“Sempre
que uma pessoa julga poder cometer impunemente uma injustiça, comete-a.”
(Platão
– A República)
Poucas pessoas
julgam. Muitas são julgadas. Assim funciona a vida humana e social desde o lar,
indo ao extremo das cobranças feitas pelo Estado supostamente em favor da
sociedade que o criou para “protegê-la”. E os julgamentos, quase na sua
totalidade, amparam-se numa força coercitiva qualquer, ou seja, numa
possibilidade de retaliação que se poderá concretizar contra quem é julgado.
Quando uma acusação
é desferida contra alguém capaz de se envergonhar, ela atinge profundamente o
sentimento do acusado, mesmo que assumidamente culpado em vista do seu caráter.
Deste modo, a punição cumpre o seu justo escopo antes mesmo de se desdobrar em
gravidade. Mas quando a acusação é desferida contra um inocente, o seu efeito
equivale ao de um cão que tem amarrada ao rabo uma lata. Não haverá mais
remédio, o cão sairá em disparada, com a lata emitindo sons estrídulos e
faiscando nas pedras, enquanto o barbante que a prende ao rabo do infeliz resistir
aos seus desesperados movimentos. E muitas vezes o cão, assustado com o próprio
retinir da lata que arrasta, se enrola no barbante pelo pescoço e morre sem
entender o porquê da injusta punição.
A alegoria do cão serve
para demonstrar como é cara a reputação de quem tem caráter e capacidade de se
envergonhar. Mas esta reputação muitas vezes não impressiona o espírito dum
julgador despudorado. Porque a falta de caráter que ele traz de berço e pia, – ainda
protegida por sobrenome aristocrático, – faz deste julgador um carrasco. E ele,
naturalmente insensível, muitas vezes até psicopata, – e contando com a ideia
aristotélica de que “a sociedade é superior ao indivíduo e para o seu bem
existe”, – ele não recuará no seu injusto intento punitivo. Tem antes a
necessidade da fama. Com efeito, ele não assumirá nem mesmo para si que amarrou
a lata ao rabo do cão. Afinal, ele sabe que pode ocultar sua falta de caráter
na trincheira comum do “in dubio pro societate”.
Esta questão de
forte conteúdo emocional, antes de ser concernente apenas ao julgador, num
sistema de liberdades democráticas antes pertence ou deveria pertencer a quem
está sendo julgado, pois é quem recebe o impacto da premeditada injustiça. Sim,
se quem julga não tem caráter, seu julgamento equivale ao cometimento de crime
bárbaro contra a reputação do inocente. Por exemplo, quando um pai põe o filho
de castigo ou nele bate por ter feito alguma arte que não fora de sua autoria, o
pai está afetando profundamente o sentimento do filho e os danos morais lhe poderão
ser irreparáveis. Porque é certo que o poder paterno mal aplicado poderá levar
o filho até ao suicídio, como modo de provar ao pai o quanto seu caráter foi
afetado, já que reagir contra o pai não lhe é possível por ser mais fraco.
Conclusão: não se
brinca com a honra alheia, não é certo destruir reputações impunemente, e quem
possui o poder de afetar o sentimento humano deve se preocupar precipuamente
com isto. Se não o faz, iguala-se aos piores criminosos e sua força não mais se
ampara no seu direito de punir. Insere-se o poderoso e impune julgador como
protagonista dum sistema de barbárie a serviço do Mal.
Dirão alguns, ao ler
este texto, que tudo é simples retórica. Pode ser que sim, mas não por acaso o mestre
Platão grafou aquela frase do frontispício, dentre outras lapidares sobre o
mesmo tema; e o fez há mais de 400 anos antes de Cristo; e assim o fez talvez
para se reportar aos Trinta Tiranos e ao julgamento do seu mestre, Sócrates,
que fora acusado e condenado à morte “por crer em deuses em vez de crer em
deuses”. E para manter viva sua reputação por séculos e séculos recusou-se a
admitir a culpa preferindo a morte. E mais exemplos históricos poderiam ser
anotados. Creio, porém, que é o que basta a esta pequena reflexão a respeito da
injustiça e de seus efeitos sobre a reputação do injustiçado, que podem ser tão
extremos como os de Sócrates, que, com sabedoria, deu à sua injusta sentença um
aspecto de suicídio...
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