quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A farda e o fardo


Muita gente interna da PMERJ confunde amor corporativo com apego a tradições. Ora, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa! É fácil entender: cada montadora tem a sua marca (logotipo) conhecida no mundo. Não significa que não renovem seus veículos, que não param de se modificar para enfrentar os concorrentes. Já imaginaram a FORD até hoje fabricando o seu “FORD BIGODE” para enfrentar as marcas concorrentes?... Uma coisa é a marca, outra é a estrutura, que deve ser constantemente flexionada para atender a novas funções traduzidas pelas exigências de um ambiente incerto e turbulento.

O que pretendo dizer é o seguinte: a PMERJ possui seu emblema (logotipo), por sinal decorrente de cisões e fusões várias, não se sabendo mais qual emblema predomina nos corações militares estaduais; mas, seja qual for a preferência dos seus membros, a PMERJ continua insistindo em fabricar “FORD BIGODE”: não gosta de inovar absolutamente nada. Prova disso é seu estatuto, que é cópia fiel do seu equivalente no Exército Brasileiro, datado de 1946. Mas o do EB vem se modificando e se adaptando aos novos tempos. Nem tanto assim, é verdade, mas vem. Já o da PMERJ só altera as regras de promoções e quase mais nada. O mesmo se pode afirmar do RDPM (Regulamento Disciplinar), que se mantém inalterado e se reporta quase que ao século passado.

Acontece que os tempos são outros e o conceito de tropa massificada desde muito se enfiou em falência. Mas não na corporação, que insiste em aprimorar para pior seus conceitos disciplinares sob a ótica simplista (ou simplória) de que o homem (“corpo dócil”) deve ser submetido a um sistema de controle pautado na desconfiança e na ameaça de retaliação em caso de desvios de conduta. Não raciocina a PMERJ como organização moderna e voltada para a valorização do homem a partir da ideia de que ele é basicamente bom e deve ser estimulado a produzir (incentivo ao desempenho) em vez de ameaçado.

Pior é que as ameaças se concretizam e se generalizam na tropa instituindo um sistema de terror disciplinar. Daí ser comum a exaltação, via grande imprensa, do número de exclusões disciplinares tendo como paradigma de “eficiência” o aumento dos licenciados em comparação com os anos anteriores. Pior ainda é que a imprensa gosta de exaltar a punição porque se encaixa nos seus preconceitos ideológicos contra a farda, esquecendo-se os profissionais dessa área que estão a lidar com brasileiros que tentam uma profissão, que, por sua natureza, é mal remunerada e perigosa. Portanto, os que nela se enfiam deveriam ser estimulados; e se eles ou elas têm defeitos, estes são consequentes da própria vida em sociedade e não culpa de uma corporação que os recebe adultos e vacinados.

Claro que o excesso de exclusões disciplinares (descarte) passa pela facilidade de reposição (encarte). Houvesse carência de mão de obra (não é caso do Brasil, cujo mercado de trabalho é pautado pelo desemprego), a PMERJ talvez cuidasse melhor do seu efetivo, dentro da ótica de que o ser humano e não deve ser tratado como sendo fundamentalmente mau. Mas é assim devido ao enorme contingente de jovens que se põem à disposição da PMERJ, pois não lhes resta outra chance de mobilidade social. E a PMERJ contribui, com as exclusões massificadas, para a desordem social e pública, porque, como todos sabem, na sociedade preconceituosa, se já é difícil ser aceito com farda de PM, imagine perdendo-a, como ocorre com o ex-PM?

Ora, o ex-PM tem pouquíssimas chances de se reintegrar no escasso mercado de trabalho. Talvez até menos chance que o ex-presidiário, este, que recebe muitas benesses durante o cumprimento da pena e também depois de solto. Parece, sim, ser profissão melhor que a de PM... Sei que exagero, mas é esta a intenção, mesmo! Afinal, há tanto ex-PMs circulando e ninguém parece ter interesse em saber por onde andam e o que fazem. A verdade é que muitos, por falta de oportunidade, e por viverem no limiar entre a ordem e a desordem, e perdendo a chance de se manter no primeiro grupo, se enfiam no segundo: o da desordem. Esta, por sua vez, possui diferentes matizes e texturas, e o ex-PM poderá, na melhor hipótese, encostar-se a uma segurança de PM da ativa, de quem costuma receber solidariedade; mas também poderá engrossar as milícias ou se encaminhar ao crime que antes combatia, e que, por isso, bem o conhece: o tráfico de drogas e demais situações criminosas e contravencionais.

Enfim, o ex-PM é desvantajoso para a sociedade e para a própria PMERJ que o fabrica em série, como denuncia o ilustre e premiado poeta Salgado Maranhão no seu poema a mim dedicado, e que mais uma vez sublinho por dizer em poucas palavras o que não consigo dizer em muitas:

Farda

p/Emir Larangeira

Melhor se se chamasse fardo,
em vez de farda, – esse travel
cheque para o sacrifício –
a defender o indefensável.

Melhor se se chamasse alvo:
mural da ira acusadora
contra os próprios personagens
que lhe julgam protetora.

São, normalmente, pretos, pardos,
Pobres, sobras de etnias:
gente fabricada em série,
que ao perder, tira se outra via.

E prossegue o ritual
desse espetáculo de horrores,
de Caim matando Abel
numa guerra sem vencedores.

E prossegue essa torrente
 do sangue que não socorre,
o drama de ser ver morrer,
do lado de onde sempre morre.

Um comentário:

Paulo Xavier disse...

É isso mesmo Cel Larangeira. Tem mais; ex- PM é na maioria ex-combatente, policial de rua que conviveu guerreando contra o crime e a contravenção. Acontece que após a sua exclusão ele passa de caçador a caça, em grau diretamente proporcional. Digo isso porque aconteceu comigo e com alguns companheiros meus, alguns não tiveram a mesma sorte minha e sucumbiram diante dos reveses que a vida traiçoeiramente ia reservando, como uma doce vingança em forma de tortura.
Consegui me reerguer com a ajuda de familiares, um irmão, hoje oficial da reserva do EB e outro funcionário da Petrobras, mas eu também fiz a minha parte voltando aos estudos com um bom curso técnico no Cefet, evitando más companhias e ambientes suspeitos, me dedicando no meu trabalho onde estou a 23 anos e permanecendo mesmo depois de aposentado, que depois descobri chamarem isso de laborterapia.
Também tomo cuidado com minhas ações e palavras, agindo da forma mais correta possível porque a Dona Prudencia me alerta diariamente que ex-PM não pode errar mais.
Concluindo, fiz uns dois ou três inimigos aqui na vida civil, porque alguém já disse que "para fazer inimigos não é preciso declarar guerra, basta dizer o que pensa".
Cel Larangeira, parabéns pelo texto que me emocionou e fez passar um filme de mil matizes na minha cabeça.