LEITURAS DO ‘GLOBO’
Interesse e ignorância: passando dos limites
Por Cátia Guimarães em 08/10/2013 na edição 767
Vamos resumir assim: a polícia cometeu excessos, policiais isolados
chegaram a forjar flagrantes, mas o uso geral da força se explica pela
ação repetitiva e destruidora dos Black Blocs, que se infiltraram na
manifestação dos professores do Rio de Janeiro, tornando o centro da
cidade uma praça de guerra. Diferente dos mascarados, os professores se
manifestavam pacificamente, mas, sabendo da situação da cidade e da
predisposição dos vândalos de aproveitar qualquer oportunidade para
destruir o patrimônio público e privado, bem que poderiam ter insistido
em outra forma de negociação, menos radical, que levasse a um consenso
mais seguro para o conjunto da população. Um pouco menos de
intransigência nas demandas do Plano de Cargos, Carreiras e Salários
também teria ajudado a evitar as cenas de horror que a cidade viveu. Os
milhares de professores em greve, que têm lotado as assembleias em
espaço público da categoria e, naquele dia fatídico, estavam lá,
certamente teriam aceitado um desfecho pacífico como esse, bem no enredo
de uma novela das seis. Isso só não foi possível porque eles se
tornaram massa de manobra de partidos políticos (PSOL e PSTU) que
comandam o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (Sepe-RJ)
com o único objetivo eleitoreiro de desestabilizar o prefeito Eduardo
Paes.
Pronto, leitor. Se você não teve o desprazer de ler a edição de quarta-feira (2/10) do Globo,
poupe sua inteligência. No parágrafo acima estão resumidas as cinco
páginas do jornal impresso e as diversas combinações de chamadas
mal-intencionadas que a sua versão online fez durante o dia. Mas não só:
resume também a abordagem que, numa coerência assustadora, os
telejornais da Globo e da Globo News assumiram.
Acima dos partidos
Como resultado de uma combinação entre os interesses do grupo
empresarial e a ignorância arrogante dos seus jornalistas, as
Organizações Globo arriscaram tudo na cobertura da violência que os
governos estadual e municipal do Rio de Janeiro provocaram contra
professores e a população em geral. Dessa vez, foi mais do que uma
inflexão conservadora ou uma oscilação indecisa: foi a tentativa
explícita e vulgar, manipuladora a um ponto que poucas vezes se vê, de
submeter os fatos a uma leitura editorial produzida a portas fechadas e
legitimada pelo senso comum dos jornalistas que têm se prestado a isso.
Registre-se, inclusive, que nenhuma matéria do jornal impresso foi
assinada, constando apenas, num cantinho, o nome de uma tropa de
jornalistas que teriam participado da “cobertura”.
Difícil é entender por que se precisou de tanta gente, já que o
resultado foi uma ficção editorialmente montada muito longe da realidade
dos fatos. Afinal, para saber a hora em que as bombas estouraram, o
nome das ruas fechadas ao trânsito, o número de feridos e presos (mal
apurado, diga-se de passagem), únicas informações objetivas em cinco
páginas de matérias, não era necessário estar lá. Tampouco era preciso
se arriscar em meio a bombas e “populares” para “descobrir” que alguns
dirigentes do Sepe-RJ, como de quase todos os sindicatos e movimentos
sociais organizados, têm relações com partidos de esquerda. Essa
“denúncia”, um verdadeiro furo de reportagem do mau jornalismo do Globo,
seria facilmente verificada remotamente, já que, enquanto a filiação
partidária não é considerada crime, não se trata de informações
confidenciais.
Na sua guerra contra qualquer tipo de organização de setores da sociedade, o Globo
nos faz acreditar – e o que é pior, convence seus próprios jornalistas –
que só existem interesses particulares (e escusos) quando há partido
político e, mesmo assim, com filiação formal. Pela sua lógica, o Sepe-RJ
deveria ser composto apenas por quadros “técnicos” da educação. Curioso
é não haver questionamento sobre o caráter técnico de uma secretária de
Educação formada em Administração Pública, que veio importada de São
Paulo para gerir a educação do Rio. O fato de ter fortes relações com o
PSDB – chegou a ministra de Estado, substituindo Bresser Pereira no
governo Fernando Henrique e foi secretária de Cultura do governo Alckmin
– e hoje compor um governo do PMDB apoiado pelo PT só mostra que, em
alguns grupos, que não precisam ir para as ruas e tomar bomba ou bala de
borracha para serem ouvidos – os interesses estão organizados acima dos
partidos.
Falso equilíbrio
No mais, as palavras escolhidas e repetidas na cobertura do jornal
impresso e dos telejornais não deixam dúvidas. Quando trabalhadores
apanhavam e eram escorraçados pela polícia, havia “confusão” ou
“confronto” entre policiais e manifestantes, uma descrição falsamente
“equilibrada”, que iguala os dois lados da balança, na força e na razão;
quando bancos e instalações públicas eram quebrados ou lixeiras
queimadas, as palavras ganhavam contornos mais claros: tratava-se de
“vândalos” fazendo “baderna” e “arruaça”.
Na Globo News, seria constrangedor, se não fosse revoltante, ver uma
sempre despreparada Leilane Neubarth praticamente pedir, ao vivo, que o
repórter do Globocop encontrasse um Black Bloc. Ela insistia em
perguntar se, mesmo com pouca luz e àquela distância, o jornalista não
conseguia ver se havia mascarados. Constrangedoramente, ele não viu. Mas
passaram apenas alguns minutos o repórter voltou para dar a informação
que, nas suas palavras, ele tinha ficado “devendo”. Encontrados os Black
Blocs, a âncora da Globo News desfiou todo o rosário de
conservadorismo, ignorância e, principalmente, mau jornalismo, deixando
evidente para qualquer um que os fatos ali não tinham a menor
importância – a narrativa já estava montada.
No Globo online, chegou-se ao cúmulo de dar destaque na página inicial à
informação de que Eduardo Paes havia chamado a polícia para investigar o
boato sobre a morte de uma professora. O texto era do blog de Ancelmo
Gois e chegava ao cúmulo de dizer que o prefeito tinha recebido muitos
xingamentos e passara a noite em claro!
Não comungo com a crença ingênua de uma parte da esquerda de que existe
um Grande Irmão ou um Grande Editor definindo todas as estratégias de
manipulação das matérias da grande imprensa. Questão muito mais
complexa, o papel desempenhado pela grande mídia informativa conta com a
passiva contribuição dos jornalistas, que são produtores, mas também
produto desse senso comum que, por definição, é conservador e serve à
manutenção dos interesses dominantes. Como não se trata de adesão
voluntária e consciente, não se pode condenar os jornalistas de pronto,
mas quero defender que, num momento como esse, é preciso pelo menos
julgá-los.
Primeiro, porque em situações extremas a ingenuidade passiva precisa
ter limites. Segundo, porque parte da afirmação desse senso comum é
resultado da arrogância de profissionais que se acham ilustrados, mais
bem formados e informados do que a média, envaidecidos pela presença
pública e pelos privilégios que o crachá de um grande jornal garante e,
consequentemente, crentes no seu papel de defensores da democracia
através da informação.
Tenho certeza de que a maioria dos jornalistas das Organizações Globo, e
falo aqui de jornalista médio, condena a violência contra professores.
Mas, embebidos do senso comum que iguala todas as indignações nessa
falsa crença na imparcialidade, condenam também a dos Black Blocs, a
reação de manifestantes à polícia, a tática de ocupação de casas como a
Câmara como forma de pressão e, quem sabe, também a organização em
partidos políticos e movimentos sociais combativos. Não percebem que o
resultado desse falso equilíbrio não tem nada de imparcial.
Mas, se é verdade que o dia a dia das redações não é marcado pela
figura do Grande Editor, em tempos de crise os grandes veículos de
comunicação, integrantes de grandes grupos empresariais, abrem mão
inclusive dos princípios que, em tempos normais, garantem a sua
hegemonia.
“Festa da democracia”
Narrando em livro sua experiência na construção de um projeto
alternativo de comunicação no Chile durante o governo de Salvador
Allende, o pesquisador Armand Mattelart nos mostra como, diante de uma
ameaça concreta e estrutural aos seus interesses, os grandes meios de
comunicação, aparelhos privados de hegemonia que são, abrem mão
inclusive da aparência de imparcialidade. Essa parece uma explicação
mais coerente para o apoio das Organizações Globo à ditadura brasileira,
que mereceu um mea culpa recente.
Mas e hoje? Não se trata de supervalorizar o movimento das ruas como o
prenúncio de uma revolução. Mas é preciso considerar que a recente greve
e mobilização dos professores do Rio de Janeiro traz pelo menos duas
novidades em relação às manifestações que têm tomado o país desde junho,
fazendo com que a linha editorial do(a) Globo não tenha mais
qualquer vacilação. A primeira é que ataca um governo cujo projeto de
cidade e de educação, no caso específico de que tratamos, atende muito
bem aos interesses do grande capital. Sergio Cabral foi os anéis;
Eduardo Paes já alcança os dedos. A segunda, e mais importante porque
mais genérica, é que não se trata mais de um movimento difuso, cujas
pautas podem ser facilmente simplificadas a questões pouco
estruturantes, como o fim da corrupção.
Agora, tomou as ruas e a simpatia da população um movimento organizado
de trabalhadores que tem muita clareza sobre a sua pauta de
reivindicação. Que, mais do que grandes emblemas, tem propostas
concretas de aumento salarial, criação de carreira e melhoria das
condições de trabalho para os profissionais e de aprendizado para os
alunos. Trata-se, portanto, de um movimento organizado que, para
defender os interesses dos trabalhadores – não só da educação –,
tensiona a governabilidade e os consensos estabelecidos. Só que essa
parte da “festa da democracia”, tão anunciada na cobertura do povo na
rua, precisa ser cancelada.
***
Cátia Guimarães é jornalista e doutoranda em serviço social
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