pode ser entendido
como frouxidão. Na verdade, a imposição econômica impeliu o modelo de poder
para o aproveitamento máximo da força de trabalho, inclusive a dos condenados,
dentro de uma estratégia de privilégio permanente da economia. Ou seja, em vez
de gasto com os condenados, lucro. Essa era a tendência das classes dominantes,
ou seja, exercer o poder de punir através de uma lógica econômica de transformação
do corpo – “força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso” –,
que o autor designa por “tecnologia política do corpo”, e que ganha cada vez
mais prestígio na medida que não decorre de estratégia do Estado ou de alguma
instituição isolada, mas, antes, de uma rede de interesses convergentes dentro
da sociedade como um todo.
Na
verdade, tudo funciona ajustado às circunstâncias econômicas existentes e
aprofundadas dentro da sociedade, não se constituindo somente de prescrições
elaboradas artificiosamente pela classe dominante, mas, como afirma o autor, de
“suas posições estratégicas”. E aqui surge a idéia do filósofo sobre a
importante relação “poder-saber”, finalmente concluindo que nesta fase da
história os corpos humanos nada mais eram que “objetos de saber”, logicamente
considerando os dominadores como os sujeitos desse conhecimento relacionado ao
sistema de poder. Vê-se, pois, que não há como fugir da idéia central da
economia gerindo antecipadamente o poder por via de estratégias sutis, e talvez
algumas até normais em função da necessidade de toda a sociedade se adaptar às
circunstâncias impostas pelos inelutáveis meios de produção de riquezas, sempre
a crescer e a consumir mais mão-de-obra humana.
Em
sua descrição, o filósofo esmiúça as relações de poder fazendo um contraponto
entre o poder do rei, relevando um seu “corpo duplo”, ou seja, comportando um
elemento transitório, que morre e desaparece, e um outro, permanente e
intangível através dos tempos: o reino. Daí as dinastias de poder. Em outras
palavras, a diferença entre um rei e um plebeu condenado está no fato de que o
segundo simplesmente desaparece, porque, afinal, não passa de um ser comum aos
olhos do povo, e não a representação de um poder intemporal, seja reino, seja
outro modelo de dominação centrada em apenas um, seja ou não transitório, desde
que ornado com os cerimoniais de superioridade e do poder de punir a massa
dominada.
Contudo,
mesmo no caso do homem comum, o poder não se limitou a vigiar para punir. Ao
contrário, puniu vigiando, através do controle absoluto dos comportamentos e do
conhecimento delimitado aos detentores do poder e aos seus sucessores
dinásticos, ou então destinados àqueles para tanto já escolhidos por outros
detentores de poder. É isso que se deduz da descrição do filósofo, quando ele
assegura que: “Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, um efeito
ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida
permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo
funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos – de uma
maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os
loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a
um aparelho de produção e controlados durante toda a existência”.
Longa citação, sem
dúvida, mas que resume com tão tamanhona profundidade a essência do pensamento
do autor, que se tornou indispensável gravá-la nesta reflexão partida do seu
extenso texto descritivo do poder pela via mais retumbante: a história da
dominação dos corpos humanos por seus dominadores. Daí é que a alma (elemento
que garante a sobrenaturalidade do homem) deve ser vista como um “instrumento
de anatomia política; a alma, prisão do corpo”, advindo deste raciocínio que a
“tecnologia do corpo” é um “instrumento e vetor de poder” que a “tecnologia da
alma (...) não consegue mascarar nem compensar”.
Sem dúvida, a
preeminência do corpo sobre a alma para efeito de punição resulta de uma
inconfundível necessidade de se materializar o poder e internalizar a idéia
deste poderio através da “Ostentação Dos Suplícios”, título do capítulo II de Vigiar
e Punir. Em realidade, o texto trata da descrição ainda mais meticulosa das
práticas penais desde a ordenação de 1670 até a Tomada da Bastilha, em 14 de
julho de 1789, curiosamente havida em razão de muitas pressões econômicas e
crises na indústria e na produção de alimentos, com a burguesia se negando a
abdicar de alguns privilégios em benefício da paz. E houve o aumento do pão,
literalmente, a gota d’água a eclodir a Revolução. Mas neste intermédio entre a
ordenação e a Revolução é que o autor esmiúça a punição ostensiva dos que
recebiam a condenação, com a ressalva de que os processos corriam à revelia dos
acusados, em tal segredo que eles somente tomavam conhecimento da sentença e
fim da linha, tudo administrado em matemáticos “adminículos” (presunções
jurídicas) que, enfim, significavam um modo de poder absoluto e exclusivo do
saber, e um poder ilimitado sobre o corpo do condenado.
Assim
a “verdade” era buscada, pelo cansaço do acusado e por sua ignorância diante de
uma “verdade” que lhe era imposta por tão sistemáticas evidências que o
culminavam levando a ser um “parceiro voluntário” das manobras para a sua
própria punição, através de uma confissão que o filósofo resume como uma “dupla
ambigüidade”: “Elemento de prova e contrapartida da informação; efeito de
coação e transação semivoluntária e juramento acompanhado de ameaças divinas e
tortura (violência física para arrancar uma verdade)”. No segundo caso, esta
prática remonta aos suplícios impostos aos escravos e aos tempos da Inquisição.
Mas tudo era visto como um ritual político indispensável, e não como
selvageria. Selvagens eram os condenados, sempre, não importando se inocentes
ou culpados. Afinal, e como afirma o autor citando Joseph de Maistre: “O poder
absoluto do carrasco forma a engrenagem entre o príncipe e o povo”. E o
protesto contra os suplícios, a partir de meados do século XVIII, começa a
ceder lugar à idéia de que “é preciso que a justiça criminal puna em vez de se
vingar”.
Essa
delimitação teórica da punição faz surgir o que o filósofo indicou como o
“homem-limite que serviu de objeção à prática tradicional dos castigos”. E não
demora a esclarecer, se referindo a P. Chaunu, a “uma modificação no jogo das
pressões econômicas, de uma elevação geral do nível de vida, de um forte
crescimento demográfico, de uma multiplicação de riquezas e das propriedades e da
necessidade de segurança que é uma conseqüência disso” (sublinha do autor).
Mas é esse fenômeno socioeconômico gerador do outro, sociopolítico, que o
filósofo intitulou no capítulo I da Segunda Parte do seu livro como “A Punição
Generalizada”, eis que se partiu para o aprimoramento das técnicas indiretas de
vigiar a população através da observação permanente do “comportamento cotidiano
das pessoas, sua identidade, atividade,
gestos aparentemente sem importância”, ao mesmo tempo se buscando uma
vigilância penal “mais inteligente” e uma justiça “mais desembaraçada”, porém
tendo como foco a “intolerância aos delitos econômicos”.
Entretanto,
e conforme esclarece o autor, a superposição de poderes judicantes, tudo mal
regulado e conflitante, ainda exacerbada a confusão em razão do “superpoder
monárquico” centralizador e incontestável, provocava o que ele designou como
“má economia do poder”, de tal modo que até uma inversão hierárquica passa a
ocorrer, com um poder excessivo nas jurisdições inferiores, em detrimento de
menores poderes em instâncias mais elevadas. Tudo isso passa desqualificar o
poder de punir, ao mesmo tempo em que se lhe exige adaptação a uma nova
economia política. Daí é que surge a necessidade de se impor uma nova
estratégia do poder de castigar e surge a “reforma”, agora com os olhos voltados
para uma nova política em vista das ilegalidades, mantida, porém, a idéia de
uma certa condescendência em relação a elas, de um modo geral, e de uma
separação de valores entre os burgueses e as classes trabalhadoras na hora de
punir. Em prejuízo dos últimos e benefício dos primeiros, claro!
O
aumento geral das riquezas, especialmente a partir da Revolução, abriu uma nova
crise da “ilegalidade popular”, pois a burguesia, se aceitava de um certo modo
uma ilegalidade de direitos, não transigia, porém, em relação à ilegalidade de
bens. Pois o direito de propriedade e dos bens (especialmente os comerciáveis e
estocados com esse fim), cuja relação era direta com aumento das riquezas, teria de ser respeitado
pela massa popular a qualquer custo. Eis, pois, o princípio da desconfiança
reinstalado na sociedade e exacerbado a ponto de o autor citar um tal Colquhoun
(criador da polícia na Inglaterra): “Todas as vezes que estiver reunida no
mesmo lugar uma grande quantidade de trabalhadores, haverá necessariamente muitos
maus elementos”.
Estabelece-se,
destarte, o princípio da desconfiança generalizada e da necessidade de se
codificar todas as práticas ilícitas e suas respectivas punições, num processo
ao mesmo tempo sociopolítico e socioeconômico que evidencia principalmente o
roubo. Predomina, pois, o interesse maior da sociedade capitalista, um
movimento que, segundo o autor, “vai de uma sociedade da apropriação
jurídico-política a uma sociedade da apropriação dos meios e produtos do
trabalho.” Mas aqui o próprio capitalismo começa a vencer o poder do rei, na
medida que há a necessidade de o superpoder do soberano ceder espaço ao
infrapoder das ilegalidades conquistadas e toleradas, certamente as
ilegalidades de direito, porque as ilegalidades dos bens eram de concessão impossível.
Daí é que Le Trosne, igualmente citado por Foucault, releva em 1764 a
“vadiagem” (“viveiros de ladrões e assassinos”), e para os “vadios” sugere
penas mais pesadas, pois considera que eles devam ser excluídos da sociedade a
ponto de o Estado transformá-los em escravos. E se vai partindo para o
aprofundamento do castigo universalizado através de leis de uma sociedade vista
como um todo a ser protegido e com o direito de punir seus agressores, assim
designados como os criminosos a serem severamente castigados. Como afirma o
autor em seu raciocínio: “O direito de punir deslocou-se da vingança do
soberano à defesa da sociedade. Mas ele se encontra então recomposto com
elementos tão fortes, que se torna quase mais temível”. Mas, ao mesmo tempo em
que torna à cena esse “terrível superpoder”, surge a necessidade de se
estabelecer um princípio moderador do “poder de castigo”.
Como
se pode notar, a oscilação é permanente e possível, desde que não implique em
transferência de poder para a massa. Ele permanece nas mãos dos burgueses, e
com o beneplácito do soberano, que certamente é o que mais enriquece em meio a
toda essa confusão. Na realidade, institui-se uma “tecnopolítica da punição”
voltada para o cálculo da pena nem tanto em razão do crime ou reparação de fato
passado, mas para a preservação da ordem futura. Eis a prevenção ao crime como
objeto do saber e do poder de punir, bela justificativa teórica e prática,
porém sempre enfocando a diferença entre um burguês e um camponês, razão por
que o autor resume que tais mudanças foram sistematizadas em regras claras,
muito embora extremamente dúbias: “Regra da idealidade suficiente (“Se o motivo
de um crime é a vantagem que se representa com ele, a eficácia da pena está na
desvantagem que se espera dela...”); regra dos efeitos laterais (“A pena deve
ter efeitos mais intensos naqueles que não cometeram a falta; em suma, se
pudéssemos ter a certeza de que o culpado não poderia recomeçar, bastaria
convencer os outros de que ele fora punido...); regra da certeza perfeita (“É
preciso que, à idéia de cada crime e das vantagens que se esperam dele, esteja
associada a idéia de um determinado castigo, com as desvantagens que dele
resultam...”); regra da verdade comum (“A verificação do crime deve obedecer
aos critérios gerais de qualquer verdade...”); regra da especificação ideal
(“Para que a semiótica penal recubra bem todo o campo das ilegalidades que se
quer reduzir, todas as infrações têm que ser qualificadas...”)”, na verdade um
jogo de semiótica penal ajustada aos interesses burgueses, ao “status do
infrator”.
É
importante verificar como Foucault vai enfeixando seu raciocínio enquanto
descreve o cenário do poder de punir ao longo dos tempos, sempre apontando para
suas transformações, porém mantendo o foco no principal: tudo modifica, avança,
recua, revoluciona, mas o poder nunca troca de mãos, é burguês e soberano de um
lado e plebe do outro, é sociedade partida em duas metades e sempre tratada
como se fora assim, que o autor acaba resumindo uma “semiotécnica das punições”
que, a outrem atribuindo, informa ser este um “poder ideológico”. Ou seja, tudo
conforme uma nova “anatomia política” que “rejeita o criminoso para o outro
lado – o lado de uma natureza contra a natureza; e a que procura controlar
a delinqüência por uma anatomia calculada das punições. Um exame da nova arte
de punir mostra bem a substituição da semiótica punitiva por uma nova política
do corpo”, à qual ele designou em capítulo subseqüente como: “A Mitigação das
Penas”.
Sim,
pois a idéia de suavizar a pena não permitiu muito avanço na severidade do
poder de punir. Na verdade, além de se tentar equilibrar a complexa dicotomia
crime-punição em função dos interesses da sociedade capitalista (ou seja, a
visão do crime como um fenômeno sociopolítco, rotulando-se antecipadamente os
crimes e suas respectivas penas), buscou-se o foco não no castigo, mas em sua
divulgação (“sinais-obstáculos”), ou seja, uma espécie de recado ou ameaça
genérica alcançando a sociedade como um todo, especialmente os criminosos em potencial.
Tratou-se, enfim, da criação de um sistema de inibição da vontade de delinqüir
por meio de uma espécie de “jogo de sinais” para comunicar transparentemente o
crime e sua correspondente punição. Eis o efeito da pena, que se afasta dela em
si mesma e se projeta para os espíritos alheios ao do próprio criminoso, de tal
modo que o cumprimento do castigo poderia até ocorrer com base em mecanismos
internos variáveis e mais brandos. Como clareou o filósofo, neste modelo do
poder de punir “o culpado é apenas um dos alvos do castigo. Este interessa
principalmente aos outros: todos os culpados possíveis”.
Neste
modelo de punição o condenado não teria o seu corpo como “coisa do rei”, mas,
sobretudo, seria um “bem social, objeto de uma apropriação coletiva e útil”.
Daí é que o uso de condenados em obras públicas, colocando-os visíveis ao povo
em geral, provocaria uma reação direta nas mentes de todos, ou seja, um “sinal
crime-castigo”, ou, como ainda sugeriu o filósofo, seria “um reforço coletivo
da ligação entre a idéia do crime e a idéia da pena”. Para tanto, por
conseguinte, houve o esforço dos legisladores, especialmente Brissot e Le
Peletier de Saint-Fargeau, citados por Foucault como os principais
participantes da elaboração do 1º Código Penal Revolucionário, projeto
apresentado à Constituinte francesa no século XVIII. Defendia Le Peletier a
publicidade máxima da pena imposta ao criminoso, numa doutrinação extremada a
ponto de envolver as crianças através de visitações cívicas aos locais onde as
sentenças eram executadas, de modo a assim se cristalizar na mente infantil que
o crime e os criminosos não eram heróis e, sim, desgraçados “a quem se reensina
a vida social”.
E,
dentro desta linha de publicidade máxima projetando “sinais-obstáculos que
impedem o desejo do crime pelo receio calculado do castigo”, que hoje se
denomina por repressão penal ou inibição de vontade, buscou-se apresentar o
crime como “uma desgraça e o malfeitor como um inimigo a quem se reensina a
vida social”, para, deste modo, “apagar a glória duvidosa dos criminosos”, ou,
como ironicamente comentou Foucault, “uma cidade punitiva construindo-se em
oficinas abertas para todos, no fundo de minas que serão visitadas, mil
pequenos teatros de castigos. Para cada crime, sua lei; para cada criminoso,
sua pena. (...): que cada castigo seja um apólogo. (...). Em torno de cada uma
dessas representações morais, os escolares se comprimirão com seus professores
e os adultos aprenderão que lição ensinar aos filhos. (...). Mas talvez fosse
necessário, acima desses mil espetáculos e narrativas, colocar o sinal maior da
punição para o mais terrível dos crimes; o ápice do edifício penal (...), o
infinito punitivo (...): O culpado teria os olhos furados; seria colocado numa
jaula de ferro suspensa em pleno ar, acima de uma praça pública; estaria
completamente nu, com um cinto de ferro em torno da cintura, seria amarrado às
grades; até o fim de seus dias, seria alimentado a pão e água (...). Acima da
cidade punitiva, essa aranha de ferro; e o que deve ser assim crucificado pela
nova lei é o parricida”.
Neste
ponto, e como curiosamente afirma o autor, “a prisão como forma geral de
castigo nunca é apresentada sob a forma de penas específicas visíveis e
eloqüentes”. Entretanto ele complementa assegurando que, no caso dessas penas
específicas, ela é prevista especialmente como castigo para “certos delitos, os
que atentam contra a liberdade dos indivíduos (como o rapto) ou que resultam do
abuso da liberdade (a desordem, a violência)”. Na realidade, e ainda sob o
enfoque do filósofo, os reformadores não se animavam muito com a prisão porque
ela representava o inverso daquela natureza pública do castigo, além de ser
nociva, onerosa, e multiplicar os vícios dos condenados. E chegavam a admitir
que “o trabalho de privar um homem de sua liberdade e vigiá-lo na prisão é um
exercício de tirania”. E neste ponto Foucault insere uma lapidar denúncia: “A
prisão em seu todo é incompatível como toda essa técnica da pena-efeito, da
pena-representação, da pena-função geral e discurso. Ela é a escuridão, a
violência e a suspeita”.
Com
efeito, era uma época de contradição penal, eis que abominava a prisão e
acolhia métodos bem mais violentos de castigo, tudo em nome de uma ameaça
coletiva que ficava pairando nos espíritos de todos. Mesmo assim, esses meios
simbólicos de punição se foram tornando ineficientes e começaram a dar lugar às
teorias mais voltadas para a especificidade dos delitos e de suas penas
equivalentes, ambas seguindo uma mesma natureza, como se fora a “lei de talião”
(dores para os que forem ferozes, trabalho para os que foram preguiçosos...”).
E, finalmente, predomina uma multiplicidade de castigos mediante o
encarceramento dos condenados, porém sem qualquer sintoma de justiça e
equilíbrio em relação ao tipo de crime e sua correspondente pena temporal, algo
temporalmente uniforme, o que Foucault designou por “colonização da
penalidade”.
A
bem da verdade, a prisão também era abominada por Foucault, que a desqualificou
a ponto de taxar seu funcionamento de “despótico”, decerto associando ao que
dissera antes sobre a prisão: “Ligada ao arbítrio e aos excessos do poder
soberano”, concluindo com o comentário sobre uma “pedagogia universal do
trabalho” para os que se lhe mostrassem “refratários” (“o trabalho será mais
vantajoso que a preguiça”), e assegurando quase que em repetição aforística: “A
razão dada é que a ociosidade é a causa geral da maior parte dos crimes”, ou,
enfim: “Quem viver tem de trabalhar”. Eis, pois, o Homo oeconomicus, que
assim o filósofo denuncia: “(...). Reconstrução do Homo oeconomicus, que
exclui a utilização de penas muito breves – o que impediria a aquisição das
técnicas e do gosto pelo trabalho, ou definitivas – o que tornaria inútil
qualquer aprendizagem”.
Esse
modelo transformou a prisão quase que numa fábrica e fez proliferar muitas
delas em que todos trabalhavam em razão da forte demanda pelos produtos
manufaturados ou semimanufaturados nos tempos de prosperidade em que até as
fábricas funcionavam como se fossem prisões patronais, destacando-se o exemplo
que Foucault apresenta de uma fábrica em que trabalhavam 400 mulheres sob um
tal regime que mais parecia prisão, ou convento, ou hospital de loucos, ou
internato, ou... Ora, a prisão visando à “utilização econômica dos criminosos
corrigidos” desandou na crise econômica, e a solução se transformou em
problema, tanto num caso (prisão-fábrica) como noutro (fábrica-prisão), com a
primeira defendida pela idéia da cela como capaz de se criar no criminoso uma
“consciência religiosa”, a exemplo do monasticismo cristão modelado nos países
católicos. E, como informa o autor, este “encarceramento, com a finalidade de
transformação da alma e do comportamento, faz sua entrada nas leis civis”,
saindo da Europa para os Estados Unidos, e aqui começa a surgir um sistema
penitenciário em que “a vida é repartida de acordo com um horário absolutamente
estrito, sob uma vigilância ininterrupta: cada instante do dia é destinado a
alguma coisa, prescreve-se um tipo de atividade e implica obrigações e
proibições (...)”. Em resumo: disciplina.
Observa-se
que as tais obrigações e proibições dizem respeito aos regulamentos internos e
extrajudiciários, já num modelo que afasta o juiz da responsabilidade com o
preso que sentencia, algo que perdura até hoje. E é através desse poder de vigiar
e punir que se começa a organizar um “saber individualizante que toma como
campo de referência não tanto o crime cometido (pelo menos em estado isolado),
mas a virtualidade de perigos contida num indivíduo e que se manifesta no
comportamento observado cotidianamente. A prisão funciona aí como um aparelho
de saber”. Ou, por dedução, como um laboratório em que os condenados são
transformados em cobaias, pois se exacerba o poder punitivo sob pressupostos
díspares a justificar o poder absoluto sobre os indivíduos, dentro da idéia não
menos díspar de que a posse do corpo (semelhante ao suplício, segundo o autor)
“é – para o condenado e para os espectadores – um objeto de representação”. É,
pois, o tal “jogo dos sinais” fazendo funcionar a idéia do crime como um sinal
de punição e com o qual “o malfeitor paga sua dívida à sociedade”.
Esta
é a idéia do “reformatório”, de natureza representativa e diversa, pois, da
idéia da penalidade corretiva, – cujo foco não é senão o corpo e o tempo e os
gestos e as atividades e a alma, esta, como sede de hábitos, – promove-se o
controle absoluto do corpo e da alma. Na realidade, trata-se de tornar os
indivíduos inteiramente submissos, tudo oculto no elevado pretexto de
requalificar os criminosos como “sujeitos de direito”, mas sem se negar, por
impossível, a existência de um “poder específico de gestão da pena”. É o que o
filósofo chama de “tecnologia de poder”, aventando o paradoxo com as
indagações: “Como um modelo coercitivo, corporal, solitário, secreto, do poder
de punir substitui o modelo representativo, cênico, significante, público,
coletivo? Por que o exercício físico da punição (e que não é o suplício)
substituiu, com a prisão que é seu suporte institucional, o jogo social dos
sinais de castigo, e da festa bastarda que os fazia circular?” Assim o autor se
prepara para adentrar em sua tese sobre a disciplina, na terceira parte do seu
livro, e se iniciando com o capítulo que intitulou “Os Corpos Dóceis”.
Neste
ponto, porém, deve-se aqui rememorar que se está seguindo os passos do autor,
sua linha de raciocínio conceitual sobre o poder, foco da indagação do
professor. É claro que se poderia buscar outros caminhos, até mais rápidos,
para responder ao questionamento. Mas ocorre que o conceito de poder de Foucault,
antes de ser prescritivo e fechado, é aberto e representa um profundo e
histórico questionamento sobre o poder a partir de práticas sociais diversas e
talvez nunca antes tão esmiuçadas, pelo menos em enfoque semelhante. Daí é que,
ao promover uma ruptura do pensamento filosófico sobre o poder, Foucault atinge
em cheio a tese marxista, esta que coloca o poder como causa e não como uma
espécie de fenômeno social complexo e decorrente de variáveis multifacetadas em
razão de espaço, tempo e interesses ligados à produtividade do trabalho humano
e, também, da própria conquista e manutenção do poder, mas com práticas
externas pesando em suas variações. Sim, porque fica claro que Foucault, sem o
pejo de se declarar comunista em épocas anteriores, foge das ideologias e se prende
no arcabouço histórico, político, econômico e psicossocial do poder etc., suas
origens e suas conseqüências sociais em tempos remotos e contemporâneos.
Estabelece, sim, um desafio silencioso, comportando-se como um pesquisador com
ares de historiador, mas deixando nas entrelinhas de sua narrativa aquele rasto
de entendimento que no final permitirá a conclusão desapressada, porém segura,
de que o poder é um eficaz e insubstituível instrumento de opressão. Pois,
afinal, responde-se aqui sobre o poder sob ótica particular de Foucault, esta
que não se reduz à simplicidade de uma concordância com outros renomeados
filósofos, como o fazem muitos autores importantes e de certo modo pouco
inovadores. Mas, neste caso, é deveras entusiástica a vontade de, pelo menos,
compreender com um pouco mais de profundidade a idéia de Foucault. Daí o
seguimento desta linha de raciocínio pela via das pegadas do autor, que agora
se desvia para outro caminho deveras importante, especialmente pelo seu aspecto
extralegal: a disciplina imposta aos corpos através da vigilância e do
treinamento sistematizados no sentido de transformar o homem comum em
“homem-máquina”. É o que se resumirá a seguir: a forma mais contundente e ampla
do poder que se possa conceber.
O
gesto, a atitude a duração da continência; o bater dos calcanhares; o levantar
à passagem do superior; a formatura e a marcha para deslocamentos, desde o
caminhar ao marche-marche; as canções marcando o bater dos pés nos desfiles, os
passos regulados por um “regulador de marcha”; a corneta, impessoal, dando
ordens a milhares, os tempos de manuseio das armas nos exercícios de tiro e em
solenidades; a arma e o homem como uma única peça; o culto do físico e o
exercício como meio de cobrança e de aprimoramento físico; as salas de aula com
carteiras numeradas e fixas; as camas arrumadas impecavelmente; o toque de
silêncio; o cabelo rente e a barba rapada; o nome de guerra; enfim, todo um
conjunto de procedimentos estereotipados vão levando o homem a transmutar sua
cultura individual para uma contracultura de vivência automatizada nos seus
mínimos detalhes de tempo e espaço, até se chegar à perfeição, ao soldado dócil
nos quartéis e feroz no combate.
Os
regulamentos disciplinares (conjunto de normas atomizadas e internalizadas no
nível do reflexo condicionado); o detalhamento das matérias de estudo voltadas
para a obediência extrema em combate, quando um é capaz de mandar muitos à
morte em nome da “honra da nação” ou de outro motivo “patriótico”; os uniformes
em cores e símbolos caracterizadores da posição hierárquica; o olhar altivo e
arrogante nas ruas, em contrapartida ao conformismo nos quartéis; os exercícios
coletivos; a vigilância integral de um sobre muitos, a punição avaliada sob a
ótica de circunstâncias agravantes e atenuantes previamente regulamentadas; a
meritocracia das notas em provas individuais com o privilégio de centésimos; os
prêmios representados por medalhas e promoções por bravura etc., os castigos
que vão desde o executar de exercícios extenuantes até o fuzilamento em tempo
de guerra (em alguns países, até em tempo de paz); a corte castrense julgando
crimes específicos, enfim, tudo isso forjando um “homem-máquina”: “foi expulso
o camponês e lhe foi dada a fisionomia de soldado”.
Estendendo
o modelo para outras categorias de pessoas (colégios, igreja, hospitais,
fábricas, prisões etc.), vê-se a presença de muitos desses atributos inventados
para tornar o ser humano dócil e útil pela via de comportamentos previstos e
pela vigilância sistemática desses comportamentos, transformando as pessoas em
“corpos manipuláveis”, em “bonecos políticos, modelos reduzidos de poder”. Isto
ocorria no passado e ocorre hoje nas sociedades de um modo geral: “o corpo está
preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações,
proibições ou obrigações”. Ou ainda, como sugere o autor, tudo obedecendo a uma
“anatomia política” e a um modelo “técnico-político” de vigilância pela
neutralização prévia da vontade e pelo aprimoramento dos movimentos,
eliminando-se os tempos e os espaços supérfluos até se chegar ao ótimo, à
“eficácia dos movimentos”, até se atingir o binômio “docilidade-utilidade”. É o
que se vê nos quartéis, mas também nas fábricas, nas escolas, em muitos
colégios secundários, nos hospitais (nestes se incluem um modelo duplo de
vigilância: sobre os funcionários e sobre os doentes) e em quase todos os
segmentos organizados sobre a égide impessoal dos papéis desempenhados por cada
um, e nada mais que isso.
Vive-se
numa sociedade marcada pela passividade intelectual e levada a comportamentos
individuais e coletivos gerados por uma motivação já internalizada pela via da
comunicação de massas, isto sem muita dificuldade. É a massa estupidificada,
que caminha ordeiramente dentro dos supermercados recolhendo os produtos enfileirados
mediante critérios minuciosos de incitação ao consumo (compra-se mais o que
está à altura das vistas, por exemplo) enquanto as pessoas são vigiadas por
câmeras ocultas. Muitos vigiados por um, o panoptismo contemporâneo inserido
definitivamente nos espíritos de todos que agem automaticamente sem o
perceberem. Tudo invenção humana, artifícios de poder, práticas sociais tão
previsíveis que permitem a certeza de que uma multidão exacerbada dentro de um
estádio de futebol sairá dele ordeiramente, em filas monstruosas, numa
tranqüilidade de fim de jogo incrível; ou se coloca no patamar da estação do
metrô num certo grau de civilidade ajustada ao momento que chega a
impressionar.
Assim
é o mundo de hoje, construído ontem e aprimorado à perfeição do anonimato
consentido, da indiferença e do manuseio político a ponto de rapidamente
transformar uma aglomeração em turbamulta, e vice-versa, dependendo de quem a
comanda ou de qual motivação a impele para um lado ou para outro. Pois assim
anda-se nas ruas, atravessa-as em sinais no momento da cor verde ou pára na
vermelha, entra-se nas filas de elevadores, de bancos, de loterias, enfim, uma
“sociedade organizada” sem que nenhuma lei esteja impingindo ninguém a se
comportar como autômato. Mas há os regulamentos, os conjuntos de normas
escritas ou não que antes foram impostas de alguma maneira às pessoas e desde a
primeira idade até à última, em que velhos ocupam o seu tempo ensinando às
crianças e aos jovens as práticas sociais decoradas, práticas de massa popular
transformada em corpos submissos. E, como alerta o autor, não se trata de
domesticidade, ou de vassalidade, o cumprimento espontâneo dessas “marcas
rituais da obediência” ou “fórmulas gerais de dominação” cujo aprimoramento
remonta aos séculos XVII e XVIII, mas que já vêm de muito antes no tempo. O
autor se refere ainda à “militarização insidiosa das grandes oficinas” para
demonstrar o poder da disciplina sobre os corpos: “A disciplina fabrica assim
corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A disciplina aumenta as
forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas
forças (em termos políticos de docilidade)”. É ainda o que designa como
“microfísica do poder” em que o detalhe é importante e a minúcia,
indispensável.
Os
regulamentos (conjuntos de normas) e as normas isoladas vão assim instituindo
suas fronteiras em relação às leis, que apenas servem de ameaças futuras
enquanto as normas predominam como imposições presentes e aprendidas. Esta é a
cultura da sociedade de papéis, esta é a sociedade em que os indivíduos dela
participam como autônomos, agem por imitação e muitos nunca o percebem. Vivem
num espaço disciplinado e repartido, seguem trilhas e vivem em quadras
delimitadas segundo interesses dos poderes que pensam serem seus. Ou, como
afirmou Foucault, as pessoas vivem “distribuídas”, suas atividades são
controladas, suas forças são militarmente compostas visando ao máximo da
eficiência, enquanto nas escolas e universidades os olhos dos bedéis vigiam, ou
os olhos da palmatória se voltam ameaçadoramente à turma enquanto o professor
está de costas escrevendo na pedra.
Há,
enfim, todo um ritual de adestramento através do exercício da disciplina e das
ameaças de coerção individual, o que vai aproximando as escolas das prisões,
estas em que os condenados são adestrados para um possível retorno ao meio da
massa de onde foram excluídos pelas leis criminais. A lei os alcançara antes,
sim, mas normas de convivência carcerária ainda desdobrariam a punição legal em
punição normativa. Para isso há de haver vigilância, uma função que se observa
nas prisões, nas fábricas, nas escolas, nos quartéis e nas ruas... Tudo com
base numa “sanção normalizadora”, dentro da ótica de que nem tudo que é legal é
normal, e que por isso precisa de controle, uma decisão, é claro, sempre ao
nível daqueles que detêm o poder político. Antes era o soberano, agora é o
político que “representa” o povo.
E,
como alerta o autor, “a disciplina traz consigo uma maneira específica de
punir, que é um modelo reduzido de tribunal”, mas a ordem é imposta, é tão
artificial quanto aquela alcançada pelas leis. Predomina no modelo de sanção
normalizadora um sistema duplo de sanção-gratificação, castigo e recompensa
correndo paralelamente na vida das pessoas, procedimentos nem sempre escritos,
porém cumpridos à risca. E através da disciplina é que, segundo Foucault,
aparece o poder da Norma, diferenciada da penalidade judiciária, partindo-se do
pressuposto que a disciplina é uma técnica, e ela é que fez funcionar os “novos
mecanismos de sanção normalizadora”.
Seguindo
o raciocínio da disciplina surge o Exame, importante ingrediente das relações
poder-saber. Segundo Foucault, “o exame combina as técnicas da hierarquia que
vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância
que permite qualificar, classificar e punir”. Por isso, e ainda segundo o
autor, “o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia de
poder e a forma da experiência, a demonstração da força e estabelecimento da
verdade”. É, enfim, o corpo visto como um objeto. Demais, o exame é “a técnica
pela qual o poder, em vez de emitir sinais de seu poderio, em vez de impor sua
marca a seus súditos, capta-os num mecanismo de objetivação”. Mas tudo é
documentado, registrado cronologicamente, individualizado, tanto a papeleta de
controle do doente como a ficha disciplinar do militar ou do colegial contendo
anotações de acordo com regras minuciosas que “faz de cada indivíduo um caso”.
A
idéia do exame leva naturalmente à do panoptismo, já comentado, um modelo
arquitetural proposto por Bentham (referido por Foucault), e que consiste na
estratégia de um vigiar muitas pessoas sem que estas possam verificar se estão
ou não sendo vigiadas. Sempre concluirão que sim, mesmo que não o estejam. A
torre central de onde as pessoas são espionadas é o símbolo do poder e de saber
sobre elas. O poder se torna visível, eis que simbolizado pela torre, enquanto
que o saber permanece invisível aos olhos dos corpos objetos do exame. Como
assegurou o autor, “o Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de
poder”. As câmeras de um Shopping Center e a oculta sala de manjamento
(“Sorria, você está sendo filmado!”) não representam um Panóptico atual? Sim, o
modelo serve perfeitamente para muitas finalidades, principalmente para
imprimir um certo ar de mistério ao poder, cuja visibilidade por inferência de
sua materialidade indiretamente mostrada valoriza-o, protege-o, e assusta as
pessoas, colocando-as submissas, o que de certa forma indefere o modelo
original da torre com o vigia que vê as pessoas confinadas ao seu redor, mas é
visto pela sociedade, ou seja, tem o seu “exercício de poder controlável pela
sociedade inteira”. Mas, tanto ontem como hoje, trata-se de um esquema
econômico de vigilância e poder facilitando sobremodo a vigência dos mecanismos
disciplinares.
Esses
mecanismos de disciplina, por sinal, se foram estatizando e sendo ocupados
pelos sistemas policiais, expressão mais direta do poder do soberano no passado
e do Estado no presente. E a idéia de polícia leva a uma outra: a de que o
poder policial deva ser onipresente e onisciente, pois a polícia tem de saber
de tudo. Foucault vai ao passado e traz ao presente a idéia do controle
policial inteiro “na mão do rei” e a idéia da infrapenalidade, da desordem, da
agitação, da desobediência, do mau comportamento, o que, segundo o autor,
referindo-se a Ledoux, seriam “delitos de falta de vigilância”. E a polícia,
como “auxiliar da justiça”, parte para sua função disciplinadora e garante
pelas armas “a disciplina intersticial, a metadisciplina”: “O soberano, com uma
polícia disciplinada, acostuma o povo à ordem e à obediência”. Assim é que a
polícia “excedia o exercício da justiça regulamentada”, até porque, “bem melhor
que a instituição judiciária, ela se identifica, por sua extensão e seus
mecanismos, com a sociedade de tipo disciplinar”. Em suma, a disciplina é um
tipo de poder tão relevante que teria de ficar a cargo de instituições
especializadas e estatais, embora também aplicada em instituições particulares
e, às vezes, com maior zelo. Mas, nas ruas e logradouros, é a polícia que “faz
reinar a disciplina na escala de uma sociedade”. O princípio panóptico, de
inolvidável talento arquitetural, é um “acontecimento na história do espírito
humano”, pois reverteu uma civilização de espetáculos e suplícios para uma
sociedade de vigilância.
2.0
– 2ª Questão: segundo o texto de François Ewald, quais as principais
contribuições das análises de Michel Foucault para a Norma e o Direito?
2.1
– Resposta
Como
informou Michel Foucault na sua terceira conferência gravada no livro A Verdade e as Formas Jurídicas, a forma mais “arcaica” de disputa
entre dois seres isolados é encontrada em Homero e consistia em desafio mútuo
sob a forma de juramento aos deuses. Assim, cada qual avaliava os riscos de
contrariar os mandatários “sobrenaturais” e decidia recuar ou se manter na
posição original. Depois vem a forma igualmente narrada pelo filósofo ao se
reportar ao Édipo-rei, apontando o surgimento de duas novas figuras além
dos deuses, representados pelos oráculos: o adivinho e a testemunha (nesta
história, duas: o escravo e o pastor). Não é o caso de aqui aprofundar, eis que
é tema da questão seguinte. Mas foi devido a esses “jogos da verdade” e de
muitas lutas e contestações políticas que emergiram os primeiros fundamentos
jurídicos de busca da verdade, que o autor designou por “descoberta
judiciária”, ou seja, os primeiros passos do Direito.
Parece
ser de boa monta revolver o passado longínquo e voltar aos tempos dos duelos,
da lei do mais forte, das vinditas individuais ou familiares. Não se pode falar
em Direito na sua acepção ampla, nem em punição, mas tem validade comentar
sobre a primeira figura que surgiu em substituição aos duelos isolados e do
temor de mentir perante os deuses. A evolução da sociedade fez surgir uma
espécie de desempatador, que desempenharia aquele papel do Édipo-rei,
como um “juiz” particular. Esse terceiro personagem era escolhido por consenso
das partes em conflito, logicamente gozando de autoridade moral sobre ambas, de
modo a cumprir uma função de juiz do conflito cuja pena era geralmente
traduzida por pagamento em riquezas materiais. Dada a decisão, a parte vencida
indenizava a vítima.
Mas o poder dominante,
porém, logo cuidou de inventar uma nova prática jurídica, um meio de o soberano
se situar como “vítima”, e assim receber o seu quinhão do perdedor, pois o
desempate daqueles conflitos foi se tornando oficializado. E aqueles litígios
entre particulares se foram transformando em infração, não mais dano causado
contra o desafeto, mas contra o poder do soberano. Pois logo surgiu mais um
personagem para defender os interesses da vítima, e, logicamente, do soberano,
agora tratado como “vítima” juntamente com o lesado: o procurador. A respeito
deste, basta uma referência feita pelo filósofo: “Há ainda uma última
descoberta, uma última invenção tão diabólica quanto a do procurador e da
infração: o Estado ou melhor, o soberano (já não se pode falar de Estado nessa
época) é não somente a parte lesada, mas a que exige reparação”. Aqui emerge,
na verdade, uma espécie de poder judiciário e de poder político.
Observa-se que o poder
político representado pelo absolutismo foi inventando conhecimentos “jurídicos”
a partir de conflitos que surgiam no meio do povo e moldando novas soluções por
meio de mecanismos usurpadores do que seriam os direitos naturais daquele povo,
porém nem sempre solucionados sem sangue. Nesta época já também evidenciavam os
primeiros indícios do “flagrante delito”, situações em que o próprio povo se
via conduzindo os infratores à presença do soberano ou de seu representante. E
na Idade Média, por influência eclesiástica, o inquérito já era usado pelo
procurador do rei nos casos dos tais flagrantes delitos. E esse inquérito vem
ressurgir muito tempo depois de caído no esquecimento, mas agora como um
autêntico meio de o poder se exercer sobre as pessoas examinadas por essa via
inquisitorial.
Foucault informa, numa
de suas conferências, ter havido “por volta do século XII, uma curiosa
conjunção entre a lesão à lei e a falta religiosa. Lesar o soberano e cometer
um pecado são duas coisas que começam a se reunir. Elas estarão unidas
profundamente no Direito Clássico. Dessa conjunção ainda não estamos totalmente
livres”. Eis, emergindo em hora certa, a crítica ao Direito na sua origem; e
trazida ao mundo contemporâneo com a sutileza do sábio que sabe instigar sem
ofender, que sabe provocar sem se alterar. Um filósofo, somente um filósofo
grandioso conseguiria esta proeza, pois, na verdade, o mesmo inquérito ainda
permeia na atualidade, especialmente aqui no Brasil, e guardando suas
características anacrônicas e misteriosas de instrumento de poder hoje
dispensável, forma de saber ultrapassada, porém insistente e tão inconfessável
como em muitos exemplos de outrora, apesar de ter sido empiricamente utilizado
por algumas ciências em evolução.
O foco do Direito para
Foucault, e diante da extenuante pesquisa que ele fez, está na inegável
realidade de que tudo não passou de invenção humana, de artificialismos convenientes
e de ajustes astutos e interesseiros das elites dominantes em detrimento das
massas populares. Os julgamentos secretos, abomináveis, as penas de suplício e
muitas outras, sempre a excluir da apreciação infrações praticadas pelos mais
abastados, foram práticas sociais, políticas e jurídicas predominantes ao longo
dos tempos, nada mais que teratogenias decorrentes de “conjunções” como aquelas
denunciadas por Foucault. Mas, como todo “dever ser” tem limites, permaneceu
uma lacuna histórica na convivência humana, traduzida por multifacetados e
originais conflitos que nunca poderiam ser predeterminados como infrações a
serem punidas depois. Seriam elas o “ser”, a parte inalcançável pela lei
escrita, mas que teriam de ser administradas. Daí é que a própria sociedade
também cuidou de inventar meios e modos de se proteger dos desvios não
alcançados pelo poder judiciário, este que, sem dúvida, visava apenas aos menos
favorecidos. Por isso foram surgindo os grupos organizados no seio do povo e
com a incumbência de coibir infrações do próprio povo, porém através de
mecanismos extralegais de vigília e ensinamentos. Daí é que surgiram os
Regulamentos (corpo de normas) para disciplinar o “ser” da sociedade não
alcançado pelo “dever ser” da formalidade jurídico-legal.
Neste vasto campo do
“ser”, as Normas se foram insidiosamente inserindo e consolidando entre os
indivíduos e grupos organizados muitas vezes sob o pretexto de que tais
providências de controle de comportamento evitavam que a plebe fosse, enfim,
alcançada pela lei dos burgueses. Mas o que foi acertando na prática do
particular se foi tornando estatal, instituindo-se, assim, um estupendo corpo
de Normas que, antes do Direito, já vigiava e punia os antivalores por conta de
valores estabelecidos no seio da sociedade, aqui se incluindo o interesse
mercantilista dos burgueses, predominante a partir do século XVII. Assim o
“homem-limite” passou a ser alcançado pelas Normas e punido até com muito mais
rigor, posto ser este o espírito das instituições disciplinares: “normalizar”.
A Norma, pois, se opõe à
penalidade judiciária (corpo de leis e de texto escritos que se supõe
previamente conhecidos pelas pessoas com o fim de não violá-lo). Surge a
penalidade da Norma em oposição à penalidade da lei, mas ambas, todavia, se
completando em seu sentido unívoco: vigiar e punir. Daí é que as técnicas
disciplinares se foram aprimorando desmedidamente, e de acordo com os
interesses econômicos dos burgueses, até emergir embutida em regulamentos
meticulosos e cirúrgicos sempre adaptáveis a um novo momento de necessidade do
poder e de educação estandardizada. Porque a Norma, antes de tudo, buscava a
perfeição das pessoas pelo ensinamento e pela coerção, em último caso, ou mesmo
em primeiro, caso se exigisse um treinamento tão rigoroso quanto o dos
militares para o alcance genérico do binômio: docilidade-utilidade.
Enfim,
tanto a Norma como o Direito não passaram de invenções humanas que se foram
acumulando e aprimorando em teratogenias tais que dificilmente evoluirão de
modo diferente no futuro. Acordar a sociedade mundial para reverter esta grave
questão seria mudar o eixo cultural do mundo, seria reverter toda uma cultura
através de uma contracultura ainda talvez situada no patamar do incrível. Mas
isto não impede de se aprofundar no problema, como fê-lo Foucault. Mas como
disse François Ewald: “A experiência dos direitos do homem, o sentimento de que
convém encontrar um princípio de limitação a uma inflação legislativa e
regulamentar, cujo incessante desenvolvimento se pode lamentar que não produza
uma espécie de auto-anulação, reclamam hoje uma filosofia do direito que
contenha uma capacidade de avaliação das práticas jurídicas na perspectiva da
sua juridicidade. É, precisamente, esta capacidade, compreendemo-la já, que é
oferecida pela aplicação do método de Foucault ao direito”.
Aponta
em seguida o estudioso François Ewald para um alvo deveras interessante, quando
ele denuncia o que denomina por “Paradoxo do direito social: constituído para
limitar a lei, eis que dava todo o poder, um poder ilimitado, ao legislador,
incompatível com a própria idéia do direito”. Mesmo assim, porém, ele defende
os princípios gerais do direito como a “primeira função de assegurar a
continuidade e a estabilidade da ordem jurídica”, ainda aludindo a que “os
princípios gerais do direito desempenham um papel homogeneizador no próprio
seio do sistema jurídico (...). Numa palavra, a prática dos princípios gerais
do direito equivale a fazer da história do direito, da sedimentação jurídica,
logo, da própria positividade do direito, uma fonte do direito”. Continuando
nesta linha de defesa de uma alternativa atualizada e socialmente válida,
François Ewald cita Hans Kelsen e diz: “(...). A prática dos princípios gerais
do direito (...) testemunha a possibilidade de um juízo interno de uma ordem
jurídica sobre si própria, de uma relação de si consigo próprio do direito
puramente positivo que não passa nem pela invocação de um direito natural, nem
pelo recurso a uma idéia de justiça”. E assim, finalmente, assegura ser
possível a existência de “um direito do direito”. Talvez um direito pairando
sobre o outro?
Bem,
François Ewald, por fim, reclama que: “Do mesmo modo, é tão errado como
perigoso ver na história a ameaça à existência do direito. A história é, pelo
contrário, aquilo em referência a que adquire, hoje, a possibilidade do
direito. Se temos um direito é porque temos uma história”. Ainda afirma que:
“Os princípios gerais do direito propõem uma dessas práticas a propósito das
quais Foucault gostava de reflectir. Em primeiro lugar, porque ela
manifesta a existência de algo que um
pensamento abstracto designava como impossível”.
Ora
bem, não se pode negar que o Poder de Polícia de hoje (entendido como o poder
de punir em nome da norma ou até de uma incrível subjetividade), – que nada
mais representa do que uma técnica disciplinar tão bem denunciada por Foucault,
talvez ainda mais aprofundada à medida que é um poder discricionário,
auto-executório e coercitivo, mesmo não escrito, – esse Poder de Polícia
esbarra nos direitos e garantias individuais prescritos na Carta Magna. Mas, na
prática, raramente é alcançado pela lei penal o abuso de poder praticado pela
polícia em nome de uma ordem pública muitas vezes abstrata, ou de uma desordem
de idêntica percepção. E, mesmo que restrito ao agente público, o Poder de
Polícia, que em outras palavras significa o poder de vigiar e punir, é
largamente praticado pela sociedade, pelo particular, para assim manter o poder
sobre as pessoas desde a tenra infância. A própria lei que coíbe o abuso de
poder de agentes públicos (o particular não é alcançado por essa lei) é fraca, não intimida coisíssima nenhuma
nem ninguém. A violência contra as pessoas continua permeando no seio da
sociedade como uma espécie de “vício do cachimbo”. Porque é certo que essa
cultura antijurídica e anti-social denunciada por Foucault não será tão
facilmente derrotada. Por enquanto, e como admite o próprio François Ewald, o
filósofo Foucault apenas historiou o problema, muito embora o tenha feito de
forma magistral e quiçá insuperável. Falta o caminho seguinte a ser percorrido,
mas agora levando em conta a globalização e a existência de um grupo de países
opressores, pela via do poder de sempre: econômico e das armas, ambos pairando
como a maior de todas as ameaças na história das relações de poder da
atualidade.
3.0
– 3ª Questão: Partindo do texto de Michel Foucault abaixo desenvolva duas
questões concernentes ao Nascimento das Formas Jurídicas:
“...
O adivinho não diz exatamente a Édipo: Foste tu quem o matou”. Ele diz:
“Prometeste banir aquele que tivesse matado; ordeno que cumpras teu voto e
expulses a ti mesmo”. Do mesmo modo, Apolo disse: “Se quiseres que a peste
acabe, é preciso lavar a conspurcação”. Tudo isso foi dito na forma do futuro,
da prescrição, da predição; nada se refere à atualidade do presente; nada é
apontado.
Temos
toda a verdade, mas na forma prescritiva e profética que é característica ao
mesmo tempo do oráculo e do adivinho. A esta verdade que, de certa forma é
completa, total, em que tudo foi dito, falta entretanto alguma coisa que é a
dimensão do presente, da atualidade, da designação de alguém. Falta o
testemunho do que realmente se passou.”
FOUCAULT,
Michel. A Verdade e as formas jurídicas. NAU/PUC-RIO, 1996, p.35.
3.1–
Qual o papel que desempenhava para os gregos um homem como Tirésias em sua
relação com os deuses e o sagrado na Grécia Arcaica?
3.2
– Por que o testemunho foi de grande importância para o nascimento das formas
jurídicas?
3.3 – Resposta
Deve-se
imediatamente concluir, antes de se inferir sobre o texto sublinhado, a
intenção de Foucault ao trazer à luz do conhecimento leigo a idéia da ruptura
da dicotomia “saber-poder” como forma de democratizar a vida humana, indo,
pois, além da mera apresentação da evolução de uma contracultura voltada para
os princípios democráticos da convivência em sociedade.
Em
sua primeira conferência sobre a verdade, da série de cinco que pronunciou na
PUC do Rio de Janeiro, o filósofo clareou a primeira grande ruptura proposta
pelo pensador alemão Nietzsche, baseada no fato de que o conhecimento é efeito
do instinto humano, é resultante da luta entre os instintos ou de seu
apaziguamento, ou seja, como ele mesmo apontou, o conhecimento “traduz um certo
estado de tensão ou de um apaziguamento entre os instintos”. E, conforme esta
percepção, e na contramão das ideologias marxista e kantista, o filósofo alemão
decide em suas teorias que nada tem origem, que tudo é inventado (religião, ideal, poesia etc.) e que
até o próprio conhecimento é inventado. O conferencista conduz-se em
concordância plena com Nietzsche, enfatizando que: “Se não existe mais
relação entre o conhecimento e as coisas a conhecer, se a relação entre o
conhecimento e as coisas conhecidas é arbitrária, de poder e de violência, a
existência de Deus não é mais indispensável no centro do sistema de
conhecimento.”
Percebe-se
a nítida influência de Nietzsche sobre Foucault, especialmente quanto a
desmitificação do conhecimento e sua visão para o fato de que “se há somente
ruptura, das relações de dominação e subserviência, relações de poder,
desaparece então, não mais Deus, mas o sujeito em sua unidade e soberania”.
Percebe-se
que o pensador, sempre concordando com Nietzsche, vai direcionando o seu
raciocínio ainda aberto para o foco único da dicotomia “saber-poder”, de modo a
propor sua ruptura e, assim, romper os grilhões da tirania, vista como forma de
detenção do poder político através da luta entre homens que se odeiam porque
pretendem o saber apenas para alcançar ou manter o poder.
Michel
Foucault não nega, ao contrário assume que tomou o texto de Nietzsche “em
função de meus interesses”, para finalmente apresentar um “modelo para uma
análise histórica do que eu chamaria a política da verdade”, fugindo da idéia
de que o saber “nasceu das práticas sociais, das práticas sociais do controle e
da vigilância”, assim defendendo a necessidade de exclusão da “preeminência de
um sujeito de conhecimento dado definitivamente”, importante ponto que o
filósofo chamou de “um dos primeiros eixos de pesquisa”, esta que se encaminhou
para o sentido inverso à idéia do saber estabelecido como norma e sem liberdade
de evoluir para a linha do conhecimento como um efeito de uma “política da
verdade”. Deste modo, buscou Foucault a crítica a Descartes, sem muito penetrar
em seu discurso e muito menos no de Platão, quando se referiu à filosofia
ocidental, que, segundo ele, “sempre caracterizou o conhecimento pelo
logocentrismo, pela semelhança, pela adequação, pela beatitude, pela unidade”.
Entende-se
a preocupação do filósofo em preparar os assistentes para a linha de raciocínio
seguinte, abominando as formas arcaicas de práticas sociais que ele chamou de
“formas ou tipos de regulamento judiciário, de litígio, de contestação ou de
disputa presentes na civilização grega”. De modo que, em se referindo àquela
mais rudimentar forma de litígio, lembrou os duelos em que os contendores se
desafiavam a burlar os deuses para sustentar o que lhes interessavam ser a
verdade. Segundo se sabe, a gravidade de se mentir aos deuses era tão tamanhona
que raramente alguém se encorajava fazê-lo, prevalecendo, pois, a verdade pela
confissão de culpa daquele que apenas guardava em si a mentira.
Esta
visão restrita do poder das divindades, – que sustentavam a verdade e os
reinados e os tiranos, – foi dando lugar, aos poucos, a outra modalidade de
resolução de litígios, na qual se abriu a participação, antes apenas dos
oráculos, aos adivinhos e, finalmente, ao testemunho, um tripé muito bem
retratado na alegoria de Sófocles trazida à luz por Foucault até o ponto de
enfeixar seu raciocínio contrário aos regimes de tirania e favorável à
democracia, o melhor caminho para a busca livre e desimpedida do saber.
O
professor salienta um trecho da segunda conferência de Foucault para em seguida
determinar duas indagações, A primeira é sobre “qual o papel que desempenhava
para os gregos um homem como Tirésias em sua relação com os deuses e o sagrado
na Grécia Arcaica?”. Ora bem, pelo que informa o filósofo, Tirésias, o “divino
adivinho” é o “duplo humano do deus Apolo, ou seja, seu complemento terreno, a
metade da verdade divina”. Interessante como o instinto humano foi formando seu
saber, transmudando-o da pura divindade, como fonte única da verdade, para o
seu complemento terreno, todavia associado aos deuses. Não fora assim, talvez a
humanidade estivesse ainda naquela fase mais rudimentar de busca da verdade.
Mas a idéia de luz e sombra, de Apolo, – o “deus do sol”, – e do mortal
Tirésias, – “metade de sombra da verdade divina” –, cego e mergulhado na noite,
porém com o poder de predizer o futuro, assim complementando a prescrição do
“deus luz”, trouxe, de certa maneira, o irreal para o real, o céu distante para
o chão. Mas o maior de todos os trunfos ainda estaria por vir, e seria o
“testemunho”, ou, como disse Foucault, “a dimensão do presente, da atualidade,
da designação de alguém”. Ou ainda: “Precisamos agora do presente e do
testemunho do passado”.
Tornando
ao texto sugerido pelo professor, a predição de Trésias, dita de modo indireto,
como uma alegoria específica, indica o seu poder de vaticinar, ou seja, de
acertar o futuro através do seu poder de “homem divino” possuidor de faculdades
divinatórias, portanto, incontestável. Não é o caso, creio, de apontar as
imperfeições do modelo proposto por Sófocles em sua alegoria edipiana, mas que,
na verdade, acontecia na realidade, o que permite supor falhas estupendas em
vista da argúcia e da maldade humanas. Basta, pois, conceber a idéia de futuro
e de poder divinal, algo que interferia diretamente na estrutura de poder na
época em que assim funcionavam as práticas sociais. Porque é certo que os
soberanos, reis ou tiranos, ou plebeus, criam em deuses e no sobrenatural, o
que fez o instinto humano buscar suas saídas pelas mesmas vias.
Quanto
à prescrição de Apolo, o “deus luz”, esta era uma verdade futura
inquestionável, porque é certo que os deuses, por meio dos oráculos, não
prediziam o futuro, mas garantiam-no previamente e sem qualquer possibilidade
de erro. Daí é que Sófocles, em estrita obediência à lógica das práticas
sociais, inseriu como verdades absolutas a predição do adivinho Tirésias e a
prescrição de Apolo, para depois fortalecer o testemunho humano que viria a
confirmar a posição do oráculo e do adivinho. Eis, pois, o ponto cruciante da
história de Édipo, não apenas vista com as limitações instintivas propostas por
Freud, mas iluminadas por Deluze e Guartari para um entendimento muito além do
que sugeriu o psicanalista e indicando as relações de poder que a história de
Sófocles descortina, como sugere Foucault: “A tragédia de Édipo é
fundamentalmente o primeiro testemunho que temos das práticas judiciárias
gregas”.
Na
verdade, Édipo representa um modelo de poder político fundado na mais pura
tirania. Só que, restrito à ótica divinal, esse poder seria intocável, eis que
oriundo dos deuses. Mas a trama concebida pelo filósofo deixou para o fim uma
emboscada perfeita em que o grande valor seria, enfim, o testemunho de um
plebeu, e ainda mais: de um escravo. Assim o todo-poderoso soberano se viu desnudado
diante daquele que viu e pôde narrar posteriormente o que viu e que era
compatível com a verdade prescrita pelo deus Apolo e vaticinada por Tirésias.
Ao colocar na boca de um pastor e de um escravo o passado e trazê-lo ao
presente, Sófocles materializou o futuro ligado ao sobrenatural. E instituiu,
sem dúvida, com a derrocada de Édipo pela construção do testemunho humano e
simples naquele contexto por ele dramatizado. Essa prova da verdade Foucault a
designou como “estranho jogo de metades”, para depois afirmar que o ciclo da
verdade “se fechou por uma série de encaixes de metades”.
Eis
plenamente respondidas, em seqüência, as terceira e quarta questões, porque até
hoje as formas jurídicas não dispensam o testemunho, com a ressalva de que não
se fala aqui de falsos testemunhos, mas daqueles que servem de prova num
contexto mais complexo de outras metades que se irão a ela juntar até alcançar
a verdade. E a importância dessas formas jurídicas baseadas no testemunho, em
contraposição ao poder político de natureza despótica, é ainda hoje uma forma
de romper a velha idéia de que a sabedoria está com os poderosos ou com os
“deuses”. Como encerrou Foucault em sua segunda conferência, “onde se encontra
saber e ciência em sua verdade pura, não pode mais haver poder político”. E
enaltecendo Nietzsche, complementou com o alerta de que “por trás de todo
saber, de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder
político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber”.
4.0 – Conclusão
“A
civilização é crosta fina e precária formada pela personalidade e a vontade de
uns poucos, mantida apenas por normas e convenções habilmente impostas e
astutamente preservadas.”.
{Maynard Keynes, citado por John Gray (4)
}
Eis
o que poderia ser chamado de paragem filosófica, pois o mestre Foucault sugere
que a dicotomia “poder-saber” está longe de ser rompida, muito embora se possa
aqui dizer, em rápida digressão e um certo romantismo, que em muitos casos de
dominação houve a “conversão dos vencedores à crença dos subjugados” (5).
Porém, o poder é o ponto crucial das práticas sociais, e é buscado muito mais
até que o saber. E o saber não pode deixar de ser considerado uma perigosa arma
quando restrito a alguns ou a apenas um, como sugeriu arrogantemente Édipo-rei
ao decifrar o “enigma da esfinge”, ou seja, quase se considerando um deus. E
aqui está o “decifra-me ou te devoro” contemporâneo, pois a subjetividade e a
complexidade do tema não permitem apontar nenhuma solução, o que não chega a ser
desmerecedor, pois, afinal, não é à toa que existiram no mundo muitas correntes
filosóficas e seguidores que nada concluem em favor de uma civilização melhor.
Mas há uma forte corrente no sentido de que esta civilização nada tem de
natural, ou, como afirmou Voltaire nas suas Anotações (6): “À massa ignara
pouco importa se lhe damos erros ou verdades para acreditar, sabedoria ou
loucura; ela seguirá uma e outra coisa igualmente, pois não passa de uma
máquina cega.”
Eis a realidade de poder
denunciada por Foucault. Decifrar, pois, diante de tantas controvérsias, o
“enigma da esfinge de Tebas” pela via do estudo de Foucault, não é tarefa
simples, o que ainda se pode deduzir das indagações feitas por diversas
personalidades brasileiras presentes ao ciclo de conferências do filósofo
promovido pela PUC/RJ em 1973. Após cinco dias ouvindo o mestre, alguns não o
conseguiram entender, pelo que se depreende dos diálogos. Na verdade, talvez
fossem eles apenas mestres da retórica, e não, do conhecimento. Afinal, trata-se
de conhecimento complexo, e que por isso exige reflexão complexa. É o que se
tentou fazer aqui, porém com o cuidado de apresentar muito mais uma descrição
do problema como melhor resposta ao questionamento do professor. Pois há coisas
difíceis de compreender e ainda mais difíceis de explicar, especialmente quando
falta a profundidade do conhecimento, se é que isto é importante, mesmo, que se
conheça algo antes de se expor. No fim de contas, essas respostas correm o
risco de traduzir somente estereótipos de um saber imposto pelo poder que vem
de longe vigiando e punindo.
5.0
– Bibliografia
1.
EWALD,
François. Foucault a Norma e o
Direito. Tradução de
Antônio Fernando Cascais. Vega ltda. 1ª ed., Lisboa, 1993.
2.
Foucault, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. NAU Editora. PUC/RJ. Rio de janeiro, 1984.
3. Foucault,
Michel. Vigiar e Punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Editora
Vozes, 24ª edição, Petrópolis, 2001.
4. Gray, John. Coleção
Grandes Filósofos. Voltaire e o Iluminismo.
Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. Editora UNESP. São Paulo, 1999.
5. Herculano,
Alexandre. Eurico, o Presbítero. Editora Três – Livros e Fascículos, São Paulo, 1984.
6. Gray,
John. Coleção Grandes
Filósofos. Voltaire e o Iluminismo.
Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. Editora UNESP. São Paulo, 1999.
2 comentários:
Neste último final de semana, após ver estampado nos jornais a notícia da exclusão desses PMs, comentei sobre o assunto com alguns colegas de trabalho. Ressaltei que a despeito da necessidade de se cortar na própria carne, não havia a necessidade da execração pública, por sinal a maioria sargentos. Asseverei que desvios de conduta existem em quase tudo que é lugar, aliás nunca se ouviu tanta notícia de corrupção como nos tempos atuais. Que casos, muitos deles gravíssimos, logo são abafados, não se fala mais e logo caem no esquecimento geral e o motivo desse tratamento diferenciado todo mundo sabe qual é. Como diz o ilustre Cel Jorge da Silva, "joguem pedra na Geni" mas esta de que vos falo, não foi feita para apanhar nem para ser cuspida, porém pelo que denota ela gosta de ser tratada assim.
Para terminar, gostaria de dizer que conheço alguns ex PMs que não se abateram com a exclusão, deram a volta por cima, acertaram o passo e hoje são excelentes cidadãos, respeitados e admirados até. Aos 43 excluídos, gostaria de aconselhar que façam o mesmo...
A pmerj deveria ser comandada por om verde oliva. Ao meu ver oficiais pm nao aprenderam a liçao. Até no exercito roupa suja é lavada en casa.
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