quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O "panis et circenses" no ESQUENTA

Certa vez, eu ainda capitão, novinho em folha, fui mandado palestrar na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). A plateia era composta por nada mais nada menos que coronéis, quase generais. O tema era do meu domínio: Defesa Civil. Quanto a isso, nada me assustaria, eu possuía razoável conhecimento histórico-teórico e atuava no atendimento às calamidades. Portanto, preparo para a incumbência não me faltava. Mas estar diante de turma tão seleta me deixou inibido, e mais ainda fiquei quando, ao me postar para o início da palestra, vi um coronel de cabeça branca arremessar uma bolinha de papel num colega da frente, com a turma desfraldando uma gostosa gargalhada.

Confesso que, acostumado à solenidade da hierarquia militar, me desconcertei ante aquela inusitada cena. Jamais poderia imaginar coronéis partirem à brincadeira, como crianças, num lugar tão formal como aquele. Mas foi o que houve, e só tornei à calma depois que o “xerife”, um coronel de cabelos grisalhos, fingiu que admoestou o brincalhão, e este fingiu ser admoestado... Bem, o episódio talvez sirva para demonstrar que dentro de uma farda, seja de general ou soldado, há um coração palpitando, uma criança brincando, uma alma feliz... Ou triste... Enfim, a farda não deve eliminar seu conteúdo, ou seja, não deve ser como nos alertou Machado de Assis no seu magistral conto “O Espelho”: “O alferes eliminou o homem”.

No episódio do rebolation, pude perceber no facebook, principalmente, muitos “alferes” machadianos desferindo pesadas críticas aos companheiros. Com efeito, o recado machadiano encerra uma fina crítica à vaidade humana e à hipocrisia dos símbolos e emblemas que estereotipam a vida numa sociedade hierarquizada em linhagens. Claro que numa sociedade como a nossa, marcada pela cultura escravocrata e aristocrática, não há de ser possível admitir inversão dos valores e desvalores da casa-grande e da senzala, cada qual deve saber se pôr no seu lugar. Numa sociedade de casta, como a nossa, que aparenta uma igualdade que não existe, quebrar a hierarquia social, nem pensar. Pior ainda é aceitar um fardado atropelar esta hierarquia social reforçada pela militar...

Sim, são duas hierarquias: a social e a militar. O militar ajusta-se primeiro à social, em arrogância de elite ou em resignação de plebe... No segundo caso, são todos meros bonecos pendurados em cordões de manipulação nos moldes dos “corpos dóceis” denunciados por Foucault em seu clássico “Vigiar e Punir”. Ou seja, o militar, assim identificado por sua farda, e resumido a marionete, deve seguir ao longo de sua existência os rígidos regulamentos castrenses em complemento ao treinamento repetido de movimentos medidos, que, ao fim e ao cabo, se resumem ao imperativo: “Ponha-se no seu lugar!”

Eis mais ou menos o porquê da destemperada reação contra os PMs que se arriscaram ao rebolation ao vivo e a cores num programa de tevê badaladíssimo. Lá eles estavam, na verdade, a servir de pasto à elite, tendo como acompanhantes meninas faveladas vivenciando um sonho efêmero: um baile debutante sem qualquer perspectiva de ingresso na vida societária, já que a vida delas é e terá de ser sempre comunitária. Daí a junção perfeita do roto ao esfarrapado, para deleite da sociedade formal: platéia distante que tudo assiste de suas confortáveis poltronas nas tevês de última geração.

No palco do programa, via-se a junção perfeita dos famosos oriundos das camadas mais pobres: cantores e cantoras de músicas populares, dançarinas esbeltas e enfeitadas para a ocasião, enfim, um cenário lindo composto por pessoas simples que cantam e/ou dançam bem, complementado por um auditório não menos simples a aplaudir e jorrar ao respeitável público a generalização dum glamour confundindo realidade com fantasia. Confesso, porém, como lídimo representante da plebe, que lá estavam muitos cantores dos quais sou fã de carteirinha; e, para mim, a felicidade seria completa se aparecessem naquela festa de arromba mais ídolos meus, como Dudu Nobre, Zeca Pagodinho e Martinho da Vila...

Este era o cenário para o qual os PMs foram levados em boa fé pela autoridade homenageada: o secretário de segurança pública, a quem são atribuídos os louros da pacificação favelada, mas que, suponho, ele quis distribuir aos PMs em reconhecimento. Mas isto não importa muito, a elite já definiu ser ele o seu símbolo de poder, aquele que comanda a plebe no mundo real e fictício da pacificação e dos seus festejos antes mesmo de se ter a certeza de que o programa vingará. Eu espero sinceramente que vingue, mas depende da animação da plebe formada por rotos PMs e esfarrapados favelados. Estes, porém, são atores, vêm sendo bem treinados, porém jamais serão produtores e diretores do espetáculo societário. Que assim seja! É como funciona uma sociedade de casta, mas que não se assume, finge não ser casta por meio desses argumentos fictícios que logo estarão arquivados nos anais da elite televisiva: apenas mais uma efêmera encenação de participação societária, de modo que a plebe não se esqueça de que é plebe e não se empolgue além de um átimo.

Num palco tão minuciosamente arquitetado, como imaginar que PMs não se comportassem também como atores? No fim de contas, eles não eram ornamentos de cenário, simples biombos ou postes de luz, sem vida, sem animação, sem alma. Eram, sim, almas vivas. Não eram “almas mortas” de corpos sepultados, como as de Nikolai Vasilievich Gogol. Mas quase que eram, pois, de certo modo, suas imagens estavam ali como produto de mídia postos à venda em rebolation inevitável. Eram, afinal, corpos vivos... E houve quem os comprasse: o programa deve ter alcançado índices altíssimos no IBOPE e muito marketing deve ter gerado nos bastidores comerciais da tevê “politicamente correta”. Pois ali se reproduziu um autêntico “panis et circenses” com todos os seus ingredientes midiáticos. Agora pergunto: num circo desses, de enredo treinado, como não seriam personagens também os PMs?...

Não sei por que iniciei contando o inusitado episódio que protagonizei na ECEME. Talvez para demonstrar que a alma humana não se contém na farda, a não ser na ficção machadiana. Por outro lado, sei que a sociedade de casta não liberta nem mesmo a “alma morta” dos seus servos, que valem dinheiro e posição social, como denunciou Gogol no seu clássico “Almas Mortas”. Esta velha hierarquia social veio da Europa com a colonização e se mantém na nossa cultura de casa-grande e senzala. Nem vou me referir à segregação racial ou à intolerância religiosa ou a outros preconceitos e discriminações enraizados na cultura pátria. São muitos, porém dissimulados em enfeites, como o que assistimos no programa da Regina Casé, que, no fundo, faz o jogo dos poderosos e generaliza brilhantemente um sucesso particular sem que ele seja real na vida prática. Afinal, sabemos que hoje aqueles PMs glamourizados estão sem dinheiro para pagar alguma prestação e as meninas debutantes estão com os pés no chão pauperizado de suas comunidades abandonadas, como, aliás, denunciou o secretário Beltrame em rasgo de sinceridade e coragem.

Mas a alma humana necessita de afago, e, sem dúvida, o programa representou um fortíssimo afago aos PMs das UPPs e aos favelados ali representados em minoria (uma menina deslumbrante por favela). Como então julgar aquelas almas humanas fardadas ou enfeitadas em roupagem de princesa? Como considerar ignóbil o comportamento dos PMs? Ora, é assim que a sociedade de casta funciona: de longe em longe dá espaço ao pão e ao circo para o rebanho conformado. É assim desde que o mundo é mundo: em festa de um dia, o rei come o banquete e a plebe esfaimada dança para ele em troca de um prato melhorado. E a plebe fica contente com o seu rei, este que se deliciará de banquetes todos os dias. Foi o que me aconteceu: um simples capitão PM se sentido igualmente contente por ser “professor” de coronéis do Exército Brasileiro por uma hora...

Por tudo isto, e muito mais, não serei eu a atirar a primeira nem a última pedra!

3 comentários:

Anônimo disse...

ÉÉÉ, voce enlouqueceu de vez Misoca, não só louco como puxa-saco empedernido. De repente,vem uma sombra que nos faz até sentir que o Ministro japonez não estava tão errado assim. Sua hora já passou amigo, pare de fazer tão mal a honrada Corporação PM, por favor. Ah, e pare de puxar o saco de delegados , eles já assumiram o poder total, não precisam mais disto.

Emir Larangeira disse...

Caro Belzeba

Há momentos em que duvido da sua inteligência. Dê uma reavaliada no seu mecanismo de percepção. Preste mais atenção ao texto e deduza o que eu transmiti e não o que lhe interessa, em especial o que não atende aos seus dogmas ou ideologias ou iras particulares. Eu deixei claro que não me afeto por dogmas ou idelogias e permaneço defendendo os PMs porque já vi coisas piores intramuros. Quer um exemplo? lembra da festa aniversária de um determinado comandante-geral num iate ancorado na Marina da Glória, com direito a coquetel, garçons e banda de música, tudo por conta da PMERJ?... Peculato!!!!! Se você assistiu à fala do secretário Beltrame, concordaria comigo, ele marretou devidamente os omissos. Quanto a ele ser candidato, é outra história, mas eu não tenho nada pessoal contra ele e reafirmo isto aqui. Diferentemente do Cabral e muitos secretários dele, "dançarinos de Paris", que ironicamente citei. Ora bolas, será que terei de traduzir para você o que escrevi? Assim eu tiro o tubo, mesmo, ou me suicido num copo d'água! Seja mais atento ao contexto. Deixe seus recalques de lado quando ler algo que escrevo, senão você não alcançará o fio da meada nem a moral da história.
Abs

Anônimo disse...

Comandante Emir Laranjeira: Que DEUS sempre o ilumine, te cubra de paz e saúde para poder continuar nos brindando com letras, palavras e frases que exclamam verdades numa sociedade onde a maioria das pessoas "não sabe que não sabe"!
O Sr é um orgulho para o ser humano e mais para nós, Policiais Militares do Brasil!