quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Sobre a queda do helicóptero



Malgrado o desgosto que assola nossos corações e nossas almas, a queda do helicóptero em si não representa nenhuma crise, no meu modo de ver. Trata-se de acidente de percurso e não traduz nossa constante desgraça mais que a morte de muitos policiais em chão firme. Nem mesmo pela quantidade de mortos o acidente se destaca; muitas vezes a PMERJ amargou perdas maiores. A verdade é que toda vez que cai um pássaro de aço há certa espetaculosidade no episódio. O trauma dos acidentes aéreos tem essa característica, diferentemente dos desastres de trânsito, embora às vezes contando dezenas de mortes.
Uma crise não é representada por um fato, mas por um processo negativo que se alonga e se acumula no espírito das pessoas. Geralmente é crônico, mas, de repente, um só evento pode desencadear o espanto e aguçar a crise por meio de discursos políticos focando um “bode expiatório” ou um “boi de piranha”. Sem eles, o “bode” ou o “boi”, a crise não abrandará para recomeçar o mesmo processo a partir de causas conscientemente ignoradas. Ignorando-as, porém, é certo que seus efeitos cumulativos novamente atingirão o clímax, e a crise renascerá aos nossos olhos e ouvidos atônitos. Ou então, como insinuou Marx, “tudo que é estável e sólido desmancha no ar”. Nem tanto...
Na realidade, nada desmancha no ar. Muda, sim, de lugar ou de aparência. A sucessão de eventos naturais ou sociais garante as necessárias mudanças ambientais. As cabeças cortadas são logo esquecidas e o que não faltam são novas cabeças enfileiradas no corredor do abate, enquanto o touro e a vaca “PO” se deliciam por serem “PO”. Morrem de velhice, a não ser que um tufão ou um desastre aéreo os peguem de surpresa, ou um atentado qualquer os elimine da face da terra. Em não havendo desastre natural ou artificial, a elite “PO” continuará na sua vida boa, com os patrões mandando nos empregados e os governantes mandando nos governados, certeza igualmente válida para os organismos de imprensa nesse mundo capitalista, competitivo e dependente de recursos estatais para vencer o concorrente. O resto é gado a dar seu sangue e sua carne para alimentar os que consomem delícias em arranha-céus, iates, coberturas e mansões: os detentores históricos da mais-valia e do poder político, sempre irmanados em torno de interesses comuns e inconfessáveis...
O mundo é assim, formado por camponês e senhor feudal, por patrão e empregado separados na vida e igualados apenas na morte, o que não representa nenhuma vantagem: o senhor feudal e o patrão vivem bem enquanto vivem. Portanto, para tentar minimizar essa desigualdade histórica, só lutando nos moldes dos revolucionários franceses do Século XVIII. Porque é certo que ninguém mudará a cultura da casa-grande e da senzala, com esta última aumentando seu contingente de mão-de-obra barata para competir num mercado restrito. Nessa corrida, há vencidos e vencedores, e destes últimos somente um alcança o pódio; mais ou menos comparando, o que for sorteado na mega-sena. Mas, para o ser, muitos miseráveis comprarão a cartela e a maior parte da bolada inflará e subirá para nunca mais voltar ao chão batido da senzala.
Helicóptero é brinquedo de rico. O Estado é rico, possui helicópteros para transporte de seus mandatários. No helicóptero da polícia, porém, dissimulam-se a fraqueza e a pobreza do “gado de rebanho” elitizando-se fingidamente alguns “pés-duros”... Também na boiada há a reprodutora denominada “barriga de aluguel”, vaca pé-duro usada para acolher nas entranhas o embrião do touro “PO”. Já com os bois pés-duros, nem isso. Entretanto, necessário se faz usá-lo para excitar a vaca reprodutora “PO”. Daí opera-se o pênis do pobre-diabo do “boi”, entortando-o, de modo que ele cubra a vaca “PO”, mas não a penetre jamais. Só a excita... E esse estimulador de vacas “PO”, depois de abatido e retalhado, tem o seu torto pênis transformado em “vergalho” destinado a tanger animais teimosos, incluindo-se entre eles os escravos amansados por chibatas feitas da mesma matéria-prima. Porque é certo que o touro e a vaca “PO” não se misturam à boiama nem entram em fila de abatedouro: são “matrizes puras de origem” e morrem de velhice...
O “boi de piranha” excita muitas vacas de luxo. Depois é descartado, tornando-se carne a ser comida e seu pênis vira “vergalho”. O helicóptero da PMERJ lembra esse boi-pé-duro-de-piroca-torta. De longe, no pasto, pode até ser visto como um reprodutor “PO” passeando livremente no verdejante pasto. De perto, porém, vê-se que nem pele boa para sapato ele tem. É furada por vermes e, depois de descarnada, mais parece pele de PM: cheia de furos de balaços, não serve pra nada. Mas alguns “bois” conseguem morrer no ar, caindo de sua única máquina desprovida de segurança. A maioria da boiama, porém, morre é mesmo no chão batido das favelas ou no asfalto poeirento, como, aliás, e não fugindo à regra geral, morreram os tripulantes do helicóptero enfeitador de nossa miséria operacional, social, pessoal e familiar. Nem eles, heróicos tripulantes, nem eles mesmos morreram num pasto verdejante, mas num chão batido favelado, único também que conheceram na vida. E morreram porque não vestiam a pele protetora do fogo nem contavam com a blindagem do seu falsamente invencível pássaro de flandres...



“(...) Saía a boiama confusa e cadenciada / Ruminando e olhando para o chão... / E de sinos dispersos, as badaladas, / iam tocando a massa em procissão. / Em balada profética de triste agouro... / Com pegadas de sofrimento no sertão, / Caminhando resignada ao matadouro / Mugindo! Entoando, estranha oração. / (...). / Quando quebrou em instante preciso / O galho de árvore que cai estalando... / Em cima de uma rês que... sem aviso, / É assustada e escoiceia disparando... / Outras que mugem, tropeçam e rolam; / Alando chispas braseiras num clarão! / Cabeças e chifres confusos se tocam... / O sangue jorra vermelho para o chão! / (...)” (Antônio Miranda Fernandes)

2 comentários:

Unknown disse...

Sr. Emir Larangeira. A muito ouço falar do Sr,seja de forma positiva,seja de forma negativa,mas volta e meia ouço; O trecho que acabo de ler, se não for transcrição ou montagem traduz aquilo que o Sr realmente deve ser,contudo com esse esclarecimento todo eu pergunto:De que vale saber disso tudo, se insistimos em permanecer na inércia, melhor não seria a ignorância;que adianta saber disso tudo,e não assumir pelo menos uma atitude ghandiana,deixar nos possuir sem demonstrar prazer?

Emir Larangeira disse...

Prezado Mauzudao

Creio que a resposta está no texto do coronel "Ranger". Mas para tanto precisamos enxergar os fatos com olhos de realidade. Aí sim, creio eu, devemos reagir e não aceitar a posição de ovelha nem a de lobo. Ghandi é um belo exemplo de reação corajosa, embora pacífica. Certa vez ele disse que "onde não houver escolha entre a covardia e a violência, aconselharei a violência." Ele era o cara!... Eis a violência dos "cães pastores" sugerida pelo coronel "Ranger", a mesma que eu defendo, pois devemos exigir mais respeito à profissão e nenhum engodo. Devemos saber, sim, e demonstrar que não estamos sendo enganados. Por enquanto, só vejo engodo e reajo como posso. E pode estar certo: sou o que penso e divulgo, o que não significa ser dono de nenhuma verdade. Também erro e reconsidero, não nesse caso em que mantenho o que disse.
Obrigado por sua valiosa crítica.