sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

“Que calor!”



O mestre Machado de Assis nos ensinou a escrever uma crônica a partir dum pequeno detalhe, quase nada, porém capaz de despertar o interesse do leitor no sentido de continuar a leitura até o ponto final. Tinha ele razão, e imagine que na época dele vestia-se casaca e cartola e era comum o guarda-sol, sem falar na poeira das ruas de chão. Quanto a essas ruas e à poeira, creio ser hoje pior, pois do asfalto levanta-se a fuligem contaminada, parte dela visível. Mas pior é a invisível que penetra a roupa, a pele e os órgãos internos. Sofrem bastante os olhos e os pulmões, por mais que os filtros naturais tentem evitar a contaminação. Sofre também o corpo, que fica sujo, terrivelmente sujo, enquanto tenta expelir pelo suor tantas impurezas. Porém, não é só o calor, que é demais da conta, tão demais que tem até João-de-barro comprando ar refrigerado para suas casinholas. Podem observar para confirmar, se não creem em mim.


Pois não é que ontem, ao caminhar cedinho pelas ruas do condomínio onde resido, meu velho conhecido passarinho, que se chama João, estava a instalar seu moderno aparelho?... O fato me intrigou deveras. E não digo que o vi em dificuldade. Com a mesma facilidade com que o João construiu sua casinha de barro, eu o vi furando-a para enfiar o tubo que liga a parte externa à interna do ar refrigerado.

Obra-mestra, sem dúvida, a casinhola do João e da Joana, patroa dele, união que alcançará o fim dos tempos. Porque eles jamais se separam, e a infidelidade é resolvida com o infiel trancado na casinhola que se torna túmulo, eis que a entrada é vedada pelo traído. Ou pela traída... E ele logo me confessou ter sido ideia de Joana, que surgiu à porta com um ar de quem não aprovara a interrupção do labor em troca da prosa, não era hora de retardar a instalação, o calor estava com ares de inferno já nas primeiríssimas horas da manhã, ponho assim, meio pedantemente, o que não é aconselhável numa crônica. Mas, que fazer com este calor endiabrado a nos desnortear?...

Realmente, apesar de a casinha de barro situar-se voltada para os raios de sol da manhã, garantida a sombra da tarde pelas ramagens do pé de Jamelão, por sinal carregadinho e cheirando longe o adocicado das frutas, mesmo assim o inferno penetrava a casinha, agora suprida com o minúsculo ar refrigerado, que, confesso, não sei onde João o comprou, talvez nas Casas Bahia, que vende o que tem e dá seu jeito para vender o que não tem... Bem, de um modo ou de outro o ar logo funcionou, e o mais interessante que sem qualquer fio ligando-o à rede elétrica.

Intrigado com a questão, indaguei do amigo João como ele faria para gerar a energia e acionar o aparelho. Ele não se fez de rogado e me respondeu: “Ora, quem inventa a história é você, portanto dê seu jeito para explicar aos seus leitores!” Sobrou pra mim, e pensei: “É instalação subterrânea e o fio deve estar subindo por alguma parte oca do tronco.” Só pensei, porque, na verdade, não vi fio algum e não demorou muito para que o ar funcionasse nas minhas atônitas barbas de molho no suor que me descia cabeça e rosto abaixo. Segui em frente na caminhada ruminando a dúvida e excogitando um modo de desvelar o mistério até o dia seguinte. Não o deixaria perdurar, isto eu confesso que jurei de mim para mim...

No dia seguinte, carregando nas algibeiras a pergunta, decidi cobrar do amigo joão-de-barro a resposta. Andei então em direção à árvore e me espantei: a casinhola estava vazia, silenciosa, o casal de passarinhos se fora, deixando para trás a dúvida que carrego ainda hoje. Pois o que me restou foi o curto bilhete do amigo João, preso ao galho, bem perto da forquilha que sustenta a prodigiosa casinha de barro: “Amigo, Joana e eu não mais suportamos o calor. Vendemos nossa casa para um casal de canários-da-terra. Voamos para o Polo Norte!”


2 comentários:

Paulo Xavier disse...

Boa tarde Cel Larangeira.
Aqui onde trabalho atualmente e lá se vão 25 anos, aliás trabalho de teimoso porque aposentado já deveria ter metido o pé como se diz na gíra; voltando ao assunto, aqui onde trabalho se faz amizade com pessoas de várias partes do Brasil e até do exterior e um colega de trabalho natural de Santa Catarina aposentou e voltou para o seu estado natal e tem me ligado constantemente falando da tranquilidade que se é viver naquele estado; lá o custo de vida é menor, inclusive imóveis são mais baratos, a violência é menor, a poluição é menor e o calor também é menor, consequentemente a qualidade de vida é maior. Desconfio que esse casal de joão-de-barro não foi para o Polo Norte, acho que foi para o sul e fixado moradia pelas bandas de Santa Catarina, quem sabe!?

Anônimo disse...

Emir disse:
Conheço Santa Catarina, assim como os demais Estados do Sul (RS e PR). Não parece Brasil, tudo é de melhor qualidade e mais barato, além do clima ameno em boa parte do ano. Mas o casal de joão-de-barro foi mesmo para o Polo Norte porque o João jamais mentiria para mim num bilhete. Nem a Joana permitiria que ele mentisse, pois quem manda é ela. Rs. Abraços.