quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

SOBRE A INJUSTIÇA




Tais como luz e treva, justiça e injustiça são ombros do mesmo corpo, são íntimos contrastes que regem a natureza humana, interferem na vida em sociedade e norteiam decisões que afetam direta ou indiretamente a existência cotidiana dos cidadãos. Ocorre que entre cada ponto e seu contraponto existem situações multifacetadas, demandando complexas inferências. Mas estas, que supostamente brotam da razão, são inevitavelmente subjetivas, e nesta subjetividade habitam as emoções. Deduz-se, por conseguinte, que todas as decisões humanas são maculadas na origem. Não sendo assim, estaremos diante de “decisões divinas”, que muitas vezes o ser humano embriagado pelo poder toma para si...

Esta confusa capacidade de discernimento, pelo menos em teoria, pertence unicamente aos humanos. Por isso é que, ao avaliar comportamentos, as sumidades às quais o Estado delega este poder (julgadores e acusadores em geral) não se bastam nas leis e na razão. São, sim, afetadas por emoções. Ademais, muitas leis são decorrentes de errôneas ou maliciosas iniciativas legislativas. Já outras, embora consideradas precisas por seus operadores administrativos, ministeriais e judiciais, dependem de mínima uniformidade de inferência, o que é impossível, as emoções não lhes permitem. Sim, os humanos não são tão hábeis em inferências isentas. Até esta argumentação que ora faço longe está de ser isenta, já que meu escopo é o de influenciar o outro a ponto de fazê-lo concordar comigo. Sim, sim, é este o escopo de quem se comunica, não importando seu objetivo (justo ou injusto).

Daí é que cada interpretação, sempre subjetiva, só pode ser avaliada ou reavaliada mediante interpretações igualmente saídas de espíritos diversos, de caracteres diversos, de crenças e valores diversos. Enfim, todas as inferências se situam entre a luz e a treva sem que ambas (luz e treva) não passem de fade, assim como seus interregnos são incertos porque oscilam tais como as imagens que somem e reaparecem aos nossos olhos fáceis de serem enganados pelos mestres do ilusionismo. E é também como somos enganados por textos e falas eloquentes...

Neste campo de incertezas atuam acusadores e julgadores, sendo certo que os primeiros jamais se situam no âmbito natural da dúvida, antes afirmam categoricamente suas falsas certezas em opiniões formais inalcançáveis pela punição posterior. Que o ser humano é falível, não há de haver dúvida! Mas talvez seus deslizes ocorram por culpa de más leis a lhe exigirem o absurdo de acusar seus semelhantes ultrapassando a concretude dos fatos. Já os julgadores, – devidamente influenciados pelas eloquências acusadoras que lhes vêm às mãos, aos olhos e às mentes como verdades, mesmo que não passem de mentiras, – preferem adotar o comportamento de Pilatos: lavam as mãos em secular publicidade dos seus atos...

Extraindo-se as pompas publicitárias desses especiais grupos com poder de decisão, e se lhes despindo as vestes e lhes retirando os símbolos solenes, sobram-lhes nada mais que fragilidades psíquicas além das necessidades fisiológicas... Daí é que não se lhes pode exigir justiça e equilíbrio como regra nem como exceção. Estão, sim, aptos a acertos e erros endereçados àqueles situados na pior de todas as condições: a de acusados. Por sinal, o único que pode ser vítima da crueldade humana, esta que ignora erros e acertos para atingir seus ignominiosos fins...

Deste modo, o acusado passa de pessoa a coisa, torna-se mero objeto de observação, espécie de árvore a ser ou não decepada por conta de maleável subjetividade. E quando faltam aos acusadores e julgadores argumentos sólidos, por ignorância ou má-fé eles floreiam a acusação e a decisão punitiva com filigranas jurídicas, citações monumentais e inúmeros et ceteras afins a uma irrealidade que se torna real na carcaça do acusado.

Mas que seria realidade?...

Não se sabe. Nem a mais sábia das ciências se arrisca a afirmar que exista alguma. Daí é que emergem muitas formas de afirmar e uma só de negar. E ao lado das infindáveis afirmações postam-se acusadores e julgadores; já ao lado da negação persigna o acusado na esperança divina de não mais sê-lo, já que sua esperança terrena se vê transformada em nada. Como então, – num drama humano de tal extensão e de tão tamanhona gravidade, que não raramente se torna trágico, – como saber quem representa a luz da verdade e quem se oculta na treva da mentira?... Ora, na dúvida há de predominar o poder formal e seu principal tempero, a força bruta, que se poderia resumir ao aforismo: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo.”

É neste ambiente psicológico de usual desrespeito à condição humana que os três personagens de nossa tragicômica peça teatral assim se delimitam: acusador > acusado < julgador. E bailam em par constante a justiça e a injustiça, como luz e treva confundindo-se numa só imagem em distorção quântica. Eis o momento crucial da dúvida, que se desfaz na medida do clamor da plateia que anseia pelo desfecho do foucaultiano “castigo-espetáculo”: a punição. Aqui o julgador se vê numa encruzilhada: atender ao acusador, com ele concordando e punindo o inocente, ou atender ao acusado, inocentando-o. Deste circo de horrores é que emerge a tênue luz traduzida pela indefectível escolha do castigo e do aplauso, destinando-se a treva somente ao acusado. Mas no espírito do julgador se instalará também a treva da injustiça feita, e ele há de se advertir dos seus funestos efeitos, a não ser que seja psicopata, sempre uma forte possibilidade.

Para o ser humano, afinal, vaia é como injeção dolorosa... E entre a dor do apupo pela justiça praticada e o prazer da ovação pela injustiça aplicada, acusadores e julgadores preferirão naturalmente a segunda opção. Sim, entre a luz e a treva, pois, há de predominar a luz a qualquer preço, mesmo que cambiante. Porque, quando compete a alguém esta escolha, seja julgador, seja acusador, ambos correrão em direção à “luz” da injustiça. Já ao acusado restará, por via de consequência, a treva, para onde é lançado sem dó nem piedade. No fim de contas, nela “os gatos são pardos”, nada se enxerga, tudo se confunde. Esperar, pois, que haja a dolorida justiça em vez da cômoda injustiça, é ledo engano! Optar pela dor é como atestar a existência da realidade absoluta, esta que não existe a não ser no conceito e quiçá nem nele. Por isso, talvez, é que Platão tenha dito na sua obra A República e As Leis: “A vida do injusto é muito melhor que a do justo.”

Pondo-se em tudo isto a capacidade de o ser humano influenciar o outro, por um lado, e a tendência deste outro de ser influenciado (pela insidiosa arma da propaganda), tem-se então a injusta distorção da realidade, sempre forjada na medida do interesse do acusador e do julgador, sendo o primeiro adrede isento de responsabilidades, e o segundo ainda passível de receber admoestações superiores, porém não menos subjetivas. E aqui nem se fala em corporativismos... Mas não se trata de negar valor às referidas classes nem pontuar quem quer que seja, e sim constatar o quanto é fácil acusar e julgar. E o pior, mesmo, é ser acusado, ou seja, marisco nesta falsa luta entre o mar e o rochedo...





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