segunda-feira, 13 de maio de 2013

Sobre o fato e a versão – um angustiante drama policial



Um dos mais graves problemas da polícia é lidar com fatos naturais que depois se tornam versões artificiais ou artificiosas a partir de gabinetes longínquos. Por outro lado, o fato em si, em sua concretude, por muitas razões cambiantes, – confessas ou inconfessas, – perde substância logo no primeiro exame de quem o vai grafar em papel: aquele que do fato participou de modo efetivo. Com efeito, em sendo o fato uma ocorrência policial, sua versão tende paradoxalmente ao desvio pela pena dos que são autores da narrativa original. Quando o fato é descrito por um PM, por exemplo, a obrigação dele de resumi-lo num minúsculo “TRO” (Talão de Registro de Ocorrência) não dá sustento à versão. Também não se sabe se em espaços maiores de papel ele cuidaria de registrar a versão mais miudamente. Na verdade, ele até poderá ampliar o desvio entre o fato e a versão. E quando o mesmo PM narra o fato ao coirmão policial civil na DP, mesmo com boa vontade dificilmente este último logrará descrevê-lo em exatidão. E se houver má vontade (os conflitos no andar de cima costumam afetar as inter-relações no andar de baixo), o fato concreto sucumbe ante a versão deturpada.

Seguindo então sua tortuosa viagem, a malfadada papelada finalmente chega, sob a forma de inquérito policial, ao Ministério Público, distante e alheio aos fatos policiais. E em cotejo do calhamaço, não são raras as possibilidades de o fato concreto desaparecer em definitivo, dando lugar a uma versão obscura ou diametralmente oposta, e por vezes danosa a quem do fato participou em circunstâncias totalmente diversas. Temos então a ser apreciada pela Justiça a deformação do fato denunciado, não mais a verdade dele, que em fade saiu do mundo. Em seguida, há o julgamento da falácia que se impôs em detrimento da verdade real. Por tudo isto, a busca da verdade substancial pelo magistrado é um exercício angustiante, assim como muitas vezes o Ministério Público se angustia por não poder promover justiça na formulação da denúncia em virtude de versões distorcidas de fatos naturais que lhe chegam em quantidades tempestuosas, tornando tudo um caos.

Porque não é simples descrever um objeto estático, e mais ainda é complexo descrever um objeto em movimento. E em se tratando de conflitos humanos, torna-se ainda mais complicado descrevê-lo a posteriori. É como ocorre com a maioria dos processados administrativos e judiciais, autênticas algaravias anotadas como fatos concretos. E é deste modo que emergem decisões muitas vezes destruidoras da honra de cidadãos inocentes, dentre os quais se inserem os policiais. Isto sem se considerar quaisquer más intenções, mas apenas porque o mundo societário é assim mesmo, ou seja, falho por excelência, de modo que até as mui controladas pesquisas científicas nem sempre conseguem apurar a verdade sobre um objeto inanimado ou um fenômeno social. Nem vou falar aqui de erros médicos decorrentes da má interpretação da ciência, esta que lida ou deveria lidar somente com verdades indiscutíveis, sob o risco de tirar a vida de alguém. No fim de contas, apesar de todo o zelo da ciência, aviões caem, milhares de pessoas morrem em desastres semelhantes ou epidemias. Enfim, não há como alguém se fundar numa versão como definitiva descrição de algum fato.

Neste campo minado prosperam os conflitos institucionais, tudo porque quem infere alguma versão sobre algo ou alguém é ser humano falível. Infalível, porém, é o poder decisório de alguns privilegiados pelo Estado, este que por si só é mutante, obscuro na sua essência, e administrado por seres humanos passíveis de erro, mas que, por erro maior de interpretação das relações de poder numa sociedade, são formalmente entronizados como infalíveis. E assim se comportam ante a versão de um fato que nem mais existe, eis que definitivamente substituído por interpretações convenientes ou estúpidas, tanto faz, o efeito é o mesmo, e o prejuízo há de haver, para deleite dos que vibram com a desgraça alheia, dos que se saciam por meio da assistência do “castigo-espetáculo” e o aplaudem ardorosamente.

Lembra-me aqui uma palestra que assisti na Fundação Getúlio Vargas (FGV), Rio, sobre os ruídos na comunicação entre pessoas normais. Lá pelas tantas das explicações conceituais, o professor mandou sair da sala dez companheiros oficiais-alunos do CAO (Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais). Em seguida, colocou uma pintura a óleo contendo imagem de fácil memorização. Todos nós que permanecemos na sala com o olho na imagem pensávamos deste modo, até que o mestre mandou entrar o primeiro dos dez colegas isolados na área externa. Pediu-lhe então que memorizasse a imagem contida no quadro, que se resumia numa rua típica de interior com casarios simples delimitando-a. E nesta única rua seguia uma carroça cheia de lenha puxada por parelha de bois tangida por um peão de roupa bastante rota. Esta era a imagem a gerar a versão, logo memorizada pelo primeiro que a viu durante pequeno intervalo de tempo, e, de imediato, repassou-a ao segundo oficial-aluno sem que este visse o quadro, e assim por diante até o décimo. Só nós, que ficamos como expectadores privilegiados, continuamos a ver o quadro o tempo todo, espantando-nos com as mudanças do cenário original a cada relato, que se foi deformando a ponto de a imagem original dar lugar a outra inexistente. Sim, o último relato não se reportava mais a nada do que havia no quadro.

Com o foco nesta marcante experiência, creio ser boa hora para contar uma história como ator distante das pessoas que a vivenciaram. Trata-se de episódio que bem explica um fato e sua versão posteriormente deformada. A eles (fato e versão) me atenho, porém, sem qualquer intenção de deformá-los, o que não significa que estejam livres de idiossincrasias minhas a macularem sua originalidade. Mas vamos nos arriscar ao relato fiel do exemplo, se é que é possível: um confronto entre PMs e traficantes no Morro da Lagartixa, Zona Norte do Rio de Janeiro, no ano de 1989. Estava eu no meu gabinete de comandante do nono batalhão da PMERJ, nas primeiras horas da manhã, quando recebi a desesperada visita de um cidadão morador na referida comunidade. Nervoso, ele me relatou ter sido o seu lar invadido por traficantes armados e estranhos à comunidade. Disse ainda que fora agredido pelos traficantes, o que também ocorreu com a sua sogra, cega de um olho e de idade avançada. Enfim, foram expulsos do lar pelo poder desigual dos bandidos.

Este foi o fato a mim relatado, porém não assistido ou vivenciado diretamente. Mas como se tratava de risco imediato à ordem pública, portanto inserido na competência constitucional da PMERJ, determinei uma operação no sentido de prender em flagrante os bandidos, com a equipe designada conhecendo adrede a favela e com vivência capaz de identificar o ponto exato onde o fato se consumava. O cidadão ainda se prontificou a acompanhar a equipe até o local, ficando acertado que ele não iria até a linha de frente por razões óbvias. E assim foi feito: as guarnições comandadas por dois tenentes partiram ao local e ao interior da favela, cercando a moradia do reclamante ainda ocupada pelos bandidos, que, tomados de surpresa, tentaram escapulir travando intenso tiroteio com as guarnições. Na corrida, um deles parecia ser criança portando uma escopeta calibre 12. Um dos PMs lhe encetou perseguição por uma estreita viela, sem atirar. Não era criança! Era um anão, chefe da quadrilha e considerado o mais perigoso!... De súbito, o anão apontou a escopeta contra o PM, e sem se virar, e sem parar de correr, atirou. Um dos muitos balins disparados atingiu a mão do PM, que, claro, reagiu com uma descarga de metralhadora – a arma que legalmente portava. O anão, atingido por um projétil na nuca, veio a falecer, assim como mais três quadrilheiros, com os demais logrando romper o cerco policial. Este foi o fato e também foi a versão que culminou arquivando o inquérito policial por decisão ministerial e judicial naquela época.

Anos depois, por questões políticas, e em virtude da chacina de Vigário Geral, um bandido do Comando vermelho foi usado em despudor pelo sistema policial predominante, com o apoio irrestrito do Ministério Público, diga-se a bem da verdade. Entenda-se aqui como sistema policial predominante a comunidade de informações da PMERJ capitaneada na época por uma facção sem compromisso com nenhuma verdade, mas apenas se imaginando capaz de alçar poderes maiores em vista do descontrole geral da segurança pública que imperava na época, o que dispensa maiores comentários. Interessa, pois, demonstrar como um fato e sua versão original foram exumados por meio de nova e deturpada versão posta na mente e no boquirroto de um bandido do CV que não participara de nada no passado, e decerto conheceu o fato e a nova versão por osmose protagonizada pelo sistema predominante. E assim aquele tiro na nuca do anão, depois de ele quase matar o PM, tornou o fato policial uma versão de assassinato frio e calculista.

Acontece que, por sorte, o cidadão reclamante foi localizado e confirmou em juízo a verdade de tudo, assim como o promotor de justiça da Vara Criminal competente, sem compromisso com fantasias ou maldades, entendeu que não havia outro modo de o PM se defender a não ser atirando no anão pelas costas. Se não o tivesse feito, poderia ter sido alvo de um segundo tiro, com o anão escorando a escopeta no ombro, apontando-a para trás enquanto corria numa viela apertada, portanto tornando o PM alvo fácil de uma arma que espalha chumbo pra tudo que é lado. Deste modo o Ministério Público, – não na pessoa dos promotores que reavivaram em falsa denúncia a versão deformada pela via única do treinado bandido do CV, – o Ministério Público requereu a impronúncia dos PMs injustamente tornados réus. Foi como caiu por terra a falsa acusação de caráter político, mas que mesmo assim danificou, via mídia, a reputação dos valorosos PMs que arriscaram suas vidas para restabelecer a ordem no Morro da Lagartixa e devolver ao lar a família expulsa por facínoras armados.



Com a palavra os que defendem ter havido excesso no confronto entre o perigoso facínora Matemático e os policiais civis embarcados em helicóptero, lembrando que muitas aeronaves da PCERJ e da PMERJ foram abatidas por traficantes em favelas do Rio de Janeiro nas últimas décadas, e muitos policiais se espatifaram no chão com seus corpos dilacerados e/ou incinerados. Portanto, é de se esperar sempre e sempre que outras aeronaves possam sofrer ataques súbitos, bastando haver um homem bem posicionado, em tocaia, com uma arma capaz de derrubar helicópteros, o que não se é de estranhar. Presumir, – numa situação de risco extremo como esta, – que a polícia deva primeiramente receber tiros para depois revidar é estupidez, é apelar para a irrealidade da versão ignorando a possibilidade ou a premência de ocorrer o fato adverso.

No caso, o fato a se tornar história futura não poderia nem deveria ser o do abate inopinado da aeronave planando perigosamente sobre o carro do traficante-mor em aparente fuga dentro de sua “fortaleza medieval”, local onde o helicóptero se arriscou em missão policial a penetrar pelo ar. A não ser assim, que tirem das polícias os helicópteros e suas armas próprias, sendo certo que quem assim o determinar ou especular em malícia política deverá sair do conforto e da segurança de seu gabinete refrigerado e ir à linha de frente enfrentar bandidos, o que mais parece piada. Porque no âmbito da seletividade do uso da força não pode o Estado ser o fraco da história nesta luta incessante contra a crescente e violenta criminalidade, que, aliás, não se submete a nenhuma regra, tornando desigual o labor policial, que, em contrário, se deve ater ao regramento formal. Acontece que falamos de confronto entre partes armadas para uma autêntica guerra de guerrilha urbana e não de entrechoque entre lutadores no quadrado do ringue sob o crivo atento do árbitro. Afinal, ninguém pode pretender que o policial morra sempre. Ora, quem deve morrer é o facínora que o enfrenta em sanha assassina e o resto é nojoso proselitismo!

Um comentário:

Paulo Xavier disse...

Fico imaginando cá comigo, quantos policiais nesse nosso estado do Rio estão respondendo a processo criminal por conta de denúncias infundadas, mentiras deslavadas de bandidos e advogados mal intencionados; tudo para inverterem o papel, quando policial
condutor, autor da prisão, vira réu. Falo por experiência própria e confesso que não é fácil; narraria aqui alguns casos se preciso fosse.
Fatos como este narrado no texto desestimulam o bom policial, ele vai pra casa se sentindo um nada, aliás, creio que a maioria já tem em mente que ele não vai conseguir acabar com a violência e tampouco vai ficar enxugando gelo, além de correr o enorme risco de ficar todo enrolado perante a justiça.
Infelizmente é assim que a banda toca e quem se aventurar a dançar, que dance bem direitinho conforme a música, caso contrário, vai dançar de outra forma.