O mestre Machado de Assis nos ensinou a escrever uma crônica a partir dum
pequeno detalhe, quase nada, porém capaz de despertar o interesse do leitor no
sentido de continuar a leitura até o ponto final. Tinha ele razão, e imagine
que na época dele vestia-se casaca e cartola e era comum o guarda-sol, sem
falar na poeira das ruas de chão. Quanto a essas ruas e à poeira, creio ser
hoje pior, pois do asfalto levanta-se a fuligem contaminada, parte dela
visível. Mas pior é a invisível que penetra a roupa, a pele e os órgãos
internos. Sofrem bastante os olhos e os pulmões, por mais que os filtros
naturais tentem evitar a contaminação. Sofre também o corpo, que fica sujo,
terrivelmente sujo, enquanto tenta expelir pelo suor tantas impurezas. Porém,
não é só o calor, que é demais da conta, tão demais que tem até João-de-barro
comprando ar refrigerado para suas casinholas. Podem observar para confirmar,
se não creem em mim.
Pois não é que ontem, ao caminhar cedinho pelas ruas do condomínio onde
resido, meu velho conhecido passarinho, que se chama João, estava a instalar
seu moderno aparelho?... O fato me intrigou deveras. E não digo que o vi em
dificuldade. Com a mesma facilidade com que o João construiu sua casinha de
barro, eu o vi furando-a para enfiar o tubo que liga a parte externa à interna
do ar refrigerado.
Obra-mestra, sem dúvida, a casinhola do João e da Joana, patroa dele,
união que alcançará o fim dos tempos. Porque eles jamais se separam, e a
infidelidade é resolvida com o infiel trancado na casinhola que se torna túmulo,
eis que a entrada é vedada pelo traído. Ou pela traída... E ele logo me
confessou ter sido ideia de Joana, que surgiu à porta com um ar de quem não
aprovara a interrupção do labor em troca da prosa, não era hora de retardar a
instalação, o calor estava com ares de inferno já nas primeiríssimas horas da
manhã, ponho assim, meio pedantemente, o que não é aconselhável numa crônica.
Mas, que fazer com este calor endiabrado a nos desnortear?...
Realmente, apesar de a casinha de barro situar-se voltada para os raios
de sol da manhã, garantida a sombra da tarde pelas ramagens do pé de Jamelão,
por sinal carregadinho e cheirando longe o adocicado das frutas, mesmo assim o
inferno penetrava a casinha, agora suprida com o minúsculo ar refrigerado, que,
confesso, não sei onde João o comprou, talvez nas Casas Bahia, que vende o que
tem e dá seu jeito para vender o que não tem... Bem, de um modo ou de outro o
ar logo funcionou, e o mais interessante que sem qualquer fio ligando-o à rede
elétrica.
Intrigado com a questão, indaguei do amigo João como ele faria para
gerar a energia e acionar o aparelho. Ele não se fez de rogado e me respondeu:
“Ora, quem inventa a história é você, portanto dê seu jeito para explicar aos
seus leitores!” Sobrou pra mim, e pensei: “É instalação subterrânea e o fio
deve estar subindo por alguma parte oca do tronco.” Só pensei, porque, na
verdade, não vi fio algum e não demorou muito para que o ar funcionasse nas
minhas atônitas barbas de molho no suor que me descia cabeça e rosto abaixo. Segui
em frente na caminhada ruminando a dúvida e excogitando um modo de desvelar o
mistério até o dia seguinte. Não o deixaria perdurar, isto eu confesso que
jurei de mim para mim...
No dia seguinte, carregando nas algibeiras a pergunta, decidi cobrar do
amigo joão-de-barro a resposta. Andei então em direção à árvore e me espantei:
a casinhola estava vazia, silenciosa, o casal de passarinhos se fora, deixando
para trás a dúvida que carrego ainda hoje. Pois o que me restou foi o curto
bilhete do amigo João, preso ao galho, bem perto da forquilha que sustenta a
prodigiosa casinha de barro: “Amigo, Joana e eu não mais suportamos o calor.
Vendemos nossa casa para um casal de canários-da-terra. Voamos para o Polo
Norte!”
2 comentários:
Boa tarde Cel Larangeira.
Aqui onde trabalho atualmente e lá se vão 25 anos, aliás trabalho de teimoso porque aposentado já deveria ter metido o pé como se diz na gíra; voltando ao assunto, aqui onde trabalho se faz amizade com pessoas de várias partes do Brasil e até do exterior e um colega de trabalho natural de Santa Catarina aposentou e voltou para o seu estado natal e tem me ligado constantemente falando da tranquilidade que se é viver naquele estado; lá o custo de vida é menor, inclusive imóveis são mais baratos, a violência é menor, a poluição é menor e o calor também é menor, consequentemente a qualidade de vida é maior. Desconfio que esse casal de joão-de-barro não foi para o Polo Norte, acho que foi para o sul e fixado moradia pelas bandas de Santa Catarina, quem sabe!?
Emir disse:
Conheço Santa Catarina, assim como os demais Estados do Sul (RS e PR). Não parece Brasil, tudo é de melhor qualidade e mais barato, além do clima ameno em boa parte do ano. Mas o casal de joão-de-barro foi mesmo para o Polo Norte porque o João jamais mentiria para mim num bilhete. Nem a Joana permitiria que ele mentisse, pois quem manda é ela. Rs. Abraços.
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